“eu não tinha este coração /que nem se mostra” (Cecília Meireles)Você acabou de colorir seu livro. Estresse zero num dia lindo de outono. Antes de correr à livraria para comprar um novo, o quinto no mês, você, distraída, adia tomar providências corriqueiras: descongelar a carne do almoço, escrever um bilhete para o filho mais velho, separar aquela roupa que perdeu a hora de ser passada adiante. Um suspiro. A chave na porta. Rua.
Dois moleques espiam um pedestre desatento e com um celular da hora. Um desempregado confabula com a sombra, em quem confia, com quem não compete. Um corno assobia. Uma menina pensa no beijo dado dois segundos antes. O motorista de ônibus para o veículo, salta e entra na padaria para comprar um refrigerante. Em protesto, todas as buzinas do mundo soam em coro, barulho insuficiente para acordar o ciclista morto ou para orientar o velho extraviado.
Indiferente a tudo, você só tem olhos para chegar à livraria e adquirir o livro despalavrado, cheio de formas a espera de cores. O pássaro rosa — uma invenção sua, não se tem notícia de um desses na natureza — volta a sua lembrança, e você quase chora. Criar tem custo, custo emocional. Amarelo aqui, verde ali. Perfeccionista, quando um azul clarinho escapou do espaço a ele destinado, a janela da casa, você pensou em desistir. Mas não, respirou fundo e deu um jeito pintando de marrom escuro, cor de tijolo, a parede na qual havia se metido o azul intrujão. No stress, eis o prêmio.
Entre o livro de figuras ocas e o colorido, deixado sobre a mesa de casa, houve uma dedicação absurda, um deixar o resto de lado, inclusive os filhos, inclusive o marido, inclusive a mãe, inclusive os cabelos e as unhas. Valeu a pena. Tarefa cumprida, você foi tomada pela paúra de perder esse bem-estar, de ter de voltar à rotina carrasqueira. O medo de renunciar às recentes conquistas serve-lhe de guia e estímulo no caminho entre a casa e a livraria. Você avança.
A moto em ziguezague corta os carros. Um neném desanda a chorar alto, a ponto de sossegar o facho das buzinas. Um mendigo atravessa a rua desviando-se dos carros numa espécie de balé sem beleza, mas eficaz por levá-lo ao outro lado sem um arranhão. Duas velhas pareadas se arrastam pela calçada estreita, feita apenas para quem vai só — ideal para os solitários, com o que se forma uma fila atrás delas. Na fila, muitos talvez estejam indo à livraria com a mesma necessidade. Haverá livros para todos, não há por que temer. Mesmo assim você teme.
De repente, despenca sobre seus ombros o sofrimento do mundo, vivo ali na rua. Os meninos infratores, o velho perdido, as velhas andando em ruas feitas para jovens, apenas para jovens, o ciclista morto e o corno tentando apagar a dor num assobio. As buzinas e a birra do bebê furam-lhe o tímpano. Tudo isso comprime sua alegria, dá uma rasteira em sua tranquilidade e nubla o céu outonal. É preciso fazer alguma coisa. Você tem de fazer alguma coisa.
Na saída da livraria, você entrega o primeiro exemplar ao mendigo, que acabava de cruzar mais uma vez a rua. Ele segura o presente e, em agradecimento, improvisa um pas de deux de araque, com a autoridade de um Baryshnikov sem banho. E come o livro (é o livro que colore a fome e a sede dele). Uma das velhinhas, para receber a gentileza de uma moça tão bonita, passa a bengala para a outra mão, livrando-se do braço da amiga. Gesto miúdo que a leva ao chão. Ali mesmo ela abre a bolsa, tira de lá a caneta azul e começa o trabalho. A fila que se formava atrás das senhoras, já grande, cresce, cresce, vira a primeira esquina, a segunda. O bairro fica congestionado de pedestres, que, por não terem buzinas, gritam e xingam. Você aproveita a fila sem rabo e distribui com presteza os livros. Ao pegar o seu, a mocinha ri, o adolescente desdenha, o senhor de terno guarda o dele na bolsa. A babá daquele chorão dá o exemplar que acabou de ganhar ao menino, que passa a pintá-lo com lágrimas.
Uma, duas, três pessoas, a rua toda e, já fora de seu controle, a cidade inteirinha começam a colorir os livros que, do nada, foram parar em suas mãos. É gente sentada na calçada, na rua, na escada da igreja, no para-choque do ônibus, na mureta, em todo canto. A serenidade se alastra feito fogo e passa o rodo no estresse.
Ao perceber todo mundo “assim calmo, assim triste, assim magro”, com os olhos tão vazios e o lábio amargo, você se toca que a vida não funcionará com as pessoas nessa vibração — que não vibra. Algo de muito trágico está por acontecer. Você pensa em ler um livro para antever o desastre ou pelo menos para descobrir em que espelho ficou perdida a sua face.
Alexandre Brandão
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