sábado, janeiro 14

A fúria dos jovens e a paz dos velhos

Chamam-se ajoncs essas flores amarelas circulando os trilhos do TGV que me leva a Bordeaux. Não há nada no mundo tão amarelo quanto um ajonc, penso. E estendo as pernas enquanto fica para trás uma Paris quase em chamas, com milhares de estudantes em fúria pelas ruas. “Les jeunes, les jeunes en colère!”, gritam os franceses, enquanto a polícia baixa o pau no Boulevard Saint-Michel, carros são queimados e esbarro numa garota com a frase “pas de future!” pintada na cara. O trem deixa a Gare de Montparnasse, ligo o walkman para ouvir Barbara cantando “Marienbad” . Viajando para a Aquitânia, perto da Espanha, me afasto cada vez mais de Marienbad, cidade checa aonde nunca fui. A cólera dos estudantes ficou longe. Sinto-me solidário, voilà, mas ser estrangeiro me dá a liberdade enorme de ser apenas espectador. E para falar a verdade — a esta altura da vida, pouco além do meio da estrada — estou mais interessado em encontrar velhos em paz do que jovens em fúria…

Claire Cayron, minha tradutora francesa, me espera com um convite: visitar sua amiga Hélène, também tradutora, que mora na região de Périgord. Os nomes não me dizem nada, mas tudo sempre é bom chez Claire, eu concordo. O crepúsculo lentíssimo de abril desce atrás dos vidros, ouvimos Chico Buarque e espiamos as corças que às vezes saem do bosque, sempre nessa hora, para chegar perto da casa. Como se confiassem em nós, humanos medonhos. Pode ser tão doce a França, sabia?

Na manhã seguinte tomamos o carro pela estrada que persegue o rio Dordogne. Faço perguntas como uma criança ignorante: Périgord é a região onde foram encontrados os restos do homem de Cro-Magnon, nosso antepassado pré-histórico. Lugar sombrio, de energia estranha brotando de rochas, furnas, casas coladas às pedras. E Hélène, nessa mania francesa de afrancesar todos os nomes, é Helen Lane, a grande tradutora dos grandes latino-americanos (Octavio Paz, Vargas Llosa, Roa Bastos, García Márquez, Juan José Saer e muitos outros) para o inglês. Vive só numa cabana modestíssima, no fundo de um vale perdido no Périgord. Perto da origem? Na frente da casa esvoaça uma bandeira vermelha com dizeres em tibetano. Helen é budista, tem 84 anos.

Mas a pessoa que nos abre a porta, pequenina e sólida, de cabelos brancos e lisos cortados curtos com uma franja, tem um sorriso de menina. Olhos negros redondos, atentíssimos. Jovens, e sem cólera alguma. Ao lado do fogão ronrona seu companheiro, o gato Dagobert. Então, de repente, por um milagre feito faísca na cozinha dessa casa cheia de livros, ficamos subitamente os três — Helen, Dagobert, eu — amigos íntimos. Ela fala em francês, inglês, espanhol, italiano, e para minha surpresa até em português (traduziu Márcio de Souza e Nélida Piñon, de cuja generosidade lembra com carinho). Viveu no México, no Tibete, está de mudança para Albuquerque. Tem osteoporose, mostra o braço enfaixado enquanto serve o almoço que preparou e descreve rindo uma radiograf i a de sua própria coluna — “tão transparente, parecia de vidro”.

Na partida, ganho um presente: os poemas de Ryokan, monge budista zen do século XVIII. Desde então leio e releio este poema — no livro, em japonês e inglês — que tento precariamente traduzir para o português e deixar para vocês como outro presente, para que pensem em Helen Lane:

“Pensar viagens
toda noite me leva
a um pouso diferente mas o sonho que sonho
é sempre o mesmo: um lar.”


Lindo, não? Ah: pelos campos da França, os ajoncs continuam amarelos.
Caio Fernando Abreu, "Pequenas epifanias"

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