Tempos atrás, trabalhava na Argumento do Leblon um sujeito chamado Haroldo. Tinha compleição robusta, com seus 120kg mal estocados por 1,70m de altura. Na época em que ficou conhecido, usava uma barba volumosa, ruiva e fumava cachimbos fedorentos do lado de fora da livraria.Alguns diziam que era formado em Filosofia.
As más línguas comentavam que Haroldo sequer completara o Fundamental. Foi dito por aí que seu sobrenome era Bloom, mas não há qualquer certeza nisso. Também nunca se soube onde ele morava. Tinha ares de Ipanema, andar do Catete e trejeitos da Lapa. Certa vez, foi visto com sacolas de compras pelo Leme. Nunca se soube.
De todo modo, a existência de Haroldo Bloom fora da livraria não tem qualquer relevância. Entre as estantes, gôndolas de lançamentos e mesinhas de café, Haroldo existia. Era seu território, palco com holofotes.
Conheci Haroldo num sábado chuvoso. Entrei na Argumento à procura de “Tieta do Agreste”, do Jorge Amado. Nunca havia lido nada do escritor baiano, e isso me envergonhava. Haroldo estava de costas, montado numa escadinha, catalogando exemplares. Cheguei para ele e perguntei pelo livro. Por pouco o sujeito não cai da escada. Encarou-me, a expressão sombria.
— Jorge Amado?
— Sim.
— Desculpe perguntar, mas... O senhor já leu toda a obra de Machado de Assis?
— Só “Dom Casmurro” e “Memórias póstumas” — eu disse, sem entender.
— Então não temos Jorge Amado — ele selou, com vigor. Voltou-se às estantes. — Por que não leva outro livro do Machado?
Estendeu-me um exemplar de “Memorial de Aires”.
— Ou algo de outro autor... Talvez “Vidas secas”. O senhor já leu “Vidas secas”?
— Não... — respondi, engolindo (também) em seco.
— Não faz sentido ler Jorge Amado sem ter lido Graciliano Ramos! É como comer frango podendo provar salmão pelo mesmo preço!
— Estou com vontade de ler Jorge Amado — eu disse.
— Vontade dá e passa, senhor. Jorge Amado é muito popular. Não posso deixar que leve Jorge Amado sem ter lido Machado antes, ou Graciliano... Ou ainda Guimarães Rosa! Já leu Guimarães Rosa?
Um tanto confuso, levei “Vidas secas”. Nos dias seguintes, voltei à Argumento. Sentei-me no café e fiquei observando Haroldo em atividade. Ele era defensor irredutível dos clássicos, extirpador de contemporâneos, inquisidor de bestsellers, inimigo da literatura de gênero e de entretenimento. Alguns clientes, mais experientes e ansiosos por ler Paulo Coelho, chegavam a evitá-lo. Haroldo seguia adiante, cabeça erguida. Quando era abordado por algum inocente, entrava em ação. Ao jovem nerd que queria ler Tolkien, ele entregou “Don Quixote”. À mãe de família que buscava autoajuda, recomendou “Auto de fé”. Ao casal que viajaria em núpcias para Dublin, desdenhou do guia de viagens e mandou que comprassem “Ulisses”. À criança que pediu um DVD do Rei Leão, convenceu que levasse “Hamlet”. À mulher em busca de um livro de colorir que estava na moda, implorou que deixasse aquela asneira de lado e comprasse literatura de verdade.
Entre idas e vindas, um episódio interessante se sucedeu. Uma senhora pediu um romance de Agatha Christie e, com a recomendação de Haroldo, acabou levando “Crime e castigo” para casa.
— Culpado por culpado, este é bem melhor — ele explicara, entregando o livro para a velhinha.
Semanas depois, a senhora voltou, expressão revoltada e bengala cortando o ar:
— Odiei aquele livro do Dostoinão-sei-quê! Quem você pensa que é pra me dar aquilo para ler? Fiquei perturbada! Leio pra me distrair e não pra ficar remoendo a alma humana!
A velhinha lançou o livro na cara de Haroldo e saiu da Argumento. Ele pareceu chateado, angustiado até, e voltou a arrumar os livros. Passei meses sem vê-lo. Uma viagem longa e muitas reuniões acabaram me afastando do hábito de ir à livraria durante as tardes.
Certa manhã de sol, resolvi andar de bicicleta até o Parque Lage e levei um livro comigo. Enquanto buscava um banquinho livre para a leitura, avistei Haroldo. Usava short esportivo cor de kiwi e camiseta regata branca que revelava os braços peludos. Tinha a cabeça baixa, os olhos úmidos de choro, mas concentrados, que percorriam avidamente as linhas de um livro grosso. Cheguei perto, sem acreditar: Haroldo Bloom lia o último volume da saga “Harry Potter”.
Levantou a vista por um instante e me reconheceu. Sua expressão mudou na hora. De emocionado, ficou sério, enxugou os olhos. Quando me aproximei, desviou-se de mim e saiu correndo. Na semana seguinte, voltei à livraria para confrontá-lo, mas ele não estava lá.
— Pediu demissão — disse-me um funcionário.
Saí da Argumento com uma sensação estranha. Ao chegar em casa, reli “Vidas secas” e decidi comprar a obra completa do Machado e do Guimarães Rosa pela internet. Comprei Jorge Amado e J.K.Rowling também. Ninguém é de ferro.
Raphael Montes
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