sexta-feira, abril 11

O enterro do livro


As portas mal se abriam e por elas entrava a notícia. O bibliófilo, tão amigo da livraria, morreu. Durante anos formou a biblioteca com obras compradas naquelas estantes, algumas mesmo bem antigas. De tanta freqüência quase diária se tornou não apenas o freguês mais constante, mas um amigo da casa. Se já não comprava tanto, tinha-se por lá respeito a ele, principalmente por ser o dono de uma rara edição de alto valor. E chegava a hora de salvar a joia da biblioteca. Aquela mesma edição que o livreiro perdeu, na época, por não ter dinheiro suficiente. Agora ele tinha o dinheiro e a chance maior de comprar junto outras ótimas obras. O livreiro não podia deixar de comparecer para dar as primeiras condolências à família, de quem com o tempo também se tornou amigo. E lá se foi para o velório.
Chorou lágrimas sinceras, se comoveu pela surpreendente morte, quando o bibliófilo sequer sofria de qualquer doença. Mas o olho do livreiro não via o morto, via um livro pequeno, antigo, valioso. Era o único brilho em meio a tanto luto. Foi assim por dias, até na igreja durante a missa de sétimo dia. O livro estava no altar iluminado por velas, abençoado pelo padre.
Cupins e viúvas, como dizia um velho livreiro, são os piores inimigos de qualquer biblioteca. Não foi dessa vez que se rompeu a tradição. Devido a tanta amizade, foi fácil adquirir e acertar um bom preço junto à viúva. E logo logo os volumes deixaram a casa, onde marcavam ainda a presença do defunto e, como ele, corpos mortos.
Na loja, o livreiro rapidamente loteava as caixas segundo o melhor valor das obras. Era de um nervosismo surpreendente em pessoa tão calma de falar baixinho. Diante daqueles livros se arvorou em um caçador aflito atrás da presa mais importante.
E nada da preciosidade aparecer entre aquela papelada, que não era pouca nem de pequena monta. Depois de separar tudo e ver que ali não estava o que procurava, rumou para a casa do defunto, levando o dinheiro do acerto. E não se aguentou para saber sobre aquele livrinho pequenino, mas tão precioso, que não encontrou vasculhando a biblioteca.
- Ah, meu filho, ele era tão apegado àquele volume que ficava na cabeceira e toda noite ele folheava. Gostava tanto dele que coloquei o livrinho no caixão debaixo da cabeça dele!     

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