Há uma maneira de se aproximar de Mário de Andrade (1893-1945) para conhecê-lo como quem conviveu com ele: debruçar-se sobre suas cartas. O escritor paulistano – também músico e agitador cultural – sofria, como ele mesmo diz, de “gigantismo epistolar”. Escrevia cartas de todos os estilos e tons, sobretudo aos amigos, com quem tricotava com a mesma facilidade que estabelecia as bases do Modernismo brasileiro. Pois, para quem quer ter o gostinho de ser seu amigo, as cartas de Mário acabam de virar tema de uma exposição que abre as portas neste sábado, no Centro Cultural dos Correios, em São Paulo – depois de passar pelo Rio de Janeiro e por Brasília e ser vista por 50.000 visitantes.
O valor dessas cartas aumenta à medida em que seus destinatários não eram personagens quaisquer. Mário era uma das vozes e mentes principais de um grupo composto pelos maiores representantes das artes e da cultura no Brasil em sua época. À amiga Tarsila do Amaral, por quem nutria certa paixão, escreveu em novembro de 1923, quando a pintora e outros modernistas passavam uma temporada na França – com a qual Mário não estava muito de acordo:
“Cuidado! Fortifiquem-se bem de teorias e desculpas e coisas vistas em Paris. Quando vocês aqui chegarem, temos briga, na certa. Desde já, desafio vocês todos juntos, Tarsila, Oswaldo, Sérgio para uma discussão formidável. Vocês foram a Paris como burgueses. Estão épates [chatos]. E se fizeram futuristas! (…) Se vocês tiverem coragem, venham para cá, aceitem meu desafio”.
O desafio em questão era construir um Brasil moderno, com cara de brasileiro. Sobre esse país autêntico e pra frente, pelo qual Mário não se cansava de lutar, ele falou ao poeta Carlos Drummond de Andrade – que tanto o admirou, apesar dos estilos diferentes de ambos.“Carlos, devote-se ao Brasil junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século XIX, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. (…) Nós temos que dar ao Brasil o que ele não é, e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo o sacrifício é grandioso, é sublime”, disse o escritor em uma carta de novembro de 1924. O discurso, de tão pertinente aos dias de hoje, chega a comover.
Bom conselheiro e crítico que era, Mário de Andrade era procurado pelos amigos para que opinasse sobre a produção artística deles. À pintora e sua grande amiga Anita Malfatti, dirigiu-se em uma carta cujo ano é desconhecido assim:
“Agora são 10 e meia. Apenas me levantei. Mas a primeira coisa que faço é pensar em ti e no teu desenho. Acabo de tornar a olhá-lo. Queres a minha opinião sobre ele, orgulhosinha? Pois fica sabendo que me entusiasmei”.
Carta de Di Cavalcanti a Mario de Andrade |
“O Carnaval aqui esteve bem divertido, apesar da frieza paulista. Eu, pelo menos, me diverti à larga e os bailes estiveram colossais, todos dizem. Mas nem assim deixava de imaginar de vez en quando no que estariam fazendo vocês aí do grupinho”.
Mário de Andrade – Cartas do Modernismo, em cartaz até 11 de novembro, traz a correspondência do autor de uma maneira didática, pincelando em diferentes estações de visita os momentos mais marcantes de sua trajetória. Dividida em períodos e feita para ser degustada em camadas, de acordo com o conhecimento de cada um sobre Mário, a mostra traça uma cronologia do Primeiro Modernismo por meio de reproduções de obras, livros e textos. No Segundo Modernismo, trata da amizade de Mário com Portinari mostrando a admiração e o carinho mútuos. Para ampliar a experiência, algumas obras de arte modernistas de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e, claro, Portinari, complementam os textos.
O melhor é que não se trata de ficar de pé, lendo cartas extensas e escritas à mão – o que hoje causaria intolerância em muitos. A exposição, com curadoria de Denise Mattar, propõe uma interatividade, meio à moda antiga, em que o visitante pode sentar no chão em meio a reproduções de cartas de papel espalhadas, escutar uma seleção de algumas delas, que foram gravadas em áudio, ou então se debruçar sobre os livros que as editaram. O importante é mergulhar em seu universo e, se possível, ficar amigo do Mário.
Camila Moraes
Nenhum comentário:
Postar um comentário