sexta-feira, dezembro 11

Descrição

Era uma mulher antiga. Na mesa do seu almoço, havia um constante vidro de Poção de Mugólio. Dormia de meias de homem e, durante o sono, cheirava a ponta de lápis. Não pisava no chão frio, com medo de ficar com a boca torta. Era uma mulher antiga. Chamava o Amor de maneira tão estranha, que parecia não ter nascido dele. Não amava, temia a Deus sobre todas as coisas. De bebida, nem ao longe lhe falassem, a não ser de vinho do Porto, assim mesmo com uma gema dentro. Tinha um grande respeito a Carlos Gomes, a quem atribuía o Hino Nacional. Acreditava em coisas absurdas, como o ri melhor quem ri por último e o quem dá aos pobres empresta a Deus. Era uma mulher antiga. Ignorava tanto de si mesma, que seu maior orgulho era uma tia. Entendia de rendas e bordados, monograma de fronha e point-à-jour. Muitas vezes, na frente das pessoas, chamava avião de aeroplano. Navio, de vapor, isso era sempre. Jamais chamou samba e sim maxixe e fatia de presunto era fiambre. Se ia comungar e havia festa, preferia dançar com as outras moças. Só com um homem dançava descansada: Arlindo, seu pai, que morreu pobre. Ela mesma cosia os seus vestidos, com temor que a modista a visse em trajes íntimos. Jamais tomou banho no chuveiro, sem botar algodão na fechadura. Jamais, se despida, olhou espelhos, por temer a cobiça de si mesma. Jamais se deixou fotografar, sem pedir ao artista os negativos. Estava tão acima das demais, que lavava a cabeça em todo banho. Sua roupa cheirava a capim-santo. Seu corpo sem sol não ia à praia, por isso era branco o tempo todo. Em junho, no São João, tirava sortes, para ver se casava ou se morria. Preferia não ver fita nenhuma, a sentar-se entre estranhos num cinema. Seu dinheiro era pouco e desconstante, mas dava-o todo para as obras pias. De canção, só sabia o "Chão de estrelas", de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas. Em política, fazia confusão, pois temia, a só tempo, Carlos Prestes, Flores, Sagramor e Adauto Lúcio... por achá-los com ideias avançadas. Tinha medo de tudo o que mudasse esse transe, a seu ver, chamado Paz. Além disso, se amava, era uma graça. Não sabia das coisas, inventava. Jamais repetiu, criou o Novo. E ninguém lhe ensinou – aprendeu só. Por ser um Ser de Deus feito em essência, no dia em que morreu, não houve missa. Era uma mulher antiga.
Antônio Maria, "O jornal de Antônio Maria"

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