segunda-feira, setembro 14

Teorema

El-Rei D. Pedro, o Cruel, está na janela sobre a praceta onde sobressai a estátua municipal do marquês Sá da Bandeira. Gosto deste rei louco, inocente e brutal. Puseram-me de joelhos, com as mãos amarradas atrás das costas, mas levanto um pouco a cabeça, torço o pescoço para o lado esquerdo, e vejo o rosto violento e melancólico do meu pobre Senhor. Por debaixo da janela onde se encontra, existe uma outra em estilo manuelino, uma relíquia, obra delicada de pedra que resiste no meio do tempo. D. Pedro deita a vista distraída pela praça fechada pelos seus soldados. Vê a igreja monstruosa do Seminário, retórica de vidraças e nichos, as pombas que pousam na cabeça e nos braços do marquês e vê-me em baixo, ajoelhado, entre alguns dos seus homens. O rei olha para mim com simpatia. Fui condenado por ser um dos assassinos da sua amante favorita, D. Inês. Alguém quis defender-me, dizendo que eu era um patriota. Que desejava salvar o Reino da influência espanhola. Tolice. Não me interessa o Reino. Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o. Olho de novo para a janela onde se debruça. Ele diz um gracejo. Toda a gente ri.

— Preparem-me esse coelho, que tenho fome.

O rei brinca com o meu nome. O meu apelido é Coelho.

O que este homem trabalhou na nossa obra! Levou o cadáver da amante de uma ponta a outra do país, às costas da gente do povo, entre tochas e cantos fúnebres. Foi um terrível espetáculo que cidades e lugarejos apreciaram.

Alguém ordena que me levante e agradeça ao meu Senhor. Levanto-me e fico bem defronte do edifício. Vejo no rés-do-chão o letreiro da Barbearia Vidigal e o barbeiro de bigode louro que veio à porta ver o meu suplício. Vejo a janela manuelina e o rei esmagado entre os blocos dos dois prédios ao lado.

— Senhor, — digo eu — agradeço-te a minha morte. E ofereço-te a morte de D. Inês. Isto era preciso, para que o teu amor se salvasse.

Muito bem — responde o rei. —Arranquem-lhe o coração pelas costas e tragam-mo.

De novo me ajoelho e vejo os pés dos carrascos de um lado para o outro. Distingo as vozes do povo, a sua ingênua excitação. Escolhem-me um sítio das costas para enterrar o punhal. Estremeço de frio. Foi o punhal que entrou na carne e cortou algumas costelas. Uma pancada de alto a baixo do meu corpo, e verifico que o coração está nas mãos de um dos carrascos. Um moço do rei espera com a bandeja de prata batida estendida sobre a minha cabeça, e onde o coração fumegante é colocado. A multidão grita e aplaude, e só o rosto de D. Pedro está triste, embora, ao mesmo tempo, se possa ver nele uma luz muito interior de triunfo. Percebo como tudo isto está ligado, como é necessário que todas as coisas se completem. Ah, não tenho medo. Sei que vou para o inferno, visto que sou um assassino e o meu país é católico. Matei por amor do amor — e isso é do espírito demoníaco. O rei e a amante também são criaturas infernais. Só a mulher do rei, D. Constança, é do céu. Pudera, com a sua insignificância, a estupidez, o perdão a todas as ofensas. Detesto a rainha.

O moço sobe a escada com a bandeja onde o meu coração é um molusco quente e sangrento. Vê-se D. Pedro voltar-se, a bandeja aparecer perto do parapeito da janela. O rei sorri delicadamente para o meu coração e levanta-o na mão direita. Mostra-o ao povo, e o sangue escorre-lhe entre os dedos e pelo pulso abaixo. Ouvem-se aplausos. Somos um povo bárbaro e puro, e é uma grande responsabilidade estar à frente de, um povo assim. Felizmente o nosso rei encontra-se à altura do seu cargo, entende a nossa alma obscura, religiosa, tão próxima da terra. Somos também um povo cheio de fé. Temos fé na guerra, na justiça, na crueldade, no amor, na eternidade. Somos todos loucos.

Tombei com a face direita sobre a calçada e, movendo os olhos, posso aperceber-me de um pedaço muito azul de céu, acima dos telhados. Vejo uma pomba passar em frente da janela manuelina. O claxon de um carro expande-se liricamente no ar. Estamos nos começos de junho. Ainda é primavera. A terra está cheia de seiva. A terra é eterna. À minha volta dizem obscenidades. Alguém sugere que me cortem o pênis. Um moço vai perguntar ao rei se o podem fazer, mas este recusa.

— Só o coração — diz. E levanta de novo o meu coração, e depois trinca-o ferozmente. A multidão delira, aclama-o, chama-me assassino, cão, e encomenda-me a alma ao Diabo. Eu gostaria de poder agradecer a este meu povo bárbaro e puro as suas boas palavras violentas.

Um filete de sangue escorre pelo queixo de D. Pedro, e vejo os seus maxilares movendo-se ligeiramente. O rei come o meu coração. O barbeiro saiu do estabelecimento e está a meio da praça com a sua bata branca, o seu bigode louro, vendo D. Pedro a comer o meu coração cheio da inteligência do amor e do sentimento da eternidade. O marquês Sá da Bandeira é que ignora tudo, verde e colonialista no alto do seu plinto de granito. As pombas voam à volta, pousam-lhe na cabeça e nos ombros, e cagam-lhe em cima. D. Pedro retira-se, depois de dizer à multidão algumas palavras sobre crime e justiça. Aclama-o o povo mais uma vez, e dispersa. Os soldados também partem, e eu fico só para enfrentar a noite que se aproxima. Esta noite foi feita para nós, para o rei e para mim. Meditaremos. Somos ambos sábios à custa dos nossos crimes e do comum amor à eternidade. O rei estará insone no seu quarto, sabendo que amará para sempre a minha vítima. Talvez que a sua inspiração não termine aí, e ele se torne cada vez mais cruel e mais inspirado. O seu corpo ir-se-á reduzindo à força de fogo interior, e a sua paixão será sempre mais vasta e pura. E eu também irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do rei que comeu o meu coração. D. Inês tomou conta das nossas almas. Ela abandona a carne e torna-se uma fonte, uma labareda. Entra devagar nos poemas e nas cidades. Nada é tão incorruptível como a sua morte. No crisol do Inferno manter-nos-emos todos três perenemente límpidos. O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração para geração. E que ninguém tenha piedade. E Deus não é chamado para aqui.

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