Lygia Fagundes Telles adorava viajar. Mas, aparente contradição, detestava aviões.
"Por que estou sempre metida em algum deles?", queixou-se à escritora Clarice Lispector, durante voo para a Colômbia, em 1974.
As duas eram convidadas de um congresso de literatura hispano-americana, em Cali. Para disfarçar o nervosismo, abriu um jornal e fingiu ler algumas notícias.
Não adiantou. Sentada na poltrona ao lado, Clarice esboçou um sorriso e tranquilizou a amiga. "Lyginha, minha cartomante já avisou que não vou morrer em nenhum desastre!"
Em terra firme, as duas logo se entediaram com o evento literário. "Essa gente fala demais!", reclamou Clarice, ucraniana naturalizada brasileira.
Terminada a apresentação, foram às compras. Na volta, passaram pelo bar do hotel. Lygia pediu vinho e Clarice, champanhe.
"Na saída, precisávamos mascar chiclete porque nossos bafos estavam péssimos!", recordou Lygia, aos risos, em entrevista ao jornal O Globo, de 15 de outubro de 2011.
O medo de voar não a impediu de conhecer dezenas de países. Com o segundo marido, o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, visitou o Irã, em 1968.
Convidada do Festival Internacional de Cinema, descobriu, durante visita ao túmulo do rei Ciro, da Pérsia, que a Pasárgada do poeta Manuel Bandeira não era uma invenção poética. "Sou um horror em geografia", admitiu, em 2013.
Com os escritores Ivan Ângelo e Ignácio de Loyola Brandão, viajou para Nova York em 1982. Foram divulgar As Meninas, Zero e A Festa, recém-traduzidos para o inglês.
Entre um compromisso e outro, gravaram reportagem para a TV brasileira no Rockefeller Center.
Na hora em que Ivan Ângelo concedia entrevista, alguém da multidão quis saber quem era. "Paul Newman!", improvisou Lygia, moleca. A notícia logo se espalhou.
"Faziam fila para autógrafos", relatou o suposto sósia do galã ao Cadernos de Literatura Brasileira. "E ela ria, ria…"
"Em Berlim, ao ver que João Ubaldo Ribeiro tinha comprado caixas de uma 'vitamina milagrosa', exigiu que ele a levasse à farmácia para comprar um lote. 'Preciso estar pronta para envelhecer', dizia. Se alguém do grupo fizesse uma compra, ficava enciumada. Era preciso levá-la ao mesmo lugar. Grandes pessoas têm pequenas idiossincrasias", afirma o jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão.
"A grande dama da literatura era uma mulher simples, low-profile, sem pose. Talvez soubesse que era grande. E ponto."
"Por que estou sempre metida em algum deles?", queixou-se à escritora Clarice Lispector, durante voo para a Colômbia, em 1974.
As duas eram convidadas de um congresso de literatura hispano-americana, em Cali. Para disfarçar o nervosismo, abriu um jornal e fingiu ler algumas notícias.
Não adiantou. Sentada na poltrona ao lado, Clarice esboçou um sorriso e tranquilizou a amiga. "Lyginha, minha cartomante já avisou que não vou morrer em nenhum desastre!"
Em terra firme, as duas logo se entediaram com o evento literário. "Essa gente fala demais!", reclamou Clarice, ucraniana naturalizada brasileira.
Terminada a apresentação, foram às compras. Na volta, passaram pelo bar do hotel. Lygia pediu vinho e Clarice, champanhe.
"Na saída, precisávamos mascar chiclete porque nossos bafos estavam péssimos!", recordou Lygia, aos risos, em entrevista ao jornal O Globo, de 15 de outubro de 2011.
O medo de voar não a impediu de conhecer dezenas de países. Com o segundo marido, o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, visitou o Irã, em 1968.
Convidada do Festival Internacional de Cinema, descobriu, durante visita ao túmulo do rei Ciro, da Pérsia, que a Pasárgada do poeta Manuel Bandeira não era uma invenção poética. "Sou um horror em geografia", admitiu, em 2013.
Com os escritores Ivan Ângelo e Ignácio de Loyola Brandão, viajou para Nova York em 1982. Foram divulgar As Meninas, Zero e A Festa, recém-traduzidos para o inglês.
Entre um compromisso e outro, gravaram reportagem para a TV brasileira no Rockefeller Center.
Na hora em que Ivan Ângelo concedia entrevista, alguém da multidão quis saber quem era. "Paul Newman!", improvisou Lygia, moleca. A notícia logo se espalhou.
"Faziam fila para autógrafos", relatou o suposto sósia do galã ao Cadernos de Literatura Brasileira. "E ela ria, ria…"
"Em Berlim, ao ver que João Ubaldo Ribeiro tinha comprado caixas de uma 'vitamina milagrosa', exigiu que ele a levasse à farmácia para comprar um lote. 'Preciso estar pronta para envelhecer', dizia. Se alguém do grupo fizesse uma compra, ficava enciumada. Era preciso levá-la ao mesmo lugar. Grandes pessoas têm pequenas idiossincrasias", afirma o jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão.
"A grande dama da literatura era uma mulher simples, low-profile, sem pose. Talvez soubesse que era grande. E ponto."
Lygia Fagundes Telles ainda se chamava Lygia de Azevedo Fagundes — só se casou com o advogado Goffredo da Silva Telles Júnior, em 1950 — quando prometeu a si mesma escrever no mínimo dez obras, entrar para a Academia Brasileira de Letras (ABL) e ter um busto na Praça da República, ao lado da escultura de Álvares de Azevedo.
Dos três sonhos de infância, realizou dois: publicou mais de 20 obras e, por 32 votos a sete, foi eleita para a cadeira 16 da ABL em 24 de outubro de 1985.
Foi mais ou menos nesta época que Lygia tomou ranço de aniversário. Quando tinha 10 anos, sua mãe, a pianista Maria do Rosário Silva Jardim de Moura, a Zazita, preparou uma festa linda. Ninguém apareceu. Também, pudera. A aniversariante esqueceu de entregar os convites...
"Aniversário é uma data boa quando se é jovem. Depois da velhice brutal, não quero mais!", desabafou ao Globo, em 12 de abril de 2013. Depois de sua morte, descobriu-se que Lygia Fagundes Telles não nasceu em 19 de abril de 1923. Nasceu cinco anos antes: em 19 de abril de 1918.
"Quando Lygia nasceu, todas as fadas se debruçaram sobre seu berço. Era uma mulher linda, inteligente, excelente escritora e um senso de humor formidável. Tinha o coração do lado certo. Sempre defendeu as boas causas. Era um orgulho ter o mesmo passaporte dela", exalta a escritora e acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira que, no dia 31 de outubro, vai fazer uma palestra na ABL em homenagem ao centenário da amiga.
"Sua maior contribuição à literatura brasileira foi ela mesma. Nunca foi uma militante. Mas influenciou as mulheres que a leram. Lygia não criava personagens. Criava pessoas. Sou muito grata a Lygia por todas as reflexões que despertou em mim."
O número de livros publicados só não é maior porque ela rejeitava os três primeiros, de contos: Porão e Sobrado, de 1938; Praia Viva, de 1944; e O Cacto Vermelho, de 1949, que classifica como "imaturos" e "precipitados".
Lygia começou a escrever muito cedo, quando cursava o antigo ginásio no Instituto Caetano de Campos, em São Paulo. Seu primeiro livro foi publicado com recursos do pai, o advogado Durval de Azevedo Fagundes.
"Fico aflita só de pensar nas novas gerações lendo esses meus livros. Não quero que percam tempo com eles!", afirmou, em 1998.
Do pai, Lygia dizia ter herdado "o vício do risco". Com uma diferença: ele jogava com fichas; ela, com palavras.
"Hoje, perdemos, mas amanhã a gente ganha", costumava repetir. Certo dia, Durval perdeu tudo na roleta. Por essa razão, Lygia criou verdadeiro pavor da instabilidade econômica. Conclusão: concluiu duas faculdades: a de Educação Física, em 1941, e de Direito, em 1946, ambas na Universidade de São Paulo (USP).
Para o crítico Antonio Candido, a fase “madura” de sua obra teve início em 1954, com Ciranda de Pedra. É o primeiro de seus quatro romances. Os outros são Verão no Aquário, de 1964; As Meninas, de 1973; e As Horas Nuas, de 1989.
Ciranda de Pedra ganhou duas adaptações para a TV: em 1981, adaptado por Teixeira Filho, e em 2008, por Alcides Nogueira.
"No livro, não há um só casamento; na novela, arrumaram dez! Eu via aquilo e falava: 'Oh, meu Deus, outro casamento!?'", espanta-se, referindo-se à primeira versão.
Quem também gostou de seu romance de estreia foi Simone de Beauvoir. As duas se conheceram em São Paulo em almoço oferecido pelo editor Barros Martins em 1960.
Às vésperas de regressar a Paris, a francesa marcou um encontro em uma livraria.
Queria presentear a brasileira com um exemplar de Todos os Homens São Mortais, de 1946.
Em retribuição, Lygia ofereceu uma cópia — datilografada e em francês — de Ciranda de Pedra.
Dias depois, Lygia recebeu uma carta que a deixou "em estado de graça". "Não só lera o livro como se apressara em alegrar o coração de uma escritora brasileira que passou esse dia levitando", derrete-se em crônica publicada no jornal O Estado de S. Paulo, de 8 de janeiro de 1978.
"Lygia trabalhou muito, durante toda sua vida, até os últimos anos. Posso dizer que o grande amor de sua vida foi seu trabalho", garante sua neta, Lúcia Telles, filha de Goffredo da Silva Telles Neto.
"Quando meu pai morreu, escreveu Conspiração de Nuvens para afastar a depressão."
"Minhas primeiras memórias com ela são em seu apartamento: os gatos, a máquina de escrever, recortes de jornais com os crimes que a interessavam... Quando eu era pequena, contava histórias de terror e mistério. Lia Edgar Allan Poe para mim e eu adorava. Adoro até hoje. Sinto uma falta enorme dela."
Quando colocou o ponto final em As Meninas, Lygia caiu no choro. Chegava ao fim uma "convivência encantadora". Uma das protagonistas chegou a "suplicar para que não a matasse".
"Ainda tenho muito o que dizer”, protestava Ana Clara. “Não posso morrer agora". Lygia não conseguiu salvá-la: morreu por overdose.
Em 1976, Lygia foi a Brasília, acompanhada por outros intelectuais, como a escritora Nélida Piñon, entregar ao ministro da Justiça, Armando Falcão, um manifesto contra a censura.
Passado algum tempo, Paulo Emílio chegou em casa rindo. Soube que o censor encarregado de ler As Meninas não conseguiu passar da página 40. "Achou tudo muito chato", explicou a autora, em 2009.
Sorte a dela. Nas páginas 148 e 149, reproduz um doloroso relato de tortura. O romance ganhou quatro versões: três para o teatro e uma para o cinema.
No filme de Emiliano Ribeiro, Lorena, Lia e Ana Clara foram interpretadas por Adriana Esteves, Drica Moraes e Cláudia Liz.
"Uma série de autoras contemporâneas que dedicaram obras ao período da ditadura militar poderiam ser netas da Lygia. Não posso afirmar que todas a leram, mas, de todo modo, se juntam a Lygia nessas páginas de nossa história literária como um alerta do que não pode ser esquecido por todos nós, como coletividade, mas sem apagar os caminhos mais interiores, mas ressaltá-los", afirma a pesquisadora Luciana Araújo Marques que, no próximo dia 19, vai mediar, às 20h, na livraria Gato sem Rabo (SP), um bate-papo com as escritoras Andréa del Fuego e Aline Bei sobre o legado da aniversariante do dia.
"Para mim, essas escritoras agem como guerrilheiras da negação da morte. Talvez menos em um sentido de eternidade e da monumentalização do que é tido como 'o que fica' e é 'canonizado', e mais como uma exaltação da vida contra tudo o que mata antes da hora de morrer."
Além da francesa Simone de Beauvoir, Lygia conheceu outros gigantes da literatura universal: o americano William Faulkner e o argentino Jorge Luís Borges.
Faulkner, Nobel de Literatura, esteve em São Paulo entre os dias 8 e 14 de agosto de 1954 para participar do I Congresso Internacional de Escritores.
Durante sua estadia, experimentou camarão à baiana, espantou-se com uma sucuri de oito metros e deitou-se no chão do Museu de Arte de São Paulo (Masp) para aliviar as dores nas costas.
"Chegou meio fora de órbita", contou Lygia ao jornal Folha de S.Paulo, de 14 de setembro de 1997. "Estava sempre com o cabelo molhado. Creio que para ficar desperto, devido ao excesso de álcool."
Hospedado no Esplanada, Faulkner conheceu Lygia no Butantan. Os dois foram apresentados pelo crítico Mário da Silva Brito.
"Se os seus contos forem tão belos quanto seus olhos, a senhora, certamente, é uma grande escritora", elogiou.
Nessa hora, Brito cochichou para Lígia: "Não se esqueça de colocar esse comentário na orelha do seu próximo livro. É o único que Faulkner conseguiu fazer a respeito da literatura brasileira".
Ao se despedir, já na fila de embarque do Congonhas, o visitante perguntou: "O que diabos eu vim fazer mesmo em Chicago?"
Trinta anos depois, reencontrou um velho amigo, Jorge Luís Borges, que conheceu em 1960. Em um jantar, o escritor argentino falou da importância do sonho.
"Tenho um amigo que morreu quando deixou de sonhar", advertiu. "No exato momento em que mencionou seu nome, alguém deixou cair uma taça e não consegui ouvir", recordou Lygia, em 2009.
Anos depois, a escritora leu o conto Uma Estação de Amor e decifrou o mistério: o tal amigo suicida era o uruguaio Horacio Quiroga. "Gravemente doente e sem esperança, suicidou-se com cianureto", conta no livro Durante Aquele Estranho Chá, de 2002.
Na entrevista ao Cadernos de Literatura Brasileira, Lygia lembra da ocasião em que, na década de 1970, recebeu o telefonema de um rapaz dizendo que, por causa de seus livros, não queria mais tirar a própria vida.
Lá pelas tantas, emocionada, a escritora perguntou: "O que eu posso fazer por você?". O leitor respondeu: "A senhora já fez". E desligou.
"Fico relendo meus textos, procurando, procurando, qual a palavra, meu Deus, qual a palavra que foi capaz daquilo? Nunca vou saber", divagou, em 1998. "No fundo, a literatura é uma forma de amor", concluiu.
"Era uma mulher à frente de seu tempo. Tinha forte preocupação com o papel social da mulher. Debater sua contribuição à literatura é tarefa dos acadêmicos. Queremos enfatizar sua contribuição humanista. Às vezes, nos preocupamos tanto em estudar uma obra que esquecemos da pessoa incrível que criou aquela obra", afirma a jornalista Rachel Valença, coordenadora de literatura do Instituto Moreira Salles (IMS) que, desde 2002, guarda o acervo da escritora, composto de cartas, originais, fotografias e até da Olivetti que ganhou de Paulo Emílio na Itália.
No dia 11 de maio, o IMS organiza uma mesa de debates, com participação da acadêmica Ana Maria Machado, a agente literária Lúcia Riff e a pesquisadora Elizama Almeida, na ABL
Avessa a autobiografias, Lygia lançou três livros de memórias: Invenção e Memória, de 2000; Durante Aquele Estranho Chá, de 2002, e Conspiração de Nuvens, de 2007.
No segundo volume, esmiúça, entre outras histórias, a visita que fez a Monteiro Lobato no presídio Tiradentes em 1941 — o criador do Sítio do Picapau Amarelo fora preso por criticar o Estado Novo — e o encontro com o poeta modernista Mário de Andrade na confeitaria Vienense, na rua Barão de Itapetininga, em 1944.
"Se eu tivesse pernas tão lindas, ia lá pensar em literatura?", foi obrigada a ouvir em uma das vezes em que esbarrou com Monteiro Lobato.
No estranho chá com o autor de Macunaíma, a jovem estudante de Direito com aspiração literária saiu da confeitaria com uma carta. O que Mário de Andrade teria achado de seus escritos? Nunca saberemos...
"No dia seguinte, na maior emoção, levei a carta para exibi-la a dois colegas da Faculdade. Mas, acabei por perdê-la numa das salas de aula e nunca mais", lamentou na crônica que dá título ao livro.
Dos 16 livros publicados pela Companhia das Letras, onze são de contos. Apenas um, Passaporte para a China, é de crônicas — a pedido de Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, escreveu impressões sobre uma viagem de 20 dias a Pequim e Shanghai em 1960.
"Tentei fazer poesia quando estava na Faculdade de Direito. Mas logo percebi que era apenas um apelo de juventude", reconheceu ao Cadernos de Literatura Brasileira.
Só Jabuti, o mais importante prêmio literário brasileiro, foram quatro: O Jardim Selvagem, de 1966; As Meninas, de 1973; A Noite Escura e Mais Eu, de 1996, e Invenção e Memória, de 2001.
Em 2005, levou para casa o Camões, o "Nobel" da Língua Portuguesa. Em 2016, teve seu nome indicado ao Nobel de Literatura. Perdeu a honraria para o cantor e compositor americano Bob Dylan.
"Era minha vizinha no Jardins. Quando caminhávamos pelo bairro, abraçava as árvores, brincava com os animais... Também íamos ao cinema. Comentava o filme em voz alta. Às vezes, isso gerava um 'psiu' dos outros espectadores", relata o escritor e acadêmico José Renato Nalini.
"Também gostava de conversar ao telefone. Lia seus contos e pedia minha opinião. O que me desvanecia. Tínhamos em casa uma poodle que era avessa a humanos. Mas, quando Lygia chegava, pulava no seu colo. Ficava extasiada. Sinto imensa falta de Lygia, a amiga, mais do que a imortal."
Dos três sonhos de infância, realizou dois: publicou mais de 20 obras e, por 32 votos a sete, foi eleita para a cadeira 16 da ABL em 24 de outubro de 1985.
Foi mais ou menos nesta época que Lygia tomou ranço de aniversário. Quando tinha 10 anos, sua mãe, a pianista Maria do Rosário Silva Jardim de Moura, a Zazita, preparou uma festa linda. Ninguém apareceu. Também, pudera. A aniversariante esqueceu de entregar os convites...
"Aniversário é uma data boa quando se é jovem. Depois da velhice brutal, não quero mais!", desabafou ao Globo, em 12 de abril de 2013. Depois de sua morte, descobriu-se que Lygia Fagundes Telles não nasceu em 19 de abril de 1923. Nasceu cinco anos antes: em 19 de abril de 1918.
"Quando Lygia nasceu, todas as fadas se debruçaram sobre seu berço. Era uma mulher linda, inteligente, excelente escritora e um senso de humor formidável. Tinha o coração do lado certo. Sempre defendeu as boas causas. Era um orgulho ter o mesmo passaporte dela", exalta a escritora e acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira que, no dia 31 de outubro, vai fazer uma palestra na ABL em homenagem ao centenário da amiga.
"Sua maior contribuição à literatura brasileira foi ela mesma. Nunca foi uma militante. Mas influenciou as mulheres que a leram. Lygia não criava personagens. Criava pessoas. Sou muito grata a Lygia por todas as reflexões que despertou em mim."
O número de livros publicados só não é maior porque ela rejeitava os três primeiros, de contos: Porão e Sobrado, de 1938; Praia Viva, de 1944; e O Cacto Vermelho, de 1949, que classifica como "imaturos" e "precipitados".
Lygia começou a escrever muito cedo, quando cursava o antigo ginásio no Instituto Caetano de Campos, em São Paulo. Seu primeiro livro foi publicado com recursos do pai, o advogado Durval de Azevedo Fagundes.
"Fico aflita só de pensar nas novas gerações lendo esses meus livros. Não quero que percam tempo com eles!", afirmou, em 1998.
Do pai, Lygia dizia ter herdado "o vício do risco". Com uma diferença: ele jogava com fichas; ela, com palavras.
"Hoje, perdemos, mas amanhã a gente ganha", costumava repetir. Certo dia, Durval perdeu tudo na roleta. Por essa razão, Lygia criou verdadeiro pavor da instabilidade econômica. Conclusão: concluiu duas faculdades: a de Educação Física, em 1941, e de Direito, em 1946, ambas na Universidade de São Paulo (USP).
Para o crítico Antonio Candido, a fase “madura” de sua obra teve início em 1954, com Ciranda de Pedra. É o primeiro de seus quatro romances. Os outros são Verão no Aquário, de 1964; As Meninas, de 1973; e As Horas Nuas, de 1989.
Ciranda de Pedra ganhou duas adaptações para a TV: em 1981, adaptado por Teixeira Filho, e em 2008, por Alcides Nogueira.
"No livro, não há um só casamento; na novela, arrumaram dez! Eu via aquilo e falava: 'Oh, meu Deus, outro casamento!?'", espanta-se, referindo-se à primeira versão.
Quem também gostou de seu romance de estreia foi Simone de Beauvoir. As duas se conheceram em São Paulo em almoço oferecido pelo editor Barros Martins em 1960.
Às vésperas de regressar a Paris, a francesa marcou um encontro em uma livraria.
Queria presentear a brasileira com um exemplar de Todos os Homens São Mortais, de 1946.
Em retribuição, Lygia ofereceu uma cópia — datilografada e em francês — de Ciranda de Pedra.
Dias depois, Lygia recebeu uma carta que a deixou "em estado de graça". "Não só lera o livro como se apressara em alegrar o coração de uma escritora brasileira que passou esse dia levitando", derrete-se em crônica publicada no jornal O Estado de S. Paulo, de 8 de janeiro de 1978.
"Lygia trabalhou muito, durante toda sua vida, até os últimos anos. Posso dizer que o grande amor de sua vida foi seu trabalho", garante sua neta, Lúcia Telles, filha de Goffredo da Silva Telles Neto.
"Quando meu pai morreu, escreveu Conspiração de Nuvens para afastar a depressão."
"Minhas primeiras memórias com ela são em seu apartamento: os gatos, a máquina de escrever, recortes de jornais com os crimes que a interessavam... Quando eu era pequena, contava histórias de terror e mistério. Lia Edgar Allan Poe para mim e eu adorava. Adoro até hoje. Sinto uma falta enorme dela."
Quando colocou o ponto final em As Meninas, Lygia caiu no choro. Chegava ao fim uma "convivência encantadora". Uma das protagonistas chegou a "suplicar para que não a matasse".
"Ainda tenho muito o que dizer”, protestava Ana Clara. “Não posso morrer agora". Lygia não conseguiu salvá-la: morreu por overdose.
Em 1976, Lygia foi a Brasília, acompanhada por outros intelectuais, como a escritora Nélida Piñon, entregar ao ministro da Justiça, Armando Falcão, um manifesto contra a censura.
Passado algum tempo, Paulo Emílio chegou em casa rindo. Soube que o censor encarregado de ler As Meninas não conseguiu passar da página 40. "Achou tudo muito chato", explicou a autora, em 2009.
Sorte a dela. Nas páginas 148 e 149, reproduz um doloroso relato de tortura. O romance ganhou quatro versões: três para o teatro e uma para o cinema.
No filme de Emiliano Ribeiro, Lorena, Lia e Ana Clara foram interpretadas por Adriana Esteves, Drica Moraes e Cláudia Liz.
"Uma série de autoras contemporâneas que dedicaram obras ao período da ditadura militar poderiam ser netas da Lygia. Não posso afirmar que todas a leram, mas, de todo modo, se juntam a Lygia nessas páginas de nossa história literária como um alerta do que não pode ser esquecido por todos nós, como coletividade, mas sem apagar os caminhos mais interiores, mas ressaltá-los", afirma a pesquisadora Luciana Araújo Marques que, no próximo dia 19, vai mediar, às 20h, na livraria Gato sem Rabo (SP), um bate-papo com as escritoras Andréa del Fuego e Aline Bei sobre o legado da aniversariante do dia.
"Para mim, essas escritoras agem como guerrilheiras da negação da morte. Talvez menos em um sentido de eternidade e da monumentalização do que é tido como 'o que fica' e é 'canonizado', e mais como uma exaltação da vida contra tudo o que mata antes da hora de morrer."
Além da francesa Simone de Beauvoir, Lygia conheceu outros gigantes da literatura universal: o americano William Faulkner e o argentino Jorge Luís Borges.
Faulkner, Nobel de Literatura, esteve em São Paulo entre os dias 8 e 14 de agosto de 1954 para participar do I Congresso Internacional de Escritores.
Durante sua estadia, experimentou camarão à baiana, espantou-se com uma sucuri de oito metros e deitou-se no chão do Museu de Arte de São Paulo (Masp) para aliviar as dores nas costas.
"Chegou meio fora de órbita", contou Lygia ao jornal Folha de S.Paulo, de 14 de setembro de 1997. "Estava sempre com o cabelo molhado. Creio que para ficar desperto, devido ao excesso de álcool."
Hospedado no Esplanada, Faulkner conheceu Lygia no Butantan. Os dois foram apresentados pelo crítico Mário da Silva Brito.
"Se os seus contos forem tão belos quanto seus olhos, a senhora, certamente, é uma grande escritora", elogiou.
Nessa hora, Brito cochichou para Lígia: "Não se esqueça de colocar esse comentário na orelha do seu próximo livro. É o único que Faulkner conseguiu fazer a respeito da literatura brasileira".
Ao se despedir, já na fila de embarque do Congonhas, o visitante perguntou: "O que diabos eu vim fazer mesmo em Chicago?"
Trinta anos depois, reencontrou um velho amigo, Jorge Luís Borges, que conheceu em 1960. Em um jantar, o escritor argentino falou da importância do sonho.
"Tenho um amigo que morreu quando deixou de sonhar", advertiu. "No exato momento em que mencionou seu nome, alguém deixou cair uma taça e não consegui ouvir", recordou Lygia, em 2009.
Anos depois, a escritora leu o conto Uma Estação de Amor e decifrou o mistério: o tal amigo suicida era o uruguaio Horacio Quiroga. "Gravemente doente e sem esperança, suicidou-se com cianureto", conta no livro Durante Aquele Estranho Chá, de 2002.
Na entrevista ao Cadernos de Literatura Brasileira, Lygia lembra da ocasião em que, na década de 1970, recebeu o telefonema de um rapaz dizendo que, por causa de seus livros, não queria mais tirar a própria vida.
Lá pelas tantas, emocionada, a escritora perguntou: "O que eu posso fazer por você?". O leitor respondeu: "A senhora já fez". E desligou.
"Fico relendo meus textos, procurando, procurando, qual a palavra, meu Deus, qual a palavra que foi capaz daquilo? Nunca vou saber", divagou, em 1998. "No fundo, a literatura é uma forma de amor", concluiu.
"Era uma mulher à frente de seu tempo. Tinha forte preocupação com o papel social da mulher. Debater sua contribuição à literatura é tarefa dos acadêmicos. Queremos enfatizar sua contribuição humanista. Às vezes, nos preocupamos tanto em estudar uma obra que esquecemos da pessoa incrível que criou aquela obra", afirma a jornalista Rachel Valença, coordenadora de literatura do Instituto Moreira Salles (IMS) que, desde 2002, guarda o acervo da escritora, composto de cartas, originais, fotografias e até da Olivetti que ganhou de Paulo Emílio na Itália.
No dia 11 de maio, o IMS organiza uma mesa de debates, com participação da acadêmica Ana Maria Machado, a agente literária Lúcia Riff e a pesquisadora Elizama Almeida, na ABL
Avessa a autobiografias, Lygia lançou três livros de memórias: Invenção e Memória, de 2000; Durante Aquele Estranho Chá, de 2002, e Conspiração de Nuvens, de 2007.
No segundo volume, esmiúça, entre outras histórias, a visita que fez a Monteiro Lobato no presídio Tiradentes em 1941 — o criador do Sítio do Picapau Amarelo fora preso por criticar o Estado Novo — e o encontro com o poeta modernista Mário de Andrade na confeitaria Vienense, na rua Barão de Itapetininga, em 1944.
"Se eu tivesse pernas tão lindas, ia lá pensar em literatura?", foi obrigada a ouvir em uma das vezes em que esbarrou com Monteiro Lobato.
No estranho chá com o autor de Macunaíma, a jovem estudante de Direito com aspiração literária saiu da confeitaria com uma carta. O que Mário de Andrade teria achado de seus escritos? Nunca saberemos...
"No dia seguinte, na maior emoção, levei a carta para exibi-la a dois colegas da Faculdade. Mas, acabei por perdê-la numa das salas de aula e nunca mais", lamentou na crônica que dá título ao livro.
Dos 16 livros publicados pela Companhia das Letras, onze são de contos. Apenas um, Passaporte para a China, é de crônicas — a pedido de Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, escreveu impressões sobre uma viagem de 20 dias a Pequim e Shanghai em 1960.
"Tentei fazer poesia quando estava na Faculdade de Direito. Mas logo percebi que era apenas um apelo de juventude", reconheceu ao Cadernos de Literatura Brasileira.
Só Jabuti, o mais importante prêmio literário brasileiro, foram quatro: O Jardim Selvagem, de 1966; As Meninas, de 1973; A Noite Escura e Mais Eu, de 1996, e Invenção e Memória, de 2001.
Em 2005, levou para casa o Camões, o "Nobel" da Língua Portuguesa. Em 2016, teve seu nome indicado ao Nobel de Literatura. Perdeu a honraria para o cantor e compositor americano Bob Dylan.
"Era minha vizinha no Jardins. Quando caminhávamos pelo bairro, abraçava as árvores, brincava com os animais... Também íamos ao cinema. Comentava o filme em voz alta. Às vezes, isso gerava um 'psiu' dos outros espectadores", relata o escritor e acadêmico José Renato Nalini.
"Também gostava de conversar ao telefone. Lia seus contos e pedia minha opinião. O que me desvanecia. Tínhamos em casa uma poodle que era avessa a humanos. Mas, quando Lygia chegava, pulava no seu colo. Ficava extasiada. Sinto imensa falta de Lygia, a amiga, mais do que a imortal."
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