De repente, o tempo transformou-se neste tempo: um presente absoluto. O passado ficou incrivelmente distante, recordamo-lo como se tivesse acontecido a outras pessoas, como se o tivéssemos visto num documentário. Pior ainda, o futuro deixou de existir. Antes, naquele tal tempo que antecedeu este, dávamos o futuro por adquirido, chegaria na semana que vem, no mês que vem, haveria futuro em 2033, por exemplo. Agora, já não temos a certeza. Agora, o futuro é uma utopia ou uma distopia, dependendo do otimismo/pessimismo de cada um.
Alguns, discípulos de Heráclito com 2500 anos de atraso, asseguram-nos que nada será como costumava ser. Estou cansado dos clichés deste tempo. Estou cansado de ouvir que a adversidade é uma oportunidade, é um desafio. Dispenso esse tipo de desafios.
Juro que não queria escrever sobre isto. Tinha aquela esperança cega e injustificada de que se não falasse sobre o assunto, contribuía para o seu desaparecimento. Falhei, não há negação capaz de cobri-lo, não há fuga. No entanto, repare-se no meu esforço por não utilizar certas palavras. Há certos verbos e substantivos que já não consigo ouvir, menos ainda pronunciá-los, menos ainda escrevê-los, vê-los impressos.
Estou cansado dos especialistas. Cansa-me os que são realmente especialistas, os que se empenharam a fazer licenciaturas e pós-gaduações quando estas disciplinas não estavam na ordem do dia, quando não havia nenhum indício de que fossem chamados ao telejornal para dar o seu parecer. Mas cansa-me sobretudo os especialistas de ocasião, especialistas entre aspas de chumbo, leitores de internet, gente que não gagueja ao falar e que quer sempre falar.
Prefiro as minorias silenciosas, como é o caso de quem está em prisão domiciliária ou de quem sofre de agorafobia. Esses beneficiaram de uma trégua. As crianças deixaram de perguntar porque é que o tio tem uma pulseira na perna e nunca sai de casa. De certa forma, estes meses foram uma redução na pena. Ao mesmo tempo, quem sofre de agorafobia pôde sentir-se normal, não teve de escutar insistências para sair. Algo semelhante aconteceu com as aldeias do interior. Durante este período, foi normal que as ruas estivessem desertas.
Estou cansado da condenação feita pelos puristas do isolamento social, sempre a medirem distâncias com os olhos. Passam dias inteiros à janela só para poderem chamar irresponsáveis aos outros e dizer: já viram isto? Eles nunca são irresponsáveis, eles estão sempre a ver tudo, com a exceção daquilo que preferem não ver, é claro.
Estou cansado da escola em casa, muito cansado. Estou cansado da ginástica em casa, toda a gente do prédio em frente a fazer agachamentos. Mas, mais do que qualquer outra coisa, estou cansado desta agressão aos velhos. Já tinham problemas suficientes: a palavra velho usada como um insulto, por exemplo. Já tinham sido obrigados a aceitar suficientes injustiças. Agora, por cima de todas essas, também esta injustiça.
Estou cansado. Com essa falta de ânimo, assisto ao início da crise económica que já chegou para alguns e, diz-se, tocará a todos, ou quase. Este quase tem enorme importância, mas não o estranhamos, há muito que nos habituámos à desigualdade, aprendemos a justificá-la. Vista daqui, também a desigualdade se apresenta como um eterno presente, uma inevitabilidade do ser humano, não mudou e ninguém prevê que esteja para mudar.
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