sexta-feira, abril 28

Das crenças

Numa de nossas ocasionais conversas fiadas, ontem de noite disse-me o porteiro: “rato depois de velho vira morcego”. Olhei-o atentamente. Era um velho porteiro. Não estava brincando. Devia ser teimoso como todos os velhos. Seria pedante da minha parte tentar convencê-lo de que a sua História Natural não o era muito... Deixá-lo! Afinal, por que os ratos velhos não haveriam de virar morcegos, da mesmíssima forma que as velhas solteironas viram postes de fim de linha? Da mesma forma que os meus leitores desatentos viram fumaça inconsistente e os leitores incrédulos não viram nada... (E daí, você viu ou não viu?!) Pois é uma grande coisa escutar sem contradizer.

Me lembro que, quando menino, nada retruquei quando uma velha cozinheira preta me assegurou que seria muito, muito rica no Céu... Seria loira, também? Já não me lembro.

E, em criaturas de outro estágio cultural, também existem crenças de que não me seria lícito duvidar. Imaginem se, por acaso, com os meus argumentos, eu conseguisse destruí-las! Que teria para lhes dar em troca?

Nunca se deve tirar o brinquedo de uma criança…

Mario Quintana, "Caderno H"

Torneira que não se fecha

 


1919

A violência inicial de Shadrack havia coincidido com um memorando da equipe executiva do hospital referente à distribuição de pacientes em áreas de alto risco. Havia uma clara necessidade de espaço. A prioridade ou a violência garantiu a baixa de Shadrack, 217 dólares em dinheiro, uma mala cheia de roupas e cópias de documentos que pareciam bastante oficiais.

Quando pôs os pés fora do hospital, os jardins o desarmaram: os arbustos podados, o gramado delimitado, as trilhas sem desvios. Shadrack olhou para os trechos cimentados: cada um deles levava lucidamente a um destino supostamente desejável. Não havia cercas, nem avisos, nem obstáculos entre o concreto e a grama verde, portanto era fácil ignorar a passagem ordenada de pedras e cortar na direção oposta — uma direção própria.

Shadrack ficou parado aos pés da escadinha do hospital observando a cabeça das árvores balançando pesarosa mas inofensivamente, já que os troncos tinham raízes profundas demais na terra para ameaçá-lo. Somente as trilhas o inquietavam. Ele se reequilibrou na outra perna, se perguntando como chegar ao portão sem pisar no concreto. Enquanto tramava seu caminho — onde teria que saltar, onde contornar um monte de arbustos —, uma gargalhada alta o assustou. Dois homens subiam os degraus. Então percebeu que havia muitas pessoas ao redor, e que só agora as via, se não tinham acabado de se materializar. Eram folhas finas, como bonecos de papel flutuando pelas trilhas. Algumas estavam sentadas em cadeiras de rodas, empurradas por outras figuras de papel. Todas pareciam fumar, e os braços e pernas se curvavam à brisa. Um bom vento forte os arrebataria e levaria para longe e talvez aterrissassem entre as copas das árvores.

Shadrack se arriscou. Quatro passos e estava no gramado, rumo ao portão. Manteve a cabeça abaixada para não ver as pessoas de papel se virando e se curvando aqui e ali, e se perdeu no caminho. Ao erguer os olhos, estava junto a um prédio baixo vermelho separado do prédio principal por uma passagem coberta. Surgiu de algum lugar um aroma adocicado que o lembrava de alguma coisa dolorosa. Olhou ao redor à procura do portão e viu que tinha seguido exatamente na direção contrária em seu percurso complexo pelo gramado. Bem à esquerda do prédio baixo havia uma pista de cascalho que parecia levar para além das dependências do hospital. Trotou rapidamente até lá e deixou, por fim, um refúgio de mais de um ano, apenas oito dias dos quais se recordava na íntegra.

Depois de chegar à estrada, seguiu na direção oeste. A longa estadia no hospital o deixara fraco — fraco demais para se equilibrar de pé no acostamento de cascalho da estrada. Arrastou os pés, ficou tonto, parou para respirar, recomeçou, tropeçando e cheio de suor mas se recusando a enxugar as têmporas, ainda com medo de olhar para as mãos. Passageiros de carros quadrados, escuros, fechavam os olhos para o que pensavam ser um bêbado.

O sol já estava bem em cima de sua cabeça quando chegou a uma cidade. Alguns quarteirões de ruas sombreadas e já estava em seu âmago — um centro bonito, silenciosamente regrado.

Exausto, os pés congestionados de dor, sentou-se no meio-fio para tirar os sapatos. Fechou os olhos para não ver as mãos e se atrapalhou com os cadarços dos sapatos pesados de cano alto. O enfermeiro os amarrara em nós duplos, como se faz para crianças, e Shadrack, havia muito desacostumado à manipulação de coisas complicadas, não conseguia desatá-los. Descoordenadas, as unhas de seus dedos puxavam os nós. Lutou contra uma histeria nascente que não era mera ansiedade de libertar os pés doloridos; sua vida dependia da soltura dos nós. De repente, sem levantar as pálpebras, começou a chorar. Vinte e dois anos de idade, fraco, suado, assustado, sem coragem de admitir que nem sabia quem ou o que ele era… sem passado, sem linguagem, sem tribo, sem origem, sem caderneta de endereços, sem pente, sem lápis, sem relógio, sem lenço de bolso, sem tapete, sem cama, sem abridor de lata, sem cartão-postal desbotado, sem sabonete, sem chave, sem bolsa para guardar fumo, sem cueca suja e nada nada nada para fazer… só tinha certeza de uma única coisa: a monstruosidade descontrolada de suas mãos. Chorou em silêncio no meio-fio de uma cidadezinha do Meio-Oeste, se perguntando onde estava a janela, e o rio, e as vozes suaves junto à porta…

Em meio às lágrimas viu os dedos se unindo aos cadarços, primeiro hesitantes, depois ligeiros. Os quatro dedos de cada mão se misturaram ao tecido, se enrolaram e ziguezaguearam para dentro e para fora dos minúsculos ilhós.

Quando a polícia chegou, Shadrack já estava sofrendo de uma dor de cabeça lancinante, que não foi aplacada pelo alívio sentido quando os policiais tiraram suas mãos do que ele imaginava ser um enredamento permanente nos cadarços de seus sapatos. Eles o levaram para a cadeia, ficharam por vadiagem e embriaguez e o trancaram em uma cela. Deitado em um catre, só restava a Shadrack fitar a parede com impotência, de tão paralisante que era a dor na cabeça. Ficou deitado em agonia por bastante tempo e depois se deu conta de que fitava letras pintadas ordenando que fosse se foder. Enquanto examinava aquelas palavras, a dor na cabeça ia diminuindo.

Como o luar se esgueirando sob uma veneziana, uma ideia se insinuou: o desejo antigo de ver o próprio rosto. Procurou um espelho; não havia nenhum. Por fim, tomando o cuidado de manter as mãos às costas, foi até o vaso sanitário e espiou. A água estava desigualmente iluminada pelo sol, então não conseguiu ver nada. Voltando ao catre, pegou o lençol e cobriu a cabeça, deixando a água escura o suficiente para ver seu reflexo. Ali, na água do vaso, viu um rosto preto sério. Um preto tão definitivo, tão inequívoco, que o espantou. Vinha cultivando uma apreensão medrosa de que ele não era real — de que não existia. Mas, quando o negror o saudou com sua presença incontestável, não lhe faltou mais nada. Naquela alegria, se arriscou a soltar uma ponta do lençol e dar uma olhada nas mãos. Estavam paradas. Cortesmente paradas.

Shadrack se levantou e voltou ao catre, onde caiu no primeiro sono de sua nova vida. Um sono mais profundo do que as drogas do hospital; mais profundo do que caroços de ameixa, mais imperturbável do que a asa de um condor; mais tranquilo do que a curvatura dos ovos.

O delegado olhou por entre as barras para o rapaz de cabelo emaranhado. Tinha lido os documentos do presidiário e chamado um fazendeiro. Quando Shadrack despertou, o delegado lhe devolveu os documentos e o acompanhou até a traseira de uma carroça. Shadrack entrou e em menos de três horas estava de volta a Medallion, pois estivera a apenas trinta e cinco quilômetros de sua janela, seu rio e as vozes suaves junto à porta.

Na traseira da carroça, escorado por sacas de abóboras e colinas de jerimuns, Shadrack deu início a uma luta que duraria doze dias, uma luta para ordenar e enfocar experiências. Tinha a ver com a criação de um espaço para o medo como forma de controlá-lo. Conhecia o cheiro da morte e tinha pavor dele, pois não era capaz de prevê-lo. Não era a morte ou morrer o que o amedrontava, mas a imprevisibilidade de ambos. Ao esmiuçar tudo isso, chegou à ideia de que, caso um dia do ano fosse dedicado ao tema, todo mundo poderia tirá-lo do caminho e o restante do ano seria seguro e livre. Foi assim que ele instituiu o Dia Nacional do Suicídio.

Toni Morrison, 'Sula"

Livraria de Antigamente

Outro dia, falando sobre o Rio de hoje, Antônio Callado disse que sente falta de uma livraria como aquela de antigamente. E citou a Freitas Bastos e a Civilização Brasileira. A Freitas Bastos ficava no andar térreo do Liceu de Artes e Ofícios, no prédio que foi abaixo para dar lugar à atual sede da Caixa Econômica Federal. O local era privilegiado — esquina da Rua Bittencourt da Silva com Largo da Carioca. No primeiro andar desse prédio, ficavam a redação e a oficina d’O Globo. Ali, Callado começou a sua vida de jornal, ao lado de Nelson Rodrigues e do hoje editor Alfredo Machado, antes de passar ao “Correio da Manhã” e de ir para a Inglaterra trabalhar na BBC durante a guerra.

A referência à Freitas Bastos presumo que esteja ligada, na reminiscência de Callado, a essa antiga sede d’O Globo. por onde passei vários anos depois. Quanto à Civilização Brasileira. está associada à editora do mesmo nome e, claro, ao nosso amigo Enio Silveira, o bravo intelectual que desde cedo se projetou como editor e livreiro. Como editor de Callado, Ênio lançou a 1ª edição de “Quarup”. Como autor, também eu passei pela Civilização. com uma novela que foi incluída no livro dos Sete Pecados Capitais. Enio teve a idéia e me incumbiu do pecado da avareza.


Com uma ponta de nostalgia, Antônio Callado devia estar pensando num tipo de livraria que já não existe hoje no Rio — grande estabelecimento em que era possível encontrar de tudo. Tudo aqui tanto se refere a livro como a gente. Ou pelo menos certa classe de gente chegada a livros: o professor e o aluno, o romancista consagrado e o poeta inédito, o erudito em busca de uma raridade bibliográfica e o curioso atrás de uma novidade. Essas livrarias dos anos 40 e 50 ainda conservavam uma atmosfera da remota tradição do salão literário. Não era apenas uma loja para vender livros. Eram também um ponto de encontro para o bate-papo, a troca de idéias e de fuxicos.

Não sei se há uma história das livrarias do Rio. Sei, porém, que ela anda dispersa em muitos livros de memórias, em biografias e em crônicas da cidade. A livraria faz parte da vida cultural de uma nação. No caso do Rio, que ainda se ousa chamar de capital cultural do Brasil, as livrarias têm uma história inseparável da própria história de nossas letras. Para não ir muito longe e ficar num exemplo notório, bastaria evocar Machado de Assis na Livraria Garnier. Era lá, na Rua do Ouvidor, que à tarde ele se tornava visível, cercada pelos velhos amigos e pelos novos admiradores. Na mesma rua, anos mais tarde. na Livraria José 0lympio, Graciliano Ramos assinava o ponto todo santo dia, num grupo a que pertencia também José Lins do Rego.

A propósito da entrevista de Antônio Callado, andei me lembrando das livrarias de antigamente em Belo Horizonte. Mera coincidência, leio num jornal de Minas a noticia da morte de Oscar Nicolai. Tinha 78 anos. Nasceu em Buenos Aires e aos oito meses foi para Porto Alegre. Em 1930, instalou-se em Belo Horizonte, como representante da Editora Globo. Estabeleceu-se primeiro na Av. Paraná. Comprou depois um bar na Av. Afonso Pena e ali conheceu o esplendor e a glória, com a livraria situada no endereço comercial mais caro da cidade. Era impossível importar livros da Europa, sobretudo da França, por causa da guerra. Com um espaço de catedral, a Livraria Nicolai tinha tudo que editava no Brasil e abriu um horizonte para a América Latina, em particular para Argentina, Chile e México.

Mais do que isso, porém, o que o Nicolai nos abriu foi um crédito baseado mais em nossa fome de leitura do que em nossa capacidade financeira. Fora o felizardo do Sábato Magaldi, que tinha o respaldo paterno, todos nós atolávamos em dívidas. Bom psicólogo, ou excelente vendedor, o Nicolai deixava que levássemos os livros para casa, a titulo de experiência, com direito a devolução. Claro que ninguém conseguia devolver nada e tinha que cair com o dinheiro, mesmo a prestação.

Quando submarinos nazistas afundaram navios brasileiros, a Livraria Alemã foi saqueada e incendiada. Foi um ato digno de Hitler. A família Blubm mudou-se para o Rio. O Nicolai prosperou e cresceu. A livraria era espaçosa e acolhedora, onde encontrávamos os livros, nossos amigos, e os nossos amigos, amigos dos livros. Com o sistema de crédito pioneiro e cordial, Oscar Nicolai estimulou o vicio impune da leitura e contribuiu para a nossa definitiva dependência desse objeto de consumo, todavia sagrado, que é o livro.
Otto Lara Resende

quinta-feira, abril 27

Meditação

Será que não há nenhum contexto para as nossas vidas? Nenhuma canção, nenhuma literatura, nenhum poema cheio de vitaminas, nenhuma história ligada à tua experiência que possas passar para nos ajudarem a ficar mais fortes? Tu és um adulto. O mais velho, o mais sábio. Para de pensar em salvar a tua imagem. Pensa sobre as nossas vidas e conta-nos sobre o teu mundo em particular. Desenvolve uma história. A narrativa é radical, cria-nos a nós próprios no momento exato em que está a ser criada. Nós não vamos te culpar se o teu alcance excede a tua compreensão, se o amor incendeia as tuas palavras, se elas descem em chamas e nada deixam a não ser a queimadura. Ou se, com a reticência das mãos de um cirurgião, as tuas palavras apenas suturam os locais por onde o sangue pode ter fluído. Sabemos que nunca o conseguirás fazê-lo corretamente – de uma vez por todas. A paixão nunca é suficiente; nem a habilidade. Mas tenta. Por nós, e por ti próprio, esquece o teu nome na rua; conta-nos aquilo que o mundo tem sido para ti, tantos nos bons como nos maus momentos. Não nos digas o que acreditar, o que recear. 

A linguagem é a meditação.
Toni Morrison, na entrega do Prêmio Nobel de Literatura de 1993

Ao pão do dia

 


A geometria do caos

Então Faulques falou durante um bocado - à sua maneira, entre pausas prolongadas e silêncios - de escolhas e de acasos. Fê-lo referindo-se ao franco atirador junto de quem passara quatro horas deitado no chão do terraço de um edifício de seis andares de onde se dominava uma ampla vista de Sarajevo. O franco atirador era um sérvio-bósnio de uns quarenta anos, magro e de olhos tranquilos, que cobrara a Faulques duzentos marcos para o deixar ficar a seu lado enquanto disparava sobre as pessoas que corriam a pé ou passavam a toda a velocidade de automóvel pela avenida Radomira Putnika, na condição de o fotografar a ele e não à rua, para evitar que localizassem a sua posição através do enquadramento. Conversaram em alemão durante a vigília, enquanto Faulques brincava com as máquinas para que o outro se habituasse a elas, e o seu interlocutor fumava um cigarro atrás do outro, inclinando-se de vez em quando para dar uma vista de olhos atenta ao longo do cano de uma espingarda SVD Dragunov, encaixada entre dois sacos de terra, onde estava apoiada uma potente mira telescópica que apontava para a rua, através de uma fresta estreita aberta na parede. Sem complexos, o sérvio tinha admitido que disparava igualmente contra homens, mulheres ou crianças e Faulques não lhe fez perguntas de índole moral, entre outras coisas porque não estava ali para isso e também porque conhecia sobejamente - não era o seu primeiro franco-atirador - os motivos simples pelos quais um homem com as doses correctas de fanatismo, rancor ou desejo de lucro mercenário podia matar indiscriminadamente. Fez perguntas técnicas, de profissional para profissional, acerca de distâncias, campo de visão, influência do vento e da temperatura na trajectória das balas. Explosivas, especificara o outro num tom de voz objectivo. Capazes de fazer explodir uma cabeça como se fosse um melão sob um martelo, ou de rebentar as entranhas com total eficácia. E como escolhes, perguntou Faulques. Refiro-me a se disparas ao acaso ou seleccionas os alvos. Então o sérvio expôs uma coisa interessante. Nisto não há acaso, explicou. Ou havia muito pouco: o necessário para que alguém decidisse passar por ali no momento certo. O resto era coisa sua. A alguns matava-os, a outros não. Tão fácil como isso. Dependia da forma de andar, de correr, de parar. Da cor do cabelo, dos gestos, da atitude. Das coisas a que os associava ao vê-los. No dia anterior tinha estado a apontar para uma rapariguinha ao longo de quinze ou vinte metros e, de repente, um gesto casual desta fê-lo pensar na sobrinha pequena - nesse ponto o franco-atirador abriu a carteira e mostrou a Faulques uma fotografia familiar. - De modo que não atirou sobre ela, escolhendo em troca uma mulher que estava perto, debruçada a uma janela, quem sabe talvez à espera de ver como matavam a rapariga que caminhava distraída e a descoberto. Por essa razão dizia que isso do acaso era relativo. Havia sempre alguma coisa que o fazia decidir-se por este ou por aquele, dificuldades operacionais à parte, claro. Passava-se o mesmo com os condutores de automóveis em andamento: às vezes deslocavam-se depressa de mais. De repente, a meio da explicação, o franco-atirador ficara tenso, as suas feições pareceram definhar e as pupilas contraíram-se enquanto se inclinava sobre a espingarda, ajustava a culatra ao ombro, colava o olho direito ao visor e colocava suavemente o dedo no gatilho. 'Jagerei', sussurara no seu mau alemão, entre dentes, como se lá em baixo o pudessem ouvir. Caça à vista. Decorreram alguns segundos enquanto a espingarda descrevia um lento movimento circular para a esquerda. Depois, com um único estampido, a culatra bateu-lhe no ombro e Faulques pôde fotografar o primeiro plano daquela cara magra e tensa, com um olho semicerrado e o outro aberto, a pele por barbear, os lábios apertados como uma linha implacável: um homem qualquer, com os seus critérios selectivos, as suas recordações, antipatias e inclinações, fotografado no momento exacto de matar. Bateu ainda uma segunda chapa quando o franco-atirador afastou a cara da culatra da espingarda, olhou para a objectiva da Leica com olhos gelados e, depois de beijar ao mesmo tempo os três dedos da mão com que tinha disparado, polegar, indicador e médio, fez com eles a saudação sérvia da vitória. Queres que te diga em quem acertei?, perguntou. Porque escolhi este alvo e não outro? Faulques, que verificava a luz com o fotómetro, não quis saber .A minha máquina não fotografou isso, disse, logo não existe. Então o outro olhou para ele em silêncio durante algum tempo, sorriu apenas, depois ficou sério e perguntou-lhe se há dois dias tinha passado junto da ponte Masarikov ao volante de um Volkswagen branco com um vidro partido e as palavras 'Press-Novinar' feitas com fita adesiva vermelha sobre o capô. Faulques ficou imóvel por instantes, acabou de guardar o fotómetro no seu saco de lona e respondeu com outra pergunta cuja resposta adivinhava. Então o sérvio deu uma palmada leve na 'Zeiss' telescópica da sua espingarda. Porque te tive, respondeu, nesta mira, durante quinze segundos. Restavam-me apenas duas balas e, depois de pensar, disse para comigo: hoje não vou matar este 'glupan'. Este tonto."

Arturo Pérez-Reverte, "O Pintor de Batalhas"

Em defesa da empada

Em coluna recente, comparei o ex-ator e ex-presidente dos EUA Ronald Reagan a uma empada. O leitor Marcos Benassi escreveu para defender a empada --compará-la a Reagan era uma ofensa, ele disse. E com razão. Admito publicamente o ato falho --logo eu, devorador das empadas do Caranguejo, em Copacabana-- e peço perdão. A partir de agora, vou pensar duas vezes antes de usar expressões que diminuam ou ridicularizem os alimentos. Exemplos.

Fulano tem cara de bolacha. Beltrano é o maior pastel. Sicrano não passa de uma galinha morta. E sabe o picolé de chuchu? Isso vai acabar em pizza. Deu o maior sururu. Aquele negócio é um angu de caroço. Já soube da marmelada? Comigo é pão, pão, queijo, queijo. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Puxa, que abacaxi! Tem gente que só fala abobrinha. Esse goleiro tem mão de alface --vive engolindo frango. Ih, rapaz, que pepino! Poxa, você me jogou uma casca de banana. Tomei um chá de cadeira.

Isso é do tempo em que se amarrava cachorro com linguiça. Quer parar de encher linguiça? Futebol é uma cachaça. Não sou de fritar bolinho. Deixe de ser porco, vá tomar banho! Hoje você está um xarope. E você, um purgante. Teu time levou um chocolate! Aquele assunto já virou carne de vaca. Fiz só o arroz com feijão. Houve uma época em que tive de passar a pão e laranja. Fui obrigado a pisar em ovos. Precisamos separar o joio do trigo. Cozinhei o cara em fogo brando. Isso é que nem jabuticaba, só tem no Brasil. Putz, viajei na maionese! Música chiclete essa, hein?

E por aí vai. São raros os casos em que os alimentos servem para expressar conforto, prazer, elogio. Isso assim-assado é um doce de coco. É sopa no mel. Mamão com açúcar. Um chuchu!

Pensando melhor, corretas ou não, vou continuar usando todas as expressões. Os alimentos não estão aí apenas para nos matar a fome. São também nutrientes da língua.

quarta-feira, abril 26

Leitura não tem idade

 


Sonha o fidalgo

Gonçalo, que abominava aquela lenda, a silenciosa figura degolada, errando por noites de inverno entre as ameias da Torre com a cabeça nas mãos — despegou da varanda, deteve a Crônica imensa: — Toca a deitar, ó Videirinha, hein? Passa das três horas, é um horror. Olhe! O Titó e o Gouveia jantam cá na Torre, no Domingo.

Apareça também, com o violão e cantiga nova; mas menos sinistra...
Atirou o charuto, fechou a vidraça da sala — a “sala velha”, toda revestida desses denegridos e tristonhos retratos de Ramires que ele desde pequeno chamava as carantonhas dos avós. E, atravessando o corredor, ainda sentia rolarem ao longe, no silêncio dos campos cobertos de luar, façanhas rimadas dos seus:

Ai! lá na grande batalha...
El-Rei Dom Sebastião...
O mais moço dos Ramires
Que era pajem do guião...


Despido, soprada a vela, depois de um rápido sinal da cruz, o Fidalgo da Torre adormeceu. Mas no quarto, que se povoou de sombras, começou para ele uma noite revolta e pavorosa. André Cavaleiro c João Gouveia romperam pela parede, revestidos de cotas de malha, montados em horrendas tainhas assadas! E lentamente, piscando o olho mau, arremessavam contra o seu pobre estômago pontoadas de lança, que o faziam gemer e estorcer sobre o leito de pau preto. Depois era, na Calçadinha de Vila-Clara, o medonho Ramires morto, com a ossada a ranger dentro da armadura, e El-Rei Dom Afonso II, arreganhando afiados dentes de lobo, que o arrastavam furiosamente para a batalha das Navas. Ele resistia, fincando nas lajes, gritando pela Rosa, por Gracinha, pelo Titó! Mas D. Afonso tão rijo murro lhe despedia nos rins, com o guante de ferro, que o arremessava desde a Hospedaria do Gago até a Serra Morena, ao campo da lide, luzente e fremente de pendões e de armas. E imediatamente seu primo d'Espanha, Gomes Ramires, Mestre, de Calatrava, debruçado do negro ginete, lhe arrancava os derradeiros cabelos, entre a retumbante galhofa de toda a hoste sarracena e os prantos da tia Louredo trazida como um andor aos ombros de quatro Reis!... — Por fim, moído, sem sossego, já com a madrugada clareando nas fendas das janelas e as andorinhas piando no beirai dos telhados, o Fidalgo da Torre atirou um verdadeiro repelão aos lençóis, saltou ao assoalho, abriu a vidraça — e respirou deliciosamente o silêncio, a frescura, a verdura, o repouso da quinta.

Mas que sede! uma sede desesperada que lhe encortiçava os lábios!
Recordou então o famoso fruit salt que lhe recomendara o Dr. Mattos, arrebatou o frasco, correu à sala de jantar em camisa. E, a arquejar, deitou duas colheradas num copo d'água da Bica-Velha, que esvaziou dum trago, na fervura picante.
— Ah, que consolo, que rico consolo!. . .

Voltou derreadamente à cama: e readormeceu logo, muito longe, sobre as relvas profundas d'um prado de África, debaixo de coqueiros sussurrantes, entre o apimentado aroma de radiosas flores que brotavam através de pedregulhos de ouro. Dessa perfeita beatitude o arrancou o Bento, ao meio-dia, inquieto com “aquele tardar do Sr. Doutor”.

— É que passei uma noite horrenda, Bento: Pesadelos, pavores, bulhas, esqueletos... Foram os malditos ovos com chouriço; e o pepino...

Sobretudo o pepino! Uma ideia daquele animal do Titó. . . Depois, de madrugada, tomei o tal fruit salt, e estou ótimo, homem!... Estou otimíssimo! Até me sinto capaz de trabalhar. Leva para a livraria uma chávena de chá verde, muito forte. . . Leva também torradas.
Eça de Queiroz, "A ilustre casa de Ramires"

Viver com um só livro

Já algures contei que a escritora inglesa Nancy Mitford dizia ter lido em toda a sua vida um único livro: WHITE FANG, de Jack London (na tradução portuguesa, CANINOS BRANCOS). Achou o livro de tal modo bom, que não sentiu necessidade de ler mais nenhum. Quando sentia desejo de ler, ia buscar esse famoso romance, porque tinha a certeza de ir gostar, ao passo que não poderia ter tal certeza, se fosse buscar outro livro qualquer. Isto é, o livro de London “secava” , para ela, todo o território literário em volta. Obra que lhe não trouxesse aquele mundo e lhe não desse a mesma espécie de prazer não lhe interessava.

Isto, assim dito, pode parecer bizarro e é-o, dado o extremismo que implica. Mas, de certo modo, penso que todos vivemos algo análogo, embora não durando, para nós, tal exclusividade num livro só, a vida inteira. Porque eu próprio experimentei já algo de parecido com isto, embora por um período relativamente curto. Vou dar alguns exemplos.

Quando, por altura dos meus catorze ou quinze anos, me caiu nas mãos um exemplar esfrangalhado do admirável romance de Stendhal, LE ROUGE ET LE NOIR, numa bela tradução de José Marinho, o livro de tal modo se apossou de mim, que, durante algum tempo, livro que não tivesse as virtudes apaixonadas e acutilantes deste não me dizia nada e só me aborrecia. A candura da Senhora de Rênal ou o orgulho da Mathilde de La Mole, dados naquela prosa lavada, acutilante e voltaireana, tomaram completa conta de mim. Ou se era Stendhal ou se não era nada. A sedução foi de tal ordem, que, chamando-se o protagonista do romance Julien Sorel, pus-me logo a escrever um romance intitulado HISTÓRIA DE JULIÃO, para ombrear com aquele admirado rival. Victor Hugo, na adolescência, desvelava assim a sua ambição: “Quero ser Chateaubriand ou nada.” Eu dizia com os meus botões: “Quero ser Stendhal ou nada!”

Quem não foi megalómano, na adolescência, é porque nunca foi realmente adolescente. Até porque os adolescentes megalómanos se convertem, anos depois, em adultos com os pés bem na terra. Assim aconteceu comigo que, em devido tempo, com a alma a sangrar, mandei para o cesto dos papéis a minha HISTÓRIA DE JULIÃO. Ninguém tem de ter acesso às nossas tropelias.

Tempos depois, encontrei, no CANDIDE de Voltaire, na sua prosa ágil e na sua ironia atrevida de “gamin”, a mesma sedução envolvente, que encontrara em Stendhal. Era um dizer um enorme número de coisas, em poucas palavras e em velocidade de cruzeiro.

Uma verdadeira sedução!

Mas o grande terramoto de deslumbramento foi a descoberta do teatro de Oscar Wilde, de quem li tudo, peça por peça, numa agonia de nunca poder ser tão brilhante como ele. Como é que se podia escrever, sem se ser capaz daquela cintilação sem igual? WIlde, para mim, como Jack London, para Nancy Mitford, secava todo o território da literatura à minha volta. Era como os eucaliptos que secam a terra em seu redor. O brilho demasiado intenso ofusca e agoniza: como se pode não tê-lo? E punha-me, desastradamente, a inventar fórmulas infalíveis para produzir paradoxos… Pela vida fora e num número muito variado de países, mas sobretudo em Londres, nunca perdi uma encenação de uma peça de Wilde. A sedução foi para ficar. Nem na trágica queda final da sua vida, na sórdida exposição nos tribunais, acusado de pedofilia, Wilde resistiu a fazer faiscar o seu génio cintilante, mesmo ao preço de agravar o seu caso. Foi como ele previra, anos antes: “Na minha obra, pus só talento, génio pu-lo na minha vida.” Génio de brilho negro, mas ofuscante.

Outro livro que me marcou profundamente, por volta dos meus 16 anos, foi o volumoso romance americano, da autoria de um escritor hoje esquecido, Henry Bellamann, intitulado KING’S ROW, publicado em 1940. Situado numa pequena cidade ficticiamente conhecida como King’s Row, desenvolve uma história complexa, em volta das vidas de cinco crianças e da evolução das suas vidas. O romance abriu, para mim, muitas portas sobre temas “quentes” como a loucura, o sadismo, o sexo, o incesto, o homossexualismo e o suicídio, tudo urdido com inegável mestria. Também, por algum tempo, só queria encontrar outro livro como este, mas, infelizmente, Bellamann tentou escrever uma sequela para KING’S ROW, o mais famoso dos seus romances, tendo porém falecido, de um ataque cardíaco, em 1945. KING’S ROW teve um enorme êxito, embora rodeado de acesa controvérsia, por ter revelado a hipocrisia de uma pequena cidade, desvelando, com grande mestria, temas tabus, naquela época. Eu li este livro, poucos anos depois de ter visto uma inesquecível adaptação cinematográfica dele, dirigida pelo notável Sam Wood, com interpretações de Ann Sheridan (Randy), de Robert Cummings (Parris Mitchel), Ronald Reagan (Drake), Claude Rains, o inesquecível polícia de CASABLANCA (Dr. Alexander Tower), Betty Field (Cassandra Tower), Charles Coburn (Dr. Gordon) e Nancy Coleman (Louise Gordon). O filme omite um ou outro tabu e emagrece bastante a história, mas deixa, ainda assim, uma forte impressão. Foi este romance que esteve na origem de posteriores romances de grande êxito comercial, como o PEYTON PLACE, de Grace Metalious e outros que se seguiram, inspirados por aquele guião dos anos quarenta.

Por fim, Hemingway, com o seu ADEUS ÀS ARMAS e uma colectânea de contos magistrais, que li, avidamente, no meu sexto ano do liceu. O seu estilo descascado, directo, declarativo, seco e assassino, fascinou-me. E custou-me caro: no exame de Português-Latim, na prova de Português, dei-me ao luxo de me pôr a imitar, com grande gozo, a prosa do autor americano. O que me salvou a nota de Português- Latim foi o dezoito que tive a Latim, porque o professor que me classificou a prova de Português, não informado da egrégia qualidade do futuro autor do OLD MAN AND THE SEA, puniu-me com um miserável catorze, não se apercebendo de que eu estava apenas a querer dar um novo ímpeto ao português narrativo… à boleia do grande inovador do conto moderno! Injustiças!

Eis alguns exemplos de livros e autores que, por um tempo, secaram tudo à minha volta. Quem não passou por isto?
 Eugénio Lisboa 

O Eu criança

Criança feliz e saudável, cresci num mundo luminoso de livros ilustrados, areias alvas, laranjeiras, cachorros fiéis, panoramas marinhos e rostos sorridentes. O esplêndido Hotel Mirana girava em torno de mim como uma espécie de universo privado, um cosmo caiado de branco dentro daquele outro, azul e maior, que refulgia lá fora. Da lavadora de pratos em seu avental de algodão ao potentado no terno de flanela, todos gostavam de mim, todos me mimavam. Velhas senhoras americanas, apoiadas em bengalas, inclinavam-se sobre mim qual torres de Pisa. Princesas russas arruinadas, que não tinham meios de pagar a meu pai, compravam-me caros bombons. Ele, mon cher petit papa, levava-me para passear de barco ou de bicicleta, ensinava-me a nadar, mergulhar e andar de esqui aquático, lia-me Dom Quixote e Os miseráveis - e eu o adorava e respeitava, sentindo-me feliz por ele quando por acaso ouvia a criadagem comentar suas várias amizades femininas, belas e meigas criaturas que me devotavam grande atenção, derramando preciosas lágrimas sobre minha alegre orfandade.

Vladimir Nabokov, "Lolita"

terça-feira, abril 25

Pescaria

Um homem
que se preocupava demais
com coisas sem importância
acabou ficando com a cabeça cheia de minhocas.
Um amigo lhe deu então a ideia
de usar as minhocas numa pescaria
para se distrair das preocupações.
O homem se distraiu tanto
pescando
que sua cabeça ficou leve
como um balão
e foi subindo pelo ar
até sumir nas nuvens.
Onde será que foi parar?
não sei
nem quero me preocupar com isso.
Vou mais é pescar.

José Paulo Paes

Leitura com estilo

 


Leitor é quem manda

É o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo. Todos lemos a nós e ao mundo e à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender.
Alberto Manguel, “ Uma história da leitura”

A voz do poeta

Estávamos conversando num grupo de amigos e eu falei: “Drummond diz que mais vasto do que o mundo é o nosso coração”. Um dos presentes corrigiu: “Na verdade ele não ‘diz’ isso. Ele ‘disse’ – no passado, porque Drummond já morreu”.

Deixei passar porque o assunto principal era diferente, e parar para discutir este detalhe iria atrapalhar nosso rastreamento da outra ideia. Mas essa interferência ficou cavucando no meu juízo. Por que motivo eu tenho que me referir a um escritor no passado, somente porque ele já morreu? Porque (não sei se é assim com os outros, mas comigo é) eu faço uma distinção muito clara, na minha mente, entre aquele senhor careca e de óculos chamado Carlos Drummond de Andrade, que nasceu em Itabira e morreu no Rio, e o poeta Drummond, uma entidade metafísica que nasceu e brotou dentro daquele cidadão, produziu grandes livros de poesia, e que continua atuando, no momento presente, cada vez que alguém relê algum daqueles livros ou simplesmente pensa num dos seus versos.

Fala-se que a literatura é uma forma de imortalidade, e eu creio tanto nesta ideia que a estendo por conta própria a toda a palavra escrita ou falada. A palavra é uma enunciação que, uma vez preservada (através da escrita, da imagem filmada, etc.), é capaz de ser re-enunciada infinitas vezes. O ato de escrever e o ato de falar se enovelam sobre si mesmos, reiterando-se num processo sem fim. Quando leio uma frase de Drummond, a enunciação de Drummond está ali, intacta, sendo reativada pelos olhos do milionésimo leitor. Se leio uma carta escrita por meu pai e minha mãe, o momento da escrita, com tudo que ele continha (ou com a parte que a escrita conseguiu preservar), volta a acontecer diante dos meus olhos. Se vejo no YouTube uma entrevista de Fellini ou de Lennon, aquela palavra não é passada, é presente, é um passado instantaneamente conversível em presente vivo, pelo poder combinado da fala e da audição, ou da escrita e da leitura.

Devemos (ou pelo menos podemos, sem medo de dizer bobagem) nos referir aos poetas e escritores no presente, quando os citamos. Quando falo “Rimbaud acha que o poeta tem que ser um vidente”, é porque o homem Arthur Rimbaud já se desmanchou em moléculas, mas o poeta Arthur Rimbaud acaba de dizer isto agora, pelos meus dedos, pela milionésima vez. Rimbaud já morreu, Shakespeare talvez nem tenha escrito os versos dele que citamos, Homero talvez nem tenha existido.

Mas quando citamos um deles estamos citando uma entidade linguística integralmente preservada em si mesma, do modo como o som de uma orquestra inteira está preservada nos sulcos de um vinil ou nos bits-e-bytes de um arquivo digital.

segunda-feira, abril 24

Ao Gato Dorminhoco

 


Ao correr da máquina

Meu Deus, como o amor impede a morte! Não sei o que estou querendo dizer com isso: confio na minha incompreensão, que tem me dado vida instintiva e intuitiva, enquanto que a chamada compreensão é tão limitada. Perdi amigos. Não entendo a morte. Mas não tenho medo de morrer. Vai ser um descanso: um berço enfim. Não a apressarei, viverei até a última gota de fel. Não gosto quando dizem que tenho afinidade com Virgínia Woolf (só a li, aliás, depois de escrever o meu primeiro livro): é que não quero perdoar o fato de ela se ter suicidado. O horrível dever é ir até o fim. E sem contar com ninguém. Viver a própria realidade. Descobrir a verdade. E, para sofrer menos, embotar-me um pouco. Pois não posso mais carregar as dores do mundo. Que fazer, se sinto totalmente o que as outras pessoas são e sentem? Eu vivo na delas mas não tenho mais força. Vou viver um pouco na minha. Vou me impermeabilizar um pouco mais. – Há coisas que jamais direi: nem em livros e muito menos em jornal. E não direi a ninguém no mundo. Um homem me disse que no Talmude falam que há coisas que se podem contar a muitos, há outras a poucos, e outras a ninguém. Acrescento: não quero contar nem a mim mesma certas coisas. Sinto que sei de umas verdades. Mas não sei se as entenderia mentalmente. E preciso amadurecer um pouco mais para me achegar a essas verdades. Que já pressinto. Mas as verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não, nem pensem que vou falar em Deus: é um segredo meu.

Está fazendo um dia lindo de outono. A praia estava cheia de um vento bom, de uma liberdade. E eu estava só. E naqueles momentos não precisava de ninguém. Preciso aprender a não precisar de ninguém. É difícil, porque preciso repartir com alguém o que sinto. O mar estava calmo. Eu também. Mas à espreita, em suspeita. Como se essa calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto me fascina.

Com duas pessoas eu já entrei em comunicação tão forte que deixei de existir, sendo. Como explicar? Olhávamo-nos nos olhos e não dizíamos nada, e eu era a outra pessoa e a outra pessoa era eu. É tão difícil falar, é tão difícil dizer coisas que não podem ser ditas, é tão silencioso. Como traduzir o profundo silêncio do encontro entre duas almas? É dificílimo contar: nós estávamos nos olhando fixamente, e assim ficamos por uns instantes. Éramos um só ser. Esses momentos são o meu segredo.

Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isso de: estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que estou atingindo um plano mais alto de humanidade. Foram os momentos mais altos que jamais tive. Só que depois... Depois eu percebi que para essas pessoas esses momentos de nada valiam, elas estavam ocupadas com outras. Eu estivera só, toda só. É uma dor sem palavra, de tão funda. Agora vou interromper um pouco para atender o homem que veio consertar o toca-discos. Não sei com que disposição voltarei à máquina. Música não ouço há bastante tempo pois estou procurando me dessensibilizar. Mas um dia desses fui pegada desprevenida, ao ver o filme Cada um vive como quer. Tinha música e eu chorei. Não é vergonha chorar. É vergonha eu contar em público que chorei. Pagam-me para eu escrever. Eu escrevo, então.

Pronto, já voltei. O dia continua muito bonito. Mas a vida está muito cara (isso por causa do preço que o homem pediu pelo conserto). Preciso trabalhar muito para ter as coisas que quero ou de que preciso. Acho que livros não pretendo nunca mais escrever. Só vou escrever para este jornal. Eu queria um emprego de poucas horas por dia, digamos duas ou três horas, e que me fizesse (o emprego) lidar com pessoas. Tenho jeito para isso, embora pareça um pouco ausente às vezes. Mas, quando estou com uma pessoa verdadeira, fico verdadeira também. Se vocês pensam que vou recopiar o que estou escrevendo ou corrigir este texto, estão enganados. Vai é assim mesmo. Só que lerei para corrigir erros datilográficos.

A propósito de uma pessoa de quem estou me lembrando agora e que usa uma pontuação completamente diferente da minha, digo que a pontuação é a respiração da frase. Acho que já disse uma vez. Escrevo à medida de meu fôlego. Estarei sendo hermética? Porque parece que em jornal se tem de ser terrivelmente explícito. Sou explícita? Pouco se me dá.

Agora vou interromper para acender um cigarro. Talvez volte à máquina ou talvez pare por aqui mesmo.

Voltei. Estou agora pensando em tartarugas. Quando escrevi sobre bichos, disse, de pura intuição, que a tartaruga era um animal dinossáurico. Depois é que vim a ler que é mesmo. Tenho cada uma. Um dia vou escrever sobre tartarugas. Elas me interessam muito. Aliás, todos os seres vivos, que não o homem, são um escândalo de maravilhamento. Parece que, se fomos modelados, sobrou muita matéria energética e formaram-se os bichos. Para que serve, meu Deus, uma tartaruga? O título do que estou escrevendo agora não devia ser “Ao correr da máquina”. Devia ser mais ou menos assim, em forma interrogativa: “E as tartarugas?” E quem me lê se diria: é verdade, há muito tempo que não penso em tartarugas. Agora vou acabar mesmo. Adeus. Até sábado que vem.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"

Semelhanças

É neste aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis
Italo Calvino

Por que meus amigos mudaram tanto?

Cadê aquela galera toda que eu conhecia tão bem?

Houve um tempo em que tudo parecia muito estável e muito seguro. Tudo e todos. Eles eram todo dia os mesmos e nós achávamos graça nas mesmas piadas, assistíamos os mesmos programas na TV, gostávamos das mesmas bandas. Nossos tímidos planos de viagens eram conjuntos, nossos planos para o fim de semana harmonizavam perfeitamente. Esse tempo passou.

Hoje em dia é um pouco estranho. O tipos de humor mudaram. Cada um assiste uma série diferente- somente game of thrones ainda é capaz de unir parte de nós. Alguns ouvem Liniker enquanto outros elevam o volume ao máximo berrando sobre o cake by the ocean. Uns fumam, outros não comem carne, outros só sabem se divertir com muito destilado, outros insistem em propor restaurantes que cobram R$150 por cabeça. A gente acaba ficando confuso.


Poderia dizer que hoje tenho um rol muito mais rico e diverso de amigos. Opiniões diferentes, programas de vários estilos, trilha sonora variada. Mas eu não vou mentir: sinto falta de como tudo era antes. Sinto falta de quando a gente marcava um hamburger e pronto, chegava, ria, dividia a conta e estava tudo bem. Hoje tem que ter antecedência, tem debate sobre o lugar escolhido, tem uma leve sensação de que nossos velhos conhecidos, por vezes, se tornam novos desconhecidos- com hábitos, propostas e roteiros inéditos.

Talvez o sinal mais evidente seja o fato das nossas amizades terem passado a viver de lembranças. Nos encontramos e começamos a falar sobre aquele dia engraçadíssimo de 2001, sobre aquele namorado esquisito que a Ju tinha aos 15 anos, sobre o porre na viagem de formatura. Nos apegamos às nossas melhores memórias e parece que são só elas que ainda nos unem. Sentados numa mesa de restaurante, ruminamos o nosso delicioso passado e então eu me pergunto: o que estamos construindo para nos lembrarmos daqui outros 15 anos? Ou as memórias de escola e faculdade deverão perdurar até lá?

Dói bastante perceber os desencontros. Uma liga muito para a marca da roupa, outra só para a legenda partidária. Um milita contra a homofobia, outro ainda faz piada com homem que usa camisa cor de rosa. Uma namora um advogado e outra um artista plástico. É fácil entender porque encontramos refúgio tão seguro nas memórias. As diferenças do presente nos assustam e é mais fácil nos divertirmos com as semelhanças do passado.

Mas a parte mais difícil é assumir que a gente também mudou- e não foi pouco. É fácil culpar os outros, dizer que um era mais divertido antigamente, outro era mais maleável, o terceiro não namorava esse babaca de hoje, a quarta não era workaholic, o quinto não ficava citando filósofos no bar. Mas e a gente? A gente também não mudou? Também não frustra em certa medida as expectativas e as lembranças alheias? É claro que sim, o tempo não perdoa ninguém.

A única coisa que segue segura é o afeto. Só nos encontramos- quando as agendas permitem- por causa do afeto que perdura. É ele quem resiste às nossas divergências políticas, aos nossos cônjuges que não têm nada a ver um com o outro, aos nossos empregos que não dialogam, aos nossos interesses tão díspares. É o afeto que toma porrada, que vê aquela gente tão mudada, mas que permanece de pé e resiste, agarrando-as. É por ele que a gente insiste. É por ele que a gente não larga o osso.

E o afeto mora no melhor lugar possível: no outro. Aquela pessoa que mudou o corte de cabelo, o tipo de roupa e o discurso ainda é aquela na qual nosso afeto se instalou há tantos anos e se nega a ir embora. E talvez a gente precise entender que não é necessário usar o passado como escudo. Se o afeto ainda mora ali, nós ainda somos os mesmos. Todo o resto- bolsa, tom de voz, bebida e trabalho- é carcaça. A essência não mudou.

De fato é mais fácil culpar o outro, culpar a vida, maldizer o presente e vangloriar o passado do que trabalhar as diferenças com afeto. É chato chegar no bar e escolher carinhosamente, um assunto que agrade o outro. É mais fácil chegar e falar sobre o que nos interessa e reclamar que as conversas não fluem. Mas não tem jeito: todo amor dá trabalho. E, sabe? São eles. São os amigos da vida toda, ainda são eles. Eles valem a pena. Eles continuam sendo a base, mesmo que tenham mudado de cor. Não desistam de mim, queridos. Eu vou sempre insistir em nós.
Ruth Manus

sábado, abril 22

Corpo e alma refrescados

 


Lápide

A primeira vez que vi meu nome escrito numa lápide, tomei um susto. Como teria morrido sem nada sentir ou perceber? De qual sintoma teria me distraído, de qual dor sarado, que breu escapara dos meus olhos?

Na segunda vez que vi meu nome escrito numa lápide, morrer já não surpreendeu tanto – falecer perdera o encanto inaugural. Então tratei de olhar a expressão de todos à minha volta. Estavam tristes, alguém chorava de mansinho e isso, por mais lamentável que seja, serviu-me de consolo.


Quando da terceira vez, e diante do mesmo quadro fúnebre, tratei de prestar mais atenção às mensagens gravadas com circunstância nas coroas de flores. Considerei os textos por demais protocolares e, se buscasse na memória, seriam os mesmos que eu próprio encomendara para alguém no passado.

A quarta vez que vi meu nome escrito numa lápide serviu para julgar a última morada. Notei que houve empenho ao buscar uma foto em que eu estivesse bonito e jovem. Também os dizeres eram laudatórios, ainda que eu tenha certa dúvida se escolheria as tais palavras.

Na quinta, experiente que estava em morrer à toa, deixei muitas recomendações: a foto deveria ser em preto e branco – combina com o entorno e esmorece com mais beleza. Também escolhi o epitáfio, numa combinação de prosa e poesia, saudade e esperança. Estava cada vez mais composto.

Deste ponto, e por muitas mortes seguidas, fui-me tornando paulatinamente um tanto mais relaxado. Pouco me comovi com o choro alheio, as coroas de flores diminuíram de tamanho e capricho, nem me perturbou o granito já estar lascado. Morria de tédio.

O descaso alcançou o ápice numa vala comum, destinada a indigentes. Morrer-me perdia a importância, como desimportante se tornara minha existência. E assim seria dali em diante e para todo sempre se não houvesse você e, por você, o apego à vida.
Rubem Penz

Abismo azul

Claire Mesnil 
Chovera toda noite. O peso da água sobre nosso telhado fazia com que uma poeira úmida baixasse sobre minha rede. Assim adormeci sob o troar do aguaceiro, como se viajasse num mar tempestuoso.

O dia, porém, amanheceu límpido. Tomei o café e saí descalço caminhando pela rua de barro, onde ainda se viam restos da chuva da noite.

Ao chegar ao Campo de Ourique, onde o chão era de areia firme, deparei-me com uma grande poça d’água transparente. Quis entrar nela mas, ao ensaiar o passo, detive-me em pânico: tinha diante de mim um abismo tão fundo quanto o céu azul sem nuvens que a água refletia.

Logo me refiz do susto e entrei na poça. Meus pés levantaram o barro do fundo que turvou a água e apagou a imagem vertiginosa daquele céu de verão.

Ferreira Gullar

Um século de histórias da dama da literatura brasileira

Lygia Fagundes Telles adorava viajar. Mas, aparente contradição, detestava aviões.

"Por que estou sempre metida em algum deles?", queixou-se à escritora Clarice Lispector, durante voo para a Colômbia, em 1974.

As duas eram convidadas de um congresso de literatura hispano-americana, em Cali. Para disfarçar o nervosismo, abriu um jornal e fingiu ler algumas notícias.

Não adiantou. Sentada na poltrona ao lado, Clarice esboçou um sorriso e tranquilizou a amiga. "Lyginha, minha cartomante já avisou que não vou morrer em nenhum desastre!"

Em terra firme, as duas logo se entediaram com o evento literário. "Essa gente fala demais!", reclamou Clarice, ucraniana naturalizada brasileira.

Terminada a apresentação, foram às compras. Na volta, passaram pelo bar do hotel. Lygia pediu vinho e Clarice, champanhe.

"Na saída, precisávamos mascar chiclete porque nossos bafos estavam péssimos!", recordou Lygia, aos risos, em entrevista ao jornal O Globo, de 15 de outubro de 2011.

O medo de voar não a impediu de conhecer dezenas de países. Com o segundo marido, o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, visitou o Irã, em 1968.

Convidada do Festival Internacional de Cinema, descobriu, durante visita ao túmulo do rei Ciro, da Pérsia, que a Pasárgada do poeta Manuel Bandeira não era uma invenção poética. "Sou um horror em geografia", admitiu, em 2013.

Com os escritores Ivan Ângelo e Ignácio de Loyola Brandão, viajou para Nova York em 1982. Foram divulgar As Meninas, Zero e A Festa, recém-traduzidos para o inglês.

Entre um compromisso e outro, gravaram reportagem para a TV brasileira no Rockefeller Center.

Na hora em que Ivan Ângelo concedia entrevista, alguém da multidão quis saber quem era. "Paul Newman!", improvisou Lygia, moleca. A notícia logo se espalhou.

"Faziam fila para autógrafos", relatou o suposto sósia do galã ao Cadernos de Literatura Brasileira. "E ela ria, ria…"

"Em Berlim, ao ver que João Ubaldo Ribeiro tinha comprado caixas de uma 'vitamina milagrosa', exigiu que ele a levasse à farmácia para comprar um lote. 'Preciso estar pronta para envelhecer', dizia. Se alguém do grupo fizesse uma compra, ficava enciumada. Era preciso levá-la ao mesmo lugar. Grandes pessoas têm pequenas idiossincrasias", afirma o jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão.

"A grande dama da literatura era uma mulher simples, low-profile, sem pose. Talvez soubesse que era grande. E ponto."

Lygia Fagundes Telles ainda se chamava Lygia de Azevedo Fagundes — só se casou com o advogado Goffredo da Silva Telles Júnior, em 1950 — quando prometeu a si mesma escrever no mínimo dez obras, entrar para a Academia Brasileira de Letras (ABL) e ter um busto na Praça da República, ao lado da escultura de Álvares de Azevedo.

Dos três sonhos de infância, realizou dois: publicou mais de 20 obras e, por 32 votos a sete, foi eleita para a cadeira 16 da ABL em 24 de outubro de 1985.

Foi mais ou menos nesta época que Lygia tomou ranço de aniversário. Quando tinha 10 anos, sua mãe, a pianista Maria do Rosário Silva Jardim de Moura, a Zazita, preparou uma festa linda. Ninguém apareceu. Também, pudera. A aniversariante esqueceu de entregar os convites...

"Aniversário é uma data boa quando se é jovem. Depois da velhice brutal, não quero mais!", desabafou ao Globo, em 12 de abril de 2013. Depois de sua morte, descobriu-se que Lygia Fagundes Telles não nasceu em 19 de abril de 1923. Nasceu cinco anos antes: em 19 de abril de 1918.

"Quando Lygia nasceu, todas as fadas se debruçaram sobre seu berço. Era uma mulher linda, inteligente, excelente escritora e um senso de humor formidável. Tinha o coração do lado certo. Sempre defendeu as boas causas. Era um orgulho ter o mesmo passaporte dela", exalta a escritora e acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira que, no dia 31 de outubro, vai fazer uma palestra na ABL em homenagem ao centenário da amiga.

"Sua maior contribuição à literatura brasileira foi ela mesma. Nunca foi uma militante. Mas influenciou as mulheres que a leram. Lygia não criava personagens. Criava pessoas. Sou muito grata a Lygia por todas as reflexões que despertou em mim."

O número de livros publicados só não é maior porque ela rejeitava os três primeiros, de contos: Porão e Sobrado, de 1938; Praia Viva, de 1944; e O Cacto Vermelho, de 1949, que classifica como "imaturos" e "precipitados".

Lygia começou a escrever muito cedo, quando cursava o antigo ginásio no Instituto Caetano de Campos, em São Paulo. Seu primeiro livro foi publicado com recursos do pai, o advogado Durval de Azevedo Fagundes.

"Fico aflita só de pensar nas novas gerações lendo esses meus livros. Não quero que percam tempo com eles!", afirmou, em 1998.

Do pai, Lygia dizia ter herdado "o vício do risco". Com uma diferença: ele jogava com fichas; ela, com palavras.

"Hoje, perdemos, mas amanhã a gente ganha", costumava repetir. Certo dia, Durval perdeu tudo na roleta. Por essa razão, Lygia criou verdadeiro pavor da instabilidade econômica. Conclusão: concluiu duas faculdades: a de Educação Física, em 1941, e de Direito, em 1946, ambas na Universidade de São Paulo (USP).

Para o crítico Antonio Candido, a fase “madura” de sua obra teve início em 1954, com Ciranda de Pedra. É o primeiro de seus quatro romances. Os outros são Verão no Aquário, de 1964; As Meninas, de 1973; e As Horas Nuas, de 1989.

Ciranda de Pedra ganhou duas adaptações para a TV: em 1981, adaptado por Teixeira Filho, e em 2008, por Alcides Nogueira.

"No livro, não há um só casamento; na novela, arrumaram dez! Eu via aquilo e falava: 'Oh, meu Deus, outro casamento!?'", espanta-se, referindo-se à primeira versão.

Quem também gostou de seu romance de estreia foi Simone de Beauvoir. As duas se conheceram em São Paulo em almoço oferecido pelo editor Barros Martins em 1960.

Às vésperas de regressar a Paris, a francesa marcou um encontro em uma livraria.

Queria presentear a brasileira com um exemplar de Todos os Homens São Mortais, de 1946.

Em retribuição, Lygia ofereceu uma cópia — datilografada e em francês — de Ciranda de Pedra.

Dias depois, Lygia recebeu uma carta que a deixou "em estado de graça". "Não só lera o livro como se apressara em alegrar o coração de uma escritora brasileira que passou esse dia levitando", derrete-se em crônica publicada no jornal O Estado de S. Paulo, de 8 de janeiro de 1978.

"Lygia trabalhou muito, durante toda sua vida, até os últimos anos. Posso dizer que o grande amor de sua vida foi seu trabalho", garante sua neta, Lúcia Telles, filha de Goffredo da Silva Telles Neto.

"Quando meu pai morreu, escreveu Conspiração de Nuvens para afastar a depressão."

"Minhas primeiras memórias com ela são em seu apartamento: os gatos, a máquina de escrever, recortes de jornais com os crimes que a interessavam... Quando eu era pequena, contava histórias de terror e mistério. Lia Edgar Allan Poe para mim e eu adorava. Adoro até hoje. Sinto uma falta enorme dela."

Quando colocou o ponto final em As Meninas, Lygia caiu no choro. Chegava ao fim uma "convivência encantadora". Uma das protagonistas chegou a "suplicar para que não a matasse".

"Ainda tenho muito o que dizer”, protestava Ana Clara. “Não posso morrer agora". Lygia não conseguiu salvá-la: morreu por overdose.

Em 1976, Lygia foi a Brasília, acompanhada por outros intelectuais, como a escritora Nélida Piñon, entregar ao ministro da Justiça, Armando Falcão, um manifesto contra a censura.

Passado algum tempo, Paulo Emílio chegou em casa rindo. Soube que o censor encarregado de ler As Meninas não conseguiu passar da página 40. "Achou tudo muito chato", explicou a autora, em 2009.

Sorte a dela. Nas páginas 148 e 149, reproduz um doloroso relato de tortura. O romance ganhou quatro versões: três para o teatro e uma para o cinema.

No filme de Emiliano Ribeiro, Lorena, Lia e Ana Clara foram interpretadas por Adriana Esteves, Drica Moraes e Cláudia Liz.

"Uma série de autoras contemporâneas que dedicaram obras ao período da ditadura militar poderiam ser netas da Lygia. Não posso afirmar que todas a leram, mas, de todo modo, se juntam a Lygia nessas páginas de nossa história literária como um alerta do que não pode ser esquecido por todos nós, como coletividade, mas sem apagar os caminhos mais interiores, mas ressaltá-los", afirma a pesquisadora Luciana Araújo Marques que, no próximo dia 19, vai mediar, às 20h, na livraria Gato sem Rabo (SP), um bate-papo com as escritoras Andréa del Fuego e Aline Bei sobre o legado da aniversariante do dia.

"Para mim, essas escritoras agem como guerrilheiras da negação da morte. Talvez menos em um sentido de eternidade e da monumentalização do que é tido como 'o que fica' e é 'canonizado', e mais como uma exaltação da vida contra tudo o que mata antes da hora de morrer."

Além da francesa Simone de Beauvoir, Lygia conheceu outros gigantes da literatura universal: o americano William Faulkner e o argentino Jorge Luís Borges.

Faulkner, Nobel de Literatura, esteve em São Paulo entre os dias 8 e 14 de agosto de 1954 para participar do I Congresso Internacional de Escritores.

Durante sua estadia, experimentou camarão à baiana, espantou-se com uma sucuri de oito metros e deitou-se no chão do Museu de Arte de São Paulo (Masp) para aliviar as dores nas costas.

"Chegou meio fora de órbita", contou Lygia ao jornal Folha de S.Paulo, de 14 de setembro de 1997. "Estava sempre com o cabelo molhado. Creio que para ficar desperto, devido ao excesso de álcool."

Hospedado no Esplanada, Faulkner conheceu Lygia no Butantan. Os dois foram apresentados pelo crítico Mário da Silva Brito.

"Se os seus contos forem tão belos quanto seus olhos, a senhora, certamente, é uma grande escritora", elogiou.

Nessa hora, Brito cochichou para Lígia: "Não se esqueça de colocar esse comentário na orelha do seu próximo livro. É o único que Faulkner conseguiu fazer a respeito da literatura brasileira".

Ao se despedir, já na fila de embarque do Congonhas, o visitante perguntou: "O que diabos eu vim fazer mesmo em Chicago?"

Trinta anos depois, reencontrou um velho amigo, Jorge Luís Borges, que conheceu em 1960. Em um jantar, o escritor argentino falou da importância do sonho.

"Tenho um amigo que morreu quando deixou de sonhar", advertiu. "No exato momento em que mencionou seu nome, alguém deixou cair uma taça e não consegui ouvir", recordou Lygia, em 2009.

Anos depois, a escritora leu o conto Uma Estação de Amor e decifrou o mistério: o tal amigo suicida era o uruguaio Horacio Quiroga. "Gravemente doente e sem esperança, suicidou-se com cianureto", conta no livro Durante Aquele Estranho Chá, de 2002.

Na entrevista ao Cadernos de Literatura Brasileira, Lygia lembra da ocasião em que, na década de 1970, recebeu o telefonema de um rapaz dizendo que, por causa de seus livros, não queria mais tirar a própria vida.

Lá pelas tantas, emocionada, a escritora perguntou: "O que eu posso fazer por você?". O leitor respondeu: "A senhora já fez". E desligou.

"Fico relendo meus textos, procurando, procurando, qual a palavra, meu Deus, qual a palavra que foi capaz daquilo? Nunca vou saber", divagou, em 1998. "No fundo, a literatura é uma forma de amor", concluiu.

"Era uma mulher à frente de seu tempo. Tinha forte preocupação com o papel social da mulher. Debater sua contribuição à literatura é tarefa dos acadêmicos. Queremos enfatizar sua contribuição humanista. Às vezes, nos preocupamos tanto em estudar uma obra que esquecemos da pessoa incrível que criou aquela obra", afirma a jornalista Rachel Valença, coordenadora de literatura do Instituto Moreira Salles (IMS) que, desde 2002, guarda o acervo da escritora, composto de cartas, originais, fotografias e até da Olivetti que ganhou de Paulo Emílio na Itália.

No dia 11 de maio, o IMS organiza uma mesa de debates, com participação da acadêmica Ana Maria Machado, a agente literária Lúcia Riff e a pesquisadora Elizama Almeida, na ABL

Avessa a autobiografias, Lygia lançou três livros de memórias: Invenção e Memória, de 2000; Durante Aquele Estranho Chá, de 2002, e Conspiração de Nuvens, de 2007.

No segundo volume, esmiúça, entre outras histórias, a visita que fez a Monteiro Lobato no presídio Tiradentes em 1941 — o criador do Sítio do Picapau Amarelo fora preso por criticar o Estado Novo — e o encontro com o poeta modernista Mário de Andrade na confeitaria Vienense, na rua Barão de Itapetininga, em 1944.

"Se eu tivesse pernas tão lindas, ia lá pensar em literatura?", foi obrigada a ouvir em uma das vezes em que esbarrou com Monteiro Lobato.

No estranho chá com o autor de Macunaíma, a jovem estudante de Direito com aspiração literária saiu da confeitaria com uma carta. O que Mário de Andrade teria achado de seus escritos? Nunca saberemos...

"No dia seguinte, na maior emoção, levei a carta para exibi-la a dois colegas da Faculdade. Mas, acabei por perdê-la numa das salas de aula e nunca mais", lamentou na crônica que dá título ao livro.

Dos 16 livros publicados pela Companhia das Letras, onze são de contos. Apenas um, Passaporte para a China, é de crônicas — a pedido de Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, escreveu impressões sobre uma viagem de 20 dias a Pequim e Shanghai em 1960.

"Tentei fazer poesia quando estava na Faculdade de Direito. Mas logo percebi que era apenas um apelo de juventude", reconheceu ao Cadernos de Literatura Brasileira.

Só Jabuti, o mais importante prêmio literário brasileiro, foram quatro: O Jardim Selvagem, de 1966; As Meninas, de 1973; A Noite Escura e Mais Eu, de 1996, e Invenção e Memória, de 2001.

Em 2005, levou para casa o Camões, o "Nobel" da Língua Portuguesa. Em 2016, teve seu nome indicado ao Nobel de Literatura. Perdeu a honraria para o cantor e compositor americano Bob Dylan.

"Era minha vizinha no Jardins. Quando caminhávamos pelo bairro, abraçava as árvores, brincava com os animais... Também íamos ao cinema. Comentava o filme em voz alta. Às vezes, isso gerava um 'psiu' dos outros espectadores", relata o escritor e acadêmico José Renato Nalini.

"Também gostava de conversar ao telefone. Lia seus contos e pedia minha opinião. O que me desvanecia. Tínhamos em casa uma poodle que era avessa a humanos. Mas, quando Lygia chegava, pulava no seu colo. Ficava extasiada. Sinto imensa falta de Lygia, a amiga, mais do que a imortal."

quinta-feira, abril 20

Livros atendem a todos

 


Fragilidade

Que coisa frágil é o homem. A despeito dos bagos e da bazófia, um simples sussurro é capaz é de transformar sua alma em cinzas. O gosto de sal numa casca de uva, o cheiro do mar, o calor do sol de primavera, frutos amargos e doces, um grão de areia nos dentes – tudo isso que entendia por vida lhe estava sendo tirado. Onde estavam os crepúsculos serenos de sua velhice? Arrancaria os próprios olhos. Ao ver o brilho de vela em seu navio – ele o trouxera de volta ao porto em meio a ventanias e tempestades – sentiu-se espectral e desvirilizado. Foi à gaveta da cômoda e pegou, debaixo da rosa desidratada e da trança de cabelo, a pistola carregada. Aproximou-se da janela. Os fogos do dia se extinguiam como uma conflagração numa cidade industrial, e acima da cúpula do celeiro viu a estrela Vésper, doce e rotunda feito lágrima humana. Disparou a pistola pela janela e caiu no chão.

John Cheever, "A Crônica dos Wapshot"

Entre irmãos

O menino sentado à minha frente é meu irmão, assim me disseram; e bem pode ser verdade, ele regula pelos dezessete anos, justamente o tempo que estive solto no mundo, sem contato nem notícia. Quanta coisa muda em dezessete anos, até os nossos sentimentos, e quanta coisa acontece — um menino nasce, cresce e fica quase homem e de repente nos olha na cara e temos que abrir lugar para ele em nosso mundo, e com urgência porque ele não pode mais ficar de fora.

A princípio quero tratá-lo como intruso, mostrar-lhe a minha hostilidade, não abertamente para não chocá-lo, mas de maneira a não lhe deixar dúvida, como se lhe perguntasse com todas as letras: que direito tem você de estar aqui na intimidade de minha família, entrando nos nossos segredos mais íntimos, dormindo na cama onde eu dormi, lendo meus velhos livros, talvez sorrindo das minhas anotações à margem, tratando meu pai com intimidade, talvez discutindo a minha conduta, talvez até criticando-a? Mas depois vou notando que ele não é totalmente estranho, as orelhas muito afastadas da cabeça não são diferentes das minhas, o seu sorriso tem um traço de sarcasmo que eu conheço muito bem de olhar-me ao espelho, o seu jeito de sentar-se de lado e cruzar as pernas tem impressionante semelhança com o meu pai. De repente fereme a ideia de que o intruso talvez seja eu, que ele tenha mais direito de hostilizar-me do que eu a ele, que vive nesta casa há dezessete anos, sem a ter pedido ele aceitou e fez dela o seu lar, estabeleceu intimidade com o espaço e com os objetos, amansou o ambiente a seu modo, criou as suas preferências e as suas antipatias, e agora eu caio aí de repente desarticulando tudo com minhas vibrações de onda diferente. O intruso sou eu, não ele.

Ao pensar nisso vem-me o desejo urgente de entendê-lo e de ficar amigo, de derrubar todas as barreiras, de abrir-lhe o meu mundo e de entrar no dele. Faço-lhe perguntas e noto a sua avidez em respondê-las, mas logo vejo a inutilidade de prosseguir nesse caminho, as perguntas parecem-me formais e as respostas forçadas e complacentes. Há um silêncio incômodo, eu olho os pés dele, noto os sapatos bastante usados, os solados revirando-se nas beiradas, as rachaduras do couro como mapa de rios em miniatura, a poeira acumulada nas fendas. Se não fosse o receio de parecer fútileu perguntaria se ele tem outro sapato mais conservado, se gostaria que lhe oferecesse um novo, e uma roupa nova para combinar. Mas seria esse o caminho para chegar a ele?

Não seria um caminho simples demais, e por conseguinte inadequado?

Tenho tanta coisa a dizer, mas não sei como começar, até a minha voz parece ter perdido a naturalidade, sinto que não a governo, eu mesmo me aborreço ao ouvi-la. Ele me olha, e vejo que está me examinando, procurando decidir se devo ser tratado como irmão ou como estranho, e imagino que as suas dificuldades não devem ser menores do que as minhas. Ele me pergunta se eu moro numa casa grande, com muitos quartos, e antes de responder procuro descobrir o motivo da pergunta. Por que falar em casa? E qual a importância de muitos quartos? Causarei inveja nele se responder que sim? Não, não tenho casa, há muito tempo que tenho morado em hotel. Ele me olha parece que fascinado, diz que deve ser bom viver em hotel, e conta que toda vez que faz reparos à comida mamãe diz que ele deve ir para um hotel, onde pode reclamar e exigir. De repente o fascínio se transforma em alarme, e ele observa que se eu vivo em hotel não posso ter um cão em minha companhia, o jornal disse uma vez que um homem foi processado por ter um cão em um quarto de hotel. Não me sinto atingido pela proibição, se é que existe, nunca pensei em ter um cão, não resistiria me separar dele quando tivesse que arrumar as malas, como estou sempre fazendo; mas devo dizer-lhe isso e provocar nele uma pena que eu mesmo não sinto? Confirmo a proibição e exagero a vigilância nos hotéis. Ele suspira e diz que então não viveria num hotel nem de graça.

Ficamos novamente calados e eu procuro imaginar como será ele quando está com seus amigos, quais os seus assuntos favoritos, o timbre de sua risada quando ele está feliz e despreocupado, a fluência de sua voz quando ele pode falar sem ter que vigiar as palavras. O telefone toca lá dentro e eu fico desejando que o chamado seja para um de nós, assim teremos um bom pretexto para interromper a conversa sem ter que inventar uma desculpa; mas passa-se muito tempo e perco a esperança, o telefone já deve até ter sido desligado. Ele também parece interessado no telefone, mas disfarça muito bem a impaciência. Agora ele está olhando pela janela, com certeza desejando que passe algum amigo ou conhecido que o salve do martírio, mas o sol está muito quente e ninguém quer sair à rua a essa hora do dia. Embaixo na esquina um homem afia facas, escuto o gemido fino da lâmina no rebolo e sinto mais calor ainda. Quando eu era menino tive uma faca que troquei por um projetor de cinema feito por mim mesmo — uma caixa de sapato dividida ao meio, um buraquinho quadrado, uma lente de óculos — e passavahoras à beira do rego afiando a faca, servia para descascar cana e laranja. Vale a pena dizer-lhe isso ou será muita infantilidade, considerando que ele está com dezessete anos e eu tinha uns dez naquele tempo? É melhor não dizer, só o que é espontâneo interessa, e a simples hesitação já estraga a espontaneidade.

Uma mulher entra na sala, reconheço nela uma de nossas vizinhas, entra com o ar de quem vem pedir alguma coisa urgente. Levanto-me de um pulo para me oferecer; ela diz que não sabia que estávamos conversando, promete não nos interromper, pede desculpa e desaparece. Não sei se consegui disfarçar um suspiro, detesto aquela consideração fora de hora, e sou capaz de jurar que meu irmão também pensa assim.

Olhamo-nos novamente já em franco desespero, compreendemos que somos prisioneiros um do outro, mas compreendemos também que nada podemos fazer para nos libertar. Ele diz qualquer coisa a respeito do tempo, eu acho a observação tão desnecessária — e idiota — que nem me dou ao trabalho de responder.

Francamente já não sei o que fazer, a minha experiência não me socorre, não sei como fugir daquela sala, dos retratos da parede, do velho espelho embaciado que reflete uma estampa do Sagrado Coração, do assoalho de tábuas empenadas formando ondas. Esforço-me com tanta veemência que a consciência do esforço me amarra cada vez mais àquelas quatro paredes. Só uma catástrofe nos salvaria, e eu desejo intensamente um terremoto ou um incêndio, mas infelizmente essas coisas não acontecem por encomenda.

Sinto o suor escorrendo frio por dentro da camisa e tenho vontade de sair dali correndo, mas como poderei fazê-lo sem perder para sempre alguma coisa muito importante, e como explicar depois a minha conduta quando eu puder examiná-la de longe e ver o quanto fui inepto? Não, basta de fugas, preciso ficar aqui sentado e purgar o meu erro.

A porta abre-se abruptamente e a vizinha entra de novo apertando as mãos no peito, olha alternadamente para um e outro de nós e diz, numa voz que mal escuto: — Sua mãe está pedindo um padre.

Levantamos os dois de um pulo, dando graças a Deus — que ele nos perdoe — pela oportunidade de escaparmos daquela câmara de suplício.
José J. Veiga