terça-feira, janeiro 31

América! América!

Estudei em escolas públicas — públicas mesmo. Todo mundo estudou: os tagarelas, os tímidos, os atarracados, os varapaus, o futuro cientista eletrônico, o futuro policial que certa noite viria a chutar um diabético até a morte ao confundi-lo com um bêbado que precisava se acalmar um pouquinho; os pobres, cheirando a lã suja, ao bebê urinoso que tinha ficado em casa e à geleia geral; os mais ricos, com suas golas de pele puídas, anéis de opala e papais que tinham carro (“Quê que o seu pai faz?”, “Ele num trabaia, ele é motorista de ônibus.” Todos dão risada). Lá estava ela — a Educação —, oferecida sem custo a todos nós, uma grossa fatia da população americana em plena depressão. Nós não estávamos deprimidos, é claro. Deixávamos essa parte para os nossos pais, que se desdobravam para criar um filho ou dois e caíam pelos cantos depois do trabalho e de jantares frugais, sempre ao lado do rádio, para ouvir as notícias da “terra natal” e de um homem de bigode preto chamado Hitler.

Acima de tudo, nós de fato nos sentíamos americanos na agitada cidadezinha litorânea onde peguei, como se fosse piolho, o ritmo dos meus primeiros dez anos de escola — um grande e ruidoso balaio de gato de católicos irlandeses, judeus alemães, suecos, negros, italianos e aquele raro e puro cocô do navio Mayflower: alguém que fosse inglês. A essa pobre tripulação de cidadãos mirins, as doutrinas da Liberdade e Igualdade deveriam ser transmitidas por meio das escolas comunitárias e gratuitas. Embora quase nos considerássemos bostonianos (o aeroporto da cidade, com seus aviões e dirigíveis prateados que pairavam tão belos, rosnava e reluzia do outro lado da baía), eram os arranha-céus de Nova York os ícones colados nas paredes das salas de aula; Nova York e a grande rainha verde que estendia uma luminária como símbolo da liberdade.

Toda manhã, levando a mão ao coração, prometíamos lealdade às Estrelas e Listras, uma espécie de toalha de altar que ficava no alto da mesa do professor. E cantávamos as letras carregadas de fumaça de pólvora e patriotismo que acompanhavam melodias impensáveis, vacilantes, agudas. Uma nobre e bela canção, “pelas grandezas das montanhas roxas acima da planície fértil”, sempre levou às lágrimas a poeta em miniatura que havia em mim. Naquela época eu não sabia dizer o que era a planície fértil e o que era a grandeza da montanha, e confundia Deus com George Washington (cuja expressão de vovozinha meiga também nos iluminava do alto da parede da sala, entre persianas impecáveis de caracóis brancos), mas mesmo assim gorjeava, ao lado dos meus pequenos e catarrentos compatriotas: “América, América! Deus derramou Sua graça sobre ti, e coroou teu povo com a fraternidade que se estende pelo mar brilhante”.


Do mar sabíamos uma coisa ou outra. Término de quase todas as ruas, contorcia, sacudia e arremessava de seu cinza amorfo pratos de porcelana, macaquinhos de madeira, delicadas conchas e sapatos de homens que tinham morrido. Ventos salgados e úmidos varriam sem parar nossos parquinhos — aquelas composições góticas de cascalho, macadame, granito e terra remexida, maliciosamente projetadas para esfolar e polir os joelhos mais tenros. Lá trocávamos cartas de baralho (só pelos desenhos no verso) e histórias indecentes, pulávamos corda, brincávamos de bola de gude e encenávamos as emoções do rádio e dos quadrinhos da nossa época (“Quem conhece o mal que espreita no coração do homem? O Sombra conhece… Ha ha ha!” ou “Olhem lá no céu! É um pássaro? É um avião? Não, é o Super-Homem!”). Se estávamos destinados a algum fim especial — marcados, condenados, limitados, fadados —, não sabíamos. Sorríamos e saltávamos de nossas carteiras para jogar queimada, tão abertos e tão confiantes quanto o próprio mar.

Afinal, podíamos ser qualquer coisa. Se trabalhássemos. Se nos dedicássemos aos estudos. Nosso sotaque, nosso dinheiro e nossos pais não faziam diferença. Não havia advogados que saíam da família do carroceiro de carvão e médicos da lata do lixeiro? A educação era a resposta, e só Deus sabe como ela havia chegado a nós. Invisível, suponho, no início — um místico brilho infravermelho que saía das tabuadas, poemas pavorosos que exaltavam o céu azul do mês de outubro, um mundo de histórias que parecia começar e terminar com a Festa do Chá de Boston, em que os peregrinos e os índios eram, como o eohippus, pré-históricos.

Depois a obsessão da universidade chegaria para nos dominar feito um vírus sutil e aterrorizante. Todo mundo tinha que ir a alguma universidade. Fosse um curso de administração, um curso técnico, uma faculdade estadual, um curso de secretariado, uma universidade da Ivy League, um curso de agronomia. Primeiro os estudos, depois o trabalho. Quando nós (tanto o futuro policial quanto o futuro gênio da tecnologia) chegamos como uma explosão ao próspero segundo grau pós-guerra, orientadores vocacionais trabalhavam em período integral para nos estimular, com frequência cada vez maior, a discutir motivações, objetivos, assuntos escolares, empregos — e universidades. Professores excelentes caíam do céu como meteoros: professores de biologia exibiam cérebros humanos, professores de inglês nos inspiravam com seu apego ideológico por Tolstói e Platão, professores de arte nos conduziam pelos guetos de Boston e depois nos devolviam ao cavalete para que espalhássemos na tela a tinta guache da escola pública com consciência social e raiva. A excentricidade, o risco que se corre por ser especial demais, era negociada e afastada de nós como o polegar que uma criança deixa de chupar.

A orientadora vocacional das meninas diagnosticou meu problema logo de cara. Eu era perigosamente intelectual, só isso. Sem a combinação adequada de atividades extracurriculares, minha elevada e pura sucessão de notas dez perigava me levar direto para o abismo. Cada vez mais as universidades procuravam alunos versáteis. Àquela altura eu já tinha estudado Maquiavel nas aulas de história moderna. Peguei a deixa.

Mas, sem que eu soubesse, essa orientadora vocacional tinha uma irmã gêmea idêntica de cabelos brancos que eu sempre encontrava nos supermercados e no dentista. Com essa gêmea eu me abria sobre meu leque de atividades que crescia sem parar — coisas como comer gomos de laranja no alojamento dos jogos de basquete femininos (eu havia sido selecionada para o time), pintar Ferdinandos e Violetas gigantescos para os bailes da turma, fazer a diagramação dos bonecos do jornalzinho da escola à meia-noite, enquanto minha coeditora exausta lia as piadas no fim das colunas da New Yorker. A expressão vazia e estranhamente emudecida da gêmea da minha orientadora vocacional não me desencorajou, nem a aparente amnésia de sua sósia pálida e eficiente que ficava na sala da escola. Me tornei uma adepta adolescente e enfurecida do pragmatismo.

“O uso é a verdade, e a verdade é o uso”, devo ter resmungado, dobrando as meias soquete para ficar igual às minhas colegas de escola. Não havia uniforme, mas havia uniforme, sim — o corte de cabelo tigela, todo certinho, a saia com blusa de malha, os loafers, cópias pioradas dos mocassins dos indígenas. Chegamos até a fomentar, em nossa estrutura democrática, duas relíquias milenares do esnobismo — duas irmandades: Debutantes e Açúcar com Pimenta. No início de cada ano letivo, as veteranas mandavam convites para as novas alunas — as bonitas, as populares, as rivais em potencial. Uma semana de iniciação precedia nossa adequação arrogante à famigerada Norma. Os professores eram contra a semana de iniciação e os meninos tiravam sarro, mas ninguém podia nos impedir.

Como acontecia com toda iniciada, me atribuíram uma Irmã Mais Velha que transformou em rotina a missão de destruir meu ego. Por uma semana inteira fui proibida de usar maquiagem, tomar banho, pentear os cabelos, trocar de roupa ou falar com os meninos. Quando amanhecia, eu ia a pé até a casa da minha Irmã Mais Velha para fazer seu café da manhã e arrumar sua cama. Depois, arrastando seus livros insuportavelmente pesados, além dos meus próprios, eu a seguia feito um cachorro até a escola. No caminho ela podia me mandar subir numa árvore e ficar pendurada num galho até cair, ou fazer perguntas grosseiras aos passantes, ou sair pelo comércio pedindo uvas podres e arroz mofado. Se eu sorrisse — isto é, se mostrasse qualquer traço de ironia ante à minha escravidão —, tinha de me ajoelhar na calçada e arrancar o sorriso do rosto. No instante em que o sinal do fim das aulas tocava, a Irmã Mais Velha assumia o controle. Quando anoitecia eu sentia dor e cheirava mal; a tarefa de casa zunia dentro de um cérebro embotado e zonzo. Estavam me moldando para ser Normal.

Sabe-se lá como, não funcionou — essa iniciação ao nihil do pertencimento. Talvez eu fosse estranha demais. O que essas representantes da feminilidade americana escolhidas a dedo faziam em suas reuniões da irmandade? Comiam bolo; comiam bolo e fofocavam sobre o encontro do sábado à noite. O privilégio de ser alguém começava a mostrar a outra face — a pressão de ser todo mundo; logo, ninguém.

Há pouco tempo espiei uma escola primária americana pelo vidro lateral da fachada: carteiras de tamanho infantil e mesas de madeira clara; fogões de brinquedo e bebedouros minúsculos. Luz do sol por todo lado. Em um quarto de século, a anarquia, o desconforto e a sujeira de que eu me lembrava com tanta ternura tinham sido amansados. Uma das turmas havia passado a manhã dentro de um ônibus para que os alunos aprendessem a pagar a passagem e perguntar sobre as paradas. Ler (na minha época se aprendia aos quatro anos com as caixas de sabão) se tornou uma arte tão traumática e imprevisível que o indivíduo tem sorte se conseguir dominá-la aos dez. Mas as crianças sorriam em seu pequeno círculo. Será que cheguei a ver, no armário de primeiros socorros, o reluzir dos frascos — calmantes e sedativos para o rebelde mirim, o artista, o diferente?
Sylvia Plath, "Johnny Panic e a Bíblia de Sonhos e outros textos em prosa"

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