domingo, junho 14

Passos largos, poço fundo


Entre anúncios do fim de livrarias e museus, ameaça de fechamento da Escola de Teatro Martins Pena, onde dei aula, e do encerramento do Centro de Referência Cultura Infância, no Jockey do Rio (ainda que nesse caso a batalhadora Karen Acioly tenha conseguido migrar para outros espaços), chega outra notícia: a Jornada de Passo Fundo vai acabar. É triste.

Há 34 anos essa cidade gaúcha vinha realizando suas Jornadas Nacionais de Literatura, um importante evento que deu à região a mais alta média de leitura do país — 6,5 livros por ano. Sempre com a professora Tânia Rösing à frente, a Universidade de Passo Fundo e a prefeitura municipal criaram também em 2001 a “Jornadinha”, estendendo a iniciativa ao público infantil e adolescente. É muito mais do que uma feira de livros semelhante às que se multiplicam pelo país. A Jornada sempre foi diferente. Partia de um trabalho prévio abrangente, coordenado pela universidade. Durante meses, na cidade e nos municípios vizinhos, escolas e faculdades se dedicavam à leitura dos autores cuja presença estava programada para aquele ano. A iniciativa envolvia enorme quantidade de professores e estudantes, muitos trazidos de ônibus das cidades vizinhas e devidamente assistidos para aproveitarem ao máximo a oportunidade. A culminância desse convívio atento com as obras se dava durante a Jornada, em encontro direto com os escritores.

Nos primeiros anos, foi em salas de aula da universidade. Depois, o sucesso obrigou a procurar o espaço mais amplo de um ginásio esportivo, onde da mesa os autores viam as cuias de chimarrão circulando pela plateia para ajudar a espantar o frio. A partir de certo ponto, abrigou-se sob a imensa lona de um circo especialmente montado, em sessões que se repetiam de manhã, de tarde e de noite, para que as cinco mil pessoas da plateia pudessem se revezar. Os debates incluíam escritores estrangeiros, trocando pontos de vista sobre temas diversos. Todos saíam admirados, certos de que jamais haviam visto algo semelhante, em lugar algum. Não viram mesmo. Porque não há nem nunca houve. E se depender do poder público, pode não haver de novo.

É que agora se anuncia o cancelamento da Jornada, por falta de verbas. A reitoria explica que “ante a incerteza desse momento, a realização de um evento de natureza tão grandiosa não se mostra recomendada.” Dá perfeitamente para entender que, a esta altura, não dá para querer reduzir a Jornada a uma mera feira de livros com barraquinhas na praça para desovar encalhes de distribuidoras. E o momento atual é mesmo incerto, diante da certeza de que a conta dos desmandos e da incompetência chegou (para não falar da corrupção) e é preciso apertar o cinto para pagá-la. O que espanta é a inversão de prioridades. Continua a haver dinheiro para despesas de custeio, milhares de cargos comissionados, 39 ministérios. Triplica-se a verba do fundo partidário. Infiltra-se em votação no Congresso a construção de um shopping no Parlamento. Aprovam-se aumentos e inconcebíveis auxílios-educação no Judiciário. Aumentam-se as isenções fiscais de igrejas. Mas se evita encarar a urgência das necessidades da educação e das humanidades, das alternativas de lazer e sonho para os jovens, por meio de reais oportunidades para que suas vidas façam sentido e que convivam com a arte, a cultura, o esporte. Sem que fiquem condenados ao fundo do poço. E à violência de quem se sente encurralado, sem horizontes.


Em paralelo, vivemos também a consequência de aceitar uma atitude paternalista em relação à cultura, onde tudo depende do Estado e a ele tem de agradar para sobreviver. Este, por sua vez, terceirizou sua obrigação de desenvolver política cultural, delegando a patrocínios e renúncia fiscal a tarefa de apoiar o setor, sem incentivá-lo a buscar outros caminhos de produção que sustentassem o crescimento próprio — com frequência se limitando a apoiar quem demonstrava afinidade ideológica ou tinha condições de contratar profissionais especializados em apresentar projetos de forma palatável, para vencer editais. Desde que se garantisse a publicidade por meio de logomarca ostensiva e slogan repetido. E tomou decisões polêmicas, como o apoio à publicação brasileira de um jornal francês especializado em diplomacia, ou o subsídio a um circo estrangeiro que cobrava ingressos milionários. Com isso, o setor perdeu a prática de caminhar pelas próprias pernas, se acomodou e atrofiou sua capacidade de levantar recursos sem depender do governo. Ainda mais com uma legislação que não ajuda. De sua parte, muitas vezes a iniciativa privada lavou as mãos.

Chegamos assim a esta série de projetos culturais frustrados, filmagens canceladas, montagens teatrais e exposições suspensas, shows musicais e feiras de livro abortados, museus e livrarias que se fecham.

Que o momento, pelo menos, estimule a reflexão e busca de novos caminhos. E que Tânia possa seguir os passos de Karen e encontrar alternativas.

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