quinta-feira, setembro 24

Lygia Fagundes Telles vê a China acordar

A China acordou, está acordadíssima. É a constatação que faz Lygia Fagundes Telles em 1960, quando fez parte de uma delegação convidada a visitar o país asiático. O objetivo era mostrar a pessoas do mundo inteiro a transformação pela qual a China havia passado desde que Mao Tse Tung assumira o comando do país, 11 anos antes. Lygia, que nunca foi comunista, seguiu o roteiro oficial da visita, mas estava muito mais interessada em pessoas do que em política. É sobre elas que falaria em crônicas publicadas à época pela “Última Hora” e lançadas em livro apenas em 2011, sob o título “Passaporte para a China: Crônicas de Viagem” (Companhia das Letras), que representa a única incursão da escritora pelo gênero de Rubem Braga.

passaporte
Mas o livro não é apenas sobre a China, já que, antes de chegar até lá, a escritora fez escala em várias cidades, e sobre cada uma registrou, com sensibilidade, as suas impressões. Assim é que ela passa por Dacar, com os negros mais belos do mundo, pela feminina Paris, por Praga, com o verde mais verde do mundo, por Moscou, de onde não podia sair do hotel, mas tentou fugir para ir à Praça Vermelha, e ainda pela Sibéria, onde uma mulher a ajudou a costurar dois botões que lhe ameçavam cair da blusa. Na medida em que registra a singularidade de cada uma dessas cidades, Lygia também vai reconstruindo as suas próprias memórias afetivas.

Quanado, enfim, chega à China e termina o tormento de suas viagens de avião, ela encontra um país em que a novidade da revolução se mistura com a cultura milenar. Lygia (ou Madame Telezê, como era chamada pelo guia local) encontra no chinês um povo nem melhor nem pior, apenas diferente, a começar pelas janelas, tão difíceis de abrir para um ocidental. Ainda que destaque o grande controle fisionômico do chinês, a escritora observa que ele é um excelente ouvinte, e tão cordial que chega até a se aproximar do baiano.

Mas nem por isso o chinês deixa de estranhar o brasileiro. Lygia se espanta quando não vê um único cachorro ou gato pelas ruas de Pequim, e descobre que os chineses não os tem, porque trazem muitas infecções. As mulheres de lá também não se maquiavam, não se preocupavam com o que chamavam de “ninharias”, já que o fundamental era reconstruir a nação. Não havia nem mesmo namorados, pessoas de mãos dadas andando pelas ruas. Mas o guia tratou de tranquilizar Madame Telezê: desse jeito mesmo, eles eram maior população da terra.

É curioso o relato do encontro de Lygia com os escritores locais, muitos engajados no Partidão, e todos tendo que passar algum tempo nos meios agrícolas, para não perderem contato com o povo e também para se humanizarem. Os próprios políticos se sujeitavam à experiência. Não admira que, perguntada se o regime da China funcionaria no Brasil, a escritora disse que não. O regime da China era bom para a China, onde não faltava constância nem disciplina.

Mas Lygia gostou mesmo foi de Shangai, a velada e sinuosa Shangai, embora ela não trouxesse lembranças boas aos chineses, pois até pouco tempo era possível perceber ali a humilhação e o sofrimento trazidos pela estrangeiro. Naquela época, no entanto, a cidade já se considerava livre e renascida para uma nova fase de prosperidade. Lygia vai observando à medida em que confronta suas impressões com outras mais antigas, nascidas dos livros e dos filmes.

Claro, a escritora não podia adivinhar o que iria acontecer dali para frente, os rumos que o país iria tomar, a ditadura em que o regime viria se transformar. Seus relatos humanos ajudam a desvendar um pouco mais sobre quem é o homem que mora do outro lado do mundo, e quem ele poderá vir a ser, já que não se sabe até que ponto a China já está totalmente desperta.

Henrique Fendrich

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