sexta-feira, dezembro 18

Toda a gente a falar do mesmo assunto

Nasce de uma rebentação. Então, a água lança-se sobre a areia, estende-se numa camada vítrea, com mais ou menos espuma, avança nessa inclinação de areia lisa. É como uma pequena invasão ao longo de toda a lonjura da praia, natural e espantosa ao mesmo tempo. Em fins de tarde de Julho, esse mar não ameaça. Se estivermos descalços, deixamos que nos cubra os pés e, logo a seguir, os tornozelos. Cada vez mais fina, a água abranda no topo do declive, toca a linha da areia seca e volta a descer, mais rápida, como se o oceano quisesse aquela água de volta. Como se o oceano desse conta de que aquela água estava a escapar-se e a puxasse de volta. Mas, logo a seguir, nova rebentação e, de novo, a água lança-se sobre a areia, estende-se.

Hoje, os temas circulam no debate público através de um movimento muito comparável com este. As redes sociais criaram uma homogeneidade e uma rapidez inéditas no espaço mediático. Como as fases da lua influenciam as marés, a energia colectiva das redes contagia a comunicação social e, a partir de certo ponto, alimentam-se mutuamente.


Perante um acontecimento que despolete eco colectivo, análogo à tal rebentação, estabelece-se um discurso, a água a estender-se na areia. Apresentará uma força proporcional ao ímpeto da sua unanimidade. Essa é a fase em que a grande maioria se sente à vontade para falar. Qualquer observação é recompensada com uma inundação de reforço positivo. Há um instante em que se chega mesmo a acreditar que toda a gente está de acordo com essa ideia. No entanto, quando já não consegue aguentar mais, há uma dessas fotografias num quadradinho que discorda. O primeiro instinto do grupo é o medo, ninguém se quer comprometer. Mas depois, porque existe ali uma nova lógica, por compensação ou apenas devido à lei da gravidade, mais e mais pessoas vão concordando com essa ideia nova, eis a água a recolher-se, até ao ponto em que todos os que se manifestam têm essa opinião. Logo a seguir, novo acontecimento, a água, a areia, etc.

A reflexão colectiva em vagas tem bastantes inconvenientes. Se toda a gente se dedica apenas a um assunto, por muito nobre que seja, não sobra ninguém para reparar noutros assuntos. E, com frequência, a maior das injustiças é exatamente a falta de atenção. Em simultâneo, quando se cansa, quando encontra substituto, é bastante cruel a maneira como a opinião pública deixa cair o tema do momento. Ao contrário do que muitas vezes se diz, o esquecimento da internet é profundo e implacável.

Apesar de se encontrar ritmo cíclico na natureza, parece-me que a forma como os temas chegam atualmente ao espaço público segue, ainda mais, outra cadência: o mercado, o consumo. Tal como as modas, que agora mudam muitas vezes dentro da mesma estação, os temas do debate público requerem uma atualização constante que, no entanto, dispensa uma atenção apurada. Basta-nos ler os títulos das notícias na internet, alguns comentários nas redes sociais, colecionar duas ideias daqui e dali, e acreditamos que já sabemos o que se passa no mundo. Se alguém mencionar um assunto fora dessa agenda, é de certeza um excêntrico, não nos sentimos mal por ignorá-lo, uma vez que é o que faz a maioria das pessoas. Estamos em sintonia com as pessoas normais.

Não sou especialista em marés. Nasci no campo. O mar é um elemento que entrou na minha vida já durante a idade adulta. Talvez por isso, o meu estômago ainda não se conseguiu habituar a este balanço.
José Luís Peixoto

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