quinta-feira, setembro 10

Fim da lentidão

A velocidade é a forma de êxtase que a revolução técnica  deu de presente ao homem. Ao contrário do motociclista, quem corre a pé está sempre presente em seu corpo, forçado a pensar sempre em suas bolhas, em seu fôlego; quando corre, sente seu peso, sua idade, consciente mais do que nunca de si mesmo e do tempo de sua vida. Tudo muda quando o homem delega a uma máquina a faculdade de ser veloz: a partir de então, seu próprio corpo fica fora do jogo e ele se entrega a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase.

Curiosa aliança: a fria impessoalidade da técnica e as chamas do êxtase. Lembro-me daquela americana que, há trinta anos, com expressão severa e entusiasmada, uma espécie de apparatchik do erotismo, me deu uma aula (glacialmente teórica) sobre a liberação sexual; a palavra que surgia com maior frequência em seu discurso era a palavra orgasmo; eu contei: quarenta e três vezes. O culto do orgasmo: o utilitarismo puritano projetado na vida sexual; a eficácia em contraposição à ociosidade; o coito reduzido a um obstáculo que é preciso ultrapassar o mais rápido possível para chegar a uma explosão extática, único objetivo verdadeiro do amor e do universo.

Por que o prazer da lentidão desapareceu? Ah, para onde foram aqueles que antigamente gostavam de flanar? Onde estão eles, aqueles heróis preguiçosos das canções populares,aqueles vagabundos que vagavam de moinho em moinho e dormiam sob as estrelas? Será que desapareceram junto com as veredas campestres, os prados e as clareiras, com a natureza? Um provérbio tcheco define a doce ociosidade deles com uma metáfora: eles estão contemplando as janelas de Deus. Aquele que contempla as janelas de Deus não se aborrece; é feliz. Em nosso mundo, a ociosidade transformou-se em desocupação, o que é uma coisa inteiramente diferente; o desocupado fica frustrado, se aborrece, está constantemente à procura do movimento que lhe falta.

Milan Kundera, "A lentidão"

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