Foi uma senhora — e não lhe digo o nome, senhor redator, porque na verdade não sei. Foi uma bela senhora — mas para que contar essas coisas? Seria melhor que eu falasse de outras pessoas. Sim, houve outras pessoas que me impressionaram muito; cinco ou seis ou mais, sete ou oito, deixa-me ver. Nove — lembro-me neste momento de nove, conto-as nos dedos. Sou muito impressionável. Agora, neste começo de velhice, parece que… Mas basta! Por que maldita inclinação hei de eu estar sempre a explicar meu temperamento? Quando me convencerei de que a ninguém interessam meus desmanchos internos? Grandes e feios desmanchos, na verdade — mas vou lhe falar a respeito daquela mulher.
Abençoada eternamente seja aquela mulher. Eu a conheci dez minutos depois de minha morte. O médico e as duas enfermeiras me levaram até o elevador, mas desci sozinho. Fiz questão. Repugnava-me aquele médico, repugnavam-me as enfermeiras, três corvos brancos que tinham presidido à minha morte. Brancos, frios, vorazes, vorazes de minha carne, de minha dor física, vorazes, precisos, profissionais. Eu não sentia mais nenhuma dor aguda, mas ainda estava completamente embrulhado naquele sentimento da morte, a morte anunciada, ou pior ainda, insinuada, sussurrada — e durante dez ou vinte minutos intensamente vivida. Corvos!
Eu pensara com raiva, com uma desesperada raiva, que ia deixar a vida. Tudo o que eu podia enxergar às vezes, e vagamente, era a cara do médico — uma cara de óculos, uma cara fria, a cara de um inimigo. Parecia exatamente um inimigo meu; a boca, o nariz, os óculos, tudo era igual à cara do meu inimigo. E ele mesmo era meu inimigo, pois me torturava ali com as mãos impiedosas e tinha aqueles olhos frios. Na minha impotência sonhei em me erguer, matá-lo, depois sair à rua, tomar um automóvel, matar outro inimigo, matar torturando o patife. Desfilaram diante de mim outras caras de inimigos, caras antipáticas, frias, cruéis, mesquinhas, todos satisfeitos porque eles iam continuar vivos e eu ia morrer — eu ia morrer naquele momento, estava morrendo. Assassinei-os a todos em imaginação, assassinei-os e insultei-os mentalmente com pesados palavrões. Depois meu pensamento voltou para mim mesmo, e tive pena de morrer, tive uma extraordinária pena de mim, e me dirigi palavras de amizade. Pobre Rubem, lá se vai ele! E ouvi vozes amigas de homens e mulheres, revi rostos amigos — e pensei em vós, alma querida, alma querida a que jamais servi bem. Pensei em vós, e pensei com doçura e uma espécie de remorso, e senti que a vida tinha valido a pena porque vos estimei e tive a vossa estima; pensei em vós, e vos beijei os olhos… Uma dor aguda, insuportável, me feriu; depois, através das lágrimas que formavam poças nos meus olhos, vi outra vez aquela cara fria, de óculos frios…
Estivera desmaiado tão pouco tempo, mas no elevador me parecia que eu tinha regressado de uma longa morte. O cabineiro me olhou com susto, queria ir buscar um táxi. Eu não quis. Consegui chegar sozinho até a rua, e me encostei a uma parede. Fazia sol, ventava, era uma bela manhã de uma beleza assanhada e feliz. Mas meus olhos ainda viam a morte, a amargura da morte ainda embrulhava meu coração — embrulhava como um sujo papel de embrulho embrulha alguma coisa. Sentia-me fraco e vazio; talvez fosse melhor ter morrido, não ter voltado. Foi então que passou aquela mulher.
Seus finos cabelos negros brilhavam ao sol e sua pele era muito branca. Por um instante deteve em mim os grandes olhos verdes ou azuis, talvez porque lesse em meus olhos o que eu acabara de passar. Aqueles olhos! Não diziam que estavam com pena, apenas me davam coragem; eram limpos, amigos; e eram tão belos, eram fascinantes; era a vida, a úmida luz da vida, a bela e ansiosa vida. Voltei-me quando ela passou. Era alta, pisava com uma graça firme, caminhava levada pela poderosa e leve energia da vida, caminhava ao sol naquela manhã de vento, naquela manhã assanhada que brilhava feliz, brilhava em seus finos cabelos negros… Desculpe, senhor redator. Estou escrevendo demais, minha resposta está enorme. Eu sou muito impressionável! Sim, de todos os tipos humanos e divinos nenhum como aquela senhora me impressionou tanto; e quando a vi novamente, meses depois, em um bar… Mas para que falar nessas coisas?
Rubem Braga
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