Evelyn Page |
Sempre li bem em francês, que estudei na adolescência. Mas tenho um sotaque pavoroso nas línguas que aprendi: espanhol, inglês, francês, como contei. Morei no México, nos Estados Unidos, viajei muito. Na hora de falar, um pavor. Deve ser coisa de família: minha avó veio adolescente para o Brasil e até o fim da vida falava português com um sotaque espanhol absurdo. Disse isso para contar que voltei a estudar francês. Aulas em torno de literatura, pedi. Ele escolheu o livro Um roman russe, de Emmanuel Carrère. Chegou a mim por acaso, portanto. Mas assim funciona um aspecto misterioso da vida do autor. O livro certo chega na hora certa. Lá pelas tantas, Un roman russe fala do avô do próprio escritor. Um filósofo que fala cinco línguas, da Geórgia, que, ao emigrar para a França, trabalha como motorista de táxi. E vive a insatisfação de não poder ser mais reconhecido como filósofo. Eu estava travado com um personagem de minha próxima novela, Candinho (título provisório). Exatamente um filósofo não valorizado. Marco Nanini já aceitou o papel! E, de repente, as emoções de um livro que nada tem a ver com minha história me instigaram em relação a meu próprio personagem. Parece mágica!
Sou rato de livraria. Viciado em livros, acabo comprando mais do que leio. Em um processo criativo, parece que minha mão é conduzida exatamente para um livro inspirador. Vejam bem, as histórias nunca são parecidas. Dou um exemplo: quando estava escrevendo Verdades secretas, reli alguns contos do francês Guy de Maupassant. Ele fala muito do universo das prostitutas em Paris, no século XIX. Um de seus contos, “Yvete”, trata de uma jovem criada num bordel que pertence a sua mãe. E que tenta o suicídio quando se vê diante da opção de seguir o mesmo caminho materno. Salva, já se percebe que será prostituta. Nada a ver com a minha Angel, portanto, que vem de uma família de classe média, moralista. Mas a emoção narrada por Maupassant me tocou. É a angústia de uma jovem diante da possibilidade de vender seu corpo. Já vi acontecer com outros autores. O próprio Chico Buarque criou Geni, da Ópera do malandro, que tem um parentesco com Bola de Sebo, de Guy de Maupassant. Palmas para Chico, que criou uma Geni diferente e, ao mesmo tempo, capaz de transmitir emoções igualmente intensas.
Eu conheço autores que se inspiram no cinema americano de décadas passadas. Grandes autores. Nos últimos tempos, inventou-se a palavra “releitura” para explicar o uso de fontes de inspiração. Por isso mesmo, sinto arrepios quando alguém me procura, diz que tem um texto, que já registrou na Biblioteca Nacional. Eu me recuso a ler. Explico:
– Se eu ler, e mais tarde tiver uma ideia ligeiramente parecida, você vai me processar. Se eu não ler, saberá que foi coincidência.
O pior é que não há coincidências. Há teses literárias que dizem existir somente pouco mais de 20 tramas contadas ao longo de toda a história. Essas tramas são como um alfabeto: articuladas de uma maneira ou de outra, se tornam originais. Shakespeare nunca escreveu uma história inventada por ele mesmo. Lançou mão de lendas, contos. Só que na época não havia essa questão de propriedade intelectual. Senão, ele não teria passado da primeira peça. Homero também não teria cantado os versos da Odisseia e da Ilíada, pois são um apanhado de lendas e poemas preexistentes. Boa parte das histórias segue estruturas básicas, é fato. Histórias espíritas, por exemplo, sempre partem de alguém que morre e retorna em outra existência para resgatar algo da vida anterior: um amor, um erro, um crime. O próprio Gabriel García Márquez reconheceu que, para escrever Cem anos de solidão, inspirou-se na estrutura de O tempo e o vento, de Érico Veríssimo. Eu tenho certeza de que Márquez deve ter lido O tempo e o vento por acaso, ou quase. Leu e aí se inspirou para sua obra máxima. A verdade é que um autor “conversa” com outro, do passado. Essa é a mágica do autor: a presença viva da literatura, do cinema, da televisão em sua cabeça. Sempre me perguntam de onde vem minha inspiração. Tenho duas respostas. A primeira é uma lenda indígena segundo a qual haveria um lago. No fundo desse lago, pedras, que constituem todo o tesouro da imaginação humana. O autor “mergulha” nesse lago imaterial e resgata uma pedra. Sua história.
Mas há também outra explicação importante. Também é preciso responder:
– Sou apenas o elo de uma corrente.
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