sexta-feira, dezembro 30

Novo ano de muitas novas leituras

Vai um ano, chega outro. Divisões infinitesimais do tempo que guardamos como bons ou maus, acolhemos como protegidos por lendários seres ou regidos por estrelas zodiacais, quando o mais importante de todo o tempo é o dia que nasce.
livre oiseau - Поиск в Google:

A alegria do renascer a cada dia para uma nova chance de viver é o que conta no tempo. O dia, em sua infinitude, traz todos os matizes de viver: o espanto, a surpresa, a alegria, a tristeza, a vida e a morte, tudo sem o que nunca viveríamos, mas vegetaríamos.

Devemos agradecer e participar de cada dia com intensidade e repetir pelo tempo o renascimento em cada amanhecer.

2017 bate à porta com centenas de dias felizes e saudáveis para se comemorar
Até o ano que vem 

Passagem do ano

O último dia do ano
Não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
E novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
Farás viagens e tantas celebrações
De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
E coral,

Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
Os irreparáveis uivos
Do lobo, na solidão.

#Books Take Flight:

O último dia do tempo
Não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
Onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
Uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
Uma voz e seu eco.
E quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.

Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,
Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
E de copo na mão
Esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
Todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
Lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
Carlos Drummond de Andrade

Escalada

.escalade du livre!!! Christine Ellger:
Christine Ellger

A cada 14 dias morre um idioma

No mês passado, foi assassinada na floresta do norte do Peru Rosa Andrade, de 67 anos, a última mulher falante de resígaro, uma das 43 línguas indígenas da Amazônia.
Rosa Andrade
Tommy George, o último dos kuku-thaypan de Cape York (Austrália), morreu no dia 29 de julho, com 88 anos. Tommy George era o último falante de awu laya, uma língua aborígene da Austrália. Com ele morreram 42.000 anos de história e conhecimentos transmitidos de forma oral.

Cristina Calderón (nascida em 24 de maio de 1928) é a última falante nativa da língua yagán, da Terra do Fogo. Hoje ela vive em Puerto Williams, um assentamento militar chileno na ilha Navarino.

Nos últimos 10 anos, desapareceram mais de 100 línguas; outras 400 estão em situação crítica e 51 são faladas por uma única pessoa. A cada 14 dias morre uma língua, de acordo com a Unesco. Se continuar assim, metade das 7.000 línguas e dialetos falados hoje no mundo se extinguirão ao longo deste século. Quando uma língua morre não se perdem apenas as palavras, mas todo o universo cultural ao qual davam forma: séculos de histórias, lendas, ideias, canções transmitidas de geração em geração que desaparecem “como lágrimas na chuva”, junto com valiosos conhecimentos práticos sobre plantas, animais, ecossistemas, o firmamento. Um dano comparável à extinção de uma espécie.

Com Fanny Cochrane, que morreu em 1905, se foi a última língua nativa da Tasmânia. Entre 1899 e 1903, ela gravou num dos primeiros fonógrafos as canções aborígenes que conhecia para a Royal Society of Hobart, a capital da ilha australiana. O cantor folk Bruce Watson conta a história dela em The Man and the Woman and the Edison Phonograph (O Homem e a Mulher e o Fonógrafo Edison).

Com a morte, em 2004, aos 98 anos, de Yang Huanyi, desapareceu o nushu, um sistema secreto de escrita empregado durante ao menos quatro séculos pelas mulheres chinesas para burlar o controle dos homens. Como muitas mulheres chinesas de seu tempo, Yang Huanyi tinha pés minúsculos e deformados; a prática de amarrar os pés das meninas foi proibida em 1912.

Charlie Mangulda é a última pessoa na Terra que fala e entende o amurdag, língua oral de um grupo de aborígines do norte da Austrália, como explica neste vídeo K. David Harrison, autor do livro The Last Speakers (Os Últimos Falantes), da National Geographic.

Harrison, professor de linguística do Swarthmore College, na Pensilvânia (EUA), é um dos responsáveis do projeto Enduring Voices (Vozes Duradouras), da National Geographic. Ele viajou pelo mundo inteiro, da Sibéria e o Cáucaso ao norte da Austrália, passando pelo sul do México e as ilhas mais remotas da Indonésia, entrevistando os últimos guardiões de línguas minoritárias em risco de desaparecimento. Muitas das que estudaram nunca tinham sido gravadas ou colocadas por escrito; outras nem sequer eram conhecidas. Em 2010, documentaram pela primeira vez o koro, língua falada por menos de mil pessoas nas montanhas de Arunachal Pradesh, no nordeste da Índia. Abaixo se pode ver Anthony Degio, da tribo koro, explicando o uso que seu povo faz de 11 plantas na região onde vivem.

Em fevereiro, a equipe do Enduring Voices apresentou os primeiros resultados de seu trabalho, oito dicionários sonoros e visuais de idiomas moribundos como o chemehuevi (Arizona, EUA); o euchee (Oklahoma, EUA); o hupa, o karuk, o wintu e o washoe (Califórnia, EUA); o tuvan (Rússia); o aka (Índia), ou o seri (México). No total, 32.000 palavras salvas do esquecimento.

Com o mesmo objetivo nasceu o projeto Endanged Languages (Línguas Ameaçadas de Extinção), uma iniciativa do Google para dar voz àqueles que as falam e àqueles que se esforçam para conservá-las. Trata-se de um fórum aberto que oferece a oportunidade de postar arquivos de vídeo, gravações e documentos, e também compartilhar conhecimentos e experiências. Nesse vídeo do Endanged Languages, a avó Margaret, uma senhora da tribo navajo (Novo México, EUA) explica ao neto, com a ajuda do tradicional jogo de cordel, a origem das constelações, como relata uma antiga lenda indígena.

Leia e veja mais

quarta-feira, dezembro 28

Convite à imaginação

Cada libro abierto es una invitación a la imaginación, también en Navidad (ilustración de Quentin Blake)
Quentin Blake

O passado que vem aí

Aquilo de que mais gosto no Natal é dos presépios. O meu pai construía presépios. Começou por construir presépios pequenos, junto à árvore de Natal, semelhantes àqueles que eu via quando visitava os meus amigos. Depressa se entusiasmou, e sendo um homem de grandes arrebatamentos e muita criatividade, os presépios foram prosperando, à medida que eu próprio crescia, de tal forma que a partir de certa altura já não cabiam mais na sala, e o meu pai passou a erguê-los no jardim. Essa segunda geração de presépios tinha personagens em tamanho real, dentro de estábulos quase autênticos. Eram tão realistas e sofisticados que nem eu nem a minha irmã estávamos autorizados a entrar nos estábulos para brincar com o Menino Jesus. Juntava-se gente no passeio, espreitando os presépios por cima do muro. Eu, contudo, sempre preferi os da primeira geração. Nesses, eu acrescentava às figuras tradicionais, em porcelana — pastorinhos, boi, burro, Reis Magos e os seus camelos, Maria, José e Menino Jesus —, os meus índios e caubóis em plástico.

Resultado de imagem para presepio

O último dos presépios da primeira geração ruiu numa noite de Natal, teria eu oito ou nove anos, devido, provavelmente, ao peso dos inumeráveis personagens que caminhavam ao longo das verdes colinas de musgo, assentes sobre complexas estruturas em arame e cartão. Havia mesmo um rio, no qual circulavam barcaças e jangadas, com um complicado sistema para elevar e fazer circular a água. Por essa altura, aos apaches, moicanos e caubóis, haviam-se juntado várias bonecas da minha irmã, e até uma manada de elefantes em pau preto. Todos aqueles seres se dirigiam felizes a saudar o Menino Jesus, quando ocorreu o desastre. Fui o único a acordar com o ruído e, portanto, o primeiro a entrar na sala. Consegui salvar o Menino Jesus, que se afogava, sem glória, numa poça de água e lama. Infelizmente, a Virgem Maria perdeu a cabeça. No fim, lá conseguimos recompor o presépio. Contudo, nunca encontramos a cabeça da Virgem, de forma que, nesse ano, tivemos de substituir a mãe de Jesus por um dos pastorinhos, ao qual acrescentamos uma peruca loira, feita de algodão. O pastorinho, assim travestido, assumiu o seu papel e não fez má figura, muito pelo contrário.

Penso naquele presépio como um modelo do mundo em que cresci e no qual acredito — mundo esse que parece, também ele, em vias de desabar. Um mundo de fronteiras difusas, sejam elas raciais, étnicas ou de gênero. Um mundo sincrético, mestiço, integrador. Um mundo que ambiciona (ou ambicionava) ser o Brasil no que o Brasil tem de melhor: a extraordinária capacidade de assimilar e nacionalizar o outro.

Eis senão que o passado se ergueu de entre os escombros, com a soma de tudo aquilo que julgávamos já ter ultrapassado: o ranço do nacionalismo mais primário, o bolor do racismo, da xenofobia, do machismo e da intolerância religiosa. É um movimento que já estava em marcha há vários anos; mas em 2016, com a vitória de Donald Trump, podemos dizer que se afirmou de forma explícita, em toda a sua excêntrica e brutal obscenidade.

Em dezembro, gosto de colecionar as previsões de astrólogos, cientistas, analistas políticos, para o ano seguinte. Doze meses mais tarde confronto essas previsões com o que realmente aconteceu. A conclusão é que quase ninguém acerta. Nem a magia, nem a ciência. O futuro continua inescrutável, o que me parece ao mesmo tempo assustador e reconfortante. Não sabemos nunca o que está para além da curva do tempo. O futuro pode trazer-nos tudo — inclusive o passado.

A julgar pelo que aconteceu em 2016, devemos estar preparados para todo esse passado terrível que aí vem. Essas são as previsões da maioria dos astrólogos e analistas políticos. Dado o prazer evidente que o futuro tem em contrariar as previsões, pode ser, contudo, que 2017 nos surpreenda pela positiva. Para quem, como eu, não acredita nem em astrólogos, nem em analistas políticos, existe a matemática. A regressão à média é um conceito matemático segundo o qual em qualquer série de eventos aleatórios existe enorme probabilidade de um acontecimento extraordinário ser seguido, por puro acaso, por outro mais trivial. Ou seja, no evento que agora nos interessa, a um ano extraordinariamente mau e agitado é provável que se sigam meses relativamente tranquilos. Vamos ver.

Volto a pensar no dia em que a Virgem perdeu a cabeça. Foi um desastre terrível — no minúsculo universo em que ocorreu, é claro. Mas na manhã seguinte tínhamos um novo presépio, ainda mais bonito do que o anterior. Talvez a moral da história seja esta: por vezes, para que o mundo avance, é preciso que a Virgem perca a cabeça. 

terça-feira, dezembro 27

A grande bênção

I cannot think of a greater blessing than to die in one's own bed, without warning or discomfort, on the last page of a new book that we most wanted to read. ~ Lord John Russell:
Eu não consigo pensar em uma bênção maior do que morrer na própria cama, sem aviso ou desconforto, na última página de um novo livro que mais queria ler
Lord John Russell

Ler e falar

O fato de que, nas provas do Enem, é cada vez menor as referências à literatura brasileira –o mesmo ocorrendo nos exames de vestibulares– causou preocupação nos membros da Academia Brasileira de Letras que, em face disso, decidiu manifestar-se sobre o assunto.

Essa questão foi trazida à ABL, no final do ano passado, por Arnaldo Niskier, que havia representado a instituição numa reunião promovida na Comissão de Educação da Câmara Federal pela deputada Maria do Rosário, do PT do Rio Grande do Sul. Ela realizou uma audiência pública para debater a situação da leitura e do ensino da literatura particularmente no ensino médio. A constatação lamentável é que, se não se estimula a leitura da literatura e seu ensino, não há razão para que a matéria faça parte dos exames e das provas.

baby in carriage reads:
A iniciativa da deputada em trazer à discussão esse fato merece o apoio da intelectualidade e dos cidadãos conscientes da importância da literatura para a vida nacional. Não obstante, nem todos têm essa compreensão e há mesmo, em certos setores, a tendência a ver o ensino da literatura como um resto do elitismo que deve ser eliminado da formação dos jovens.

Se a minha observação for procedente, a ausência da literatura na formação da nossa juventude seria parte de um fenômeno mais amplo, que afeta outros sectores da sociedade brasileira e que tem raízes mais profundas do que parece à primeira vista. Para nos atermos ao âmbito literário e do ensino, lembro da tendência entre filólogos e gramáticos de considerar que não há erros no uso da língua, mas apenas modos diversos de usá-la conforme a classe social de quem a usa. Ou seja, há a língua culta, falada pelos que têm cultura, e a língua do povo inculto, que não tem acesso à educação.
A constatação, até certo ponto, é correta, mas deduzir dela a conclusão de que tanto faz dizer "nós vamos" quanto "nós vai" é um equívoco que contraria a natureza da linguagem. Falar correctamente não é uma manifestação elitista e, sim, o resultado da necessidade humana de se expressar com coerência e clareza. Não sou linguista nem muito menos sei (alguém sabe?) como se formaram os idiomas, mas tenho certeza de que não se trata da invenção de um sujeito erudito e presunçoso que decidiu inventar as concordâncias entre sujeito e verbo, adjectivo e substantivo. Na verdade, fico fascinado ao constatar, já nas primeiras manifestações literárias, a concordância e a coerência entre os elementos da linguagem.
Como tampouco creio que os idiomas foram criados por Deus, contento-me em admitir que eles expressam, tanto quanto possível, a lógica que descobrimos no mundo e que nos ajuda a reinventá-lo. Pode ser até que a lógica da linguagem não seja a mesma do mundo – cuja complexidade excede à nossa compreensão–, mas, como nos ensina o exemplo da Torre de Babel, um idioma sem normas torna inviável o entendimento e, consequentemente, o convívio humano.

Claro que, por felicidade, estamos longe disso. O que importa aqui é afirmar que falar e escrever corretamente não são snobismos, mas necessidades da linguagem humana.

Certamente, há que distinguir a linguagem falada da escrita. A fala coloquial, pelas circunstâncias em que se exerce, com frequência viola a correcção da linguagem escrita. Tampouco teríamos que exigir, mesmo desta, um rigor sem concessões. Errar é humano e, modéstia à parte, citando a mim mesmo, cabe lembrar que "a crase não foi feita para humilhar ninguém".

Em suma, ninguém deve ser punido por errar na concordância vocabular. Tampouco é correcto subestimar o homem do povo que desconhece as regras gramaticais e, por isso mesmo, fala errado.
O que, porém, não se pode aceitar é que linguistas e gramáticos afirmem que não se deve exigir que se fale e escreva corretamente, quando eles mesmos falam e escrevem conforme as regras gramaticais.
Ferreira Gullar, Folha de S. Paulo 28/02/2016

Pós-Natal

Dive into reading / Sumérgete en la lectura (ilustración de Pilar Roca):
Pilar Roca

Na Islândia, as pessoas passam a noite de Natal lendo

A noite de Natal na Islândia é para se descobrir histórias através da literatura. É tradição no país dar livros de presente depois do jantar, e passar o resto da noite lendo “com um pouco de calma e tranquilidade para desfrutar da leitura”, diz Kristján Andri Stefánsson, embaixador do país na França, ao EL PAÍS. “Para mim não tem Natal sem alguns dos novos romances que são lançados para essas datas”, diz.


O mercado literário está focado nessas festas. “Cerca de 70% dos títulos chegam ao mercado nos três últimos meses antes do Natal”, segundo Stefánsson. Existe até um nome para esse fenômeno: o dilúvio de livros de Natal, que eles chamam Jólabókaflóð.

Em outubro se publica um catálogo com todos os novos títulos do ano. É o bókatíðindi, que é distribuído em todos os domicílios do país e também pode ser consultado online. Segundo uma pesquisa da Associação de Editores divulgada pela embaixada, 63% dos islandeses receberam livros no Natal. Desses, mais de 48% ganharam dois ou mais.

A tradição de livros no Natal vem da Segunda Guerra Mundial, ainda que para muitos islandeses, como o embaixador (que tem 49 anos), seja algo da vida toda. Jóhann Páll Valdimarsson, diretor da Forlagið, a maior editora do país, disse em entrevista ao The Reykjavík Grapevine que, devido a restrições a importações durante a guerra, começaram com a tradição de dar livros, que eram impressos no próprio país.

“A cada ano são publicados entre 800 e 1.000 novos títulos, dos quais 70-80 são romances de autores islandeses”, segundo o embaixador. A BBC publicou em 2013 que um de cada 10 islandeses publicará um livro em sua vida.

De cada título são impressas cerca de 1.000 cópias, segundo Stefánsson. Para alguns autores muito conhecidos, como o escritor de romances policiais Arnaldur Indridason, são editados até 20.000 exemplares. Em um país com 320.000 habitantes, mesmo que sejam ávidos leitores, há quem se pergunte se não deveriam imprimir menos.

O amor da Islândia por livros levou sua capital a ser nomeada cidade da literatura pela Unesco em 2003. Este ano foram instalados em alguns bancos públicos códigos QR para que os cidadãos possam baixar audiolivros em inglês ou em islandês,

Nessa foto enviada pela Embaixada, Stefánsson posa junto a uma pilha de livros que comprou em dezembro e o catálogo de novidade deste ano. Em 2014, só 13,3% dos entrevistados pelos editores não tinha lido nenhum livro, mas os dados de leitura dos islandeses coincidem com essa torre. Segundo a pesquisa, 18,2% leram um ou dois livros; 20,9% entre três e cinco; 20,1% entre seis e sete; 15,6% entre 11 e 20; e 11,8% mais de 21!

sexta-feira, dezembro 23


Bom Natal e ótimas leituras
(Um breve recesso ao jeito da rena)

Organiza o Natal

Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.

Regalemos libros en Navidad (ilustración de Sarah Wilkins)
Sarah Wilkins
Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.

A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.

A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.

Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.

O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.

A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.

O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.

Carlos Drummond de Andrade

Viajante do espaço

Un buen lector siempre está sumergido en los libros (ilustración de Mariusz Stawarski)
 Mariusz Stawarski

Cartão de Natal

A Árvore de Natal de Stephen Mackey Stephen Mackey´s Christmas Tree:
Stephen Mackey 
Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de voo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:
que desta vez não perca este caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem
o sim comer o não.
João Cabral de Melo Neto

quinta-feira, dezembro 22

Divisão no mundo da leitura

 :

Cartãozinho de Natal

Até que eu não sou de reclamar, puxa! Taí, se há alguém que não é de reclamar, sou eu. Pago sempre e não bufo. Claro que procuro me defender da melhor maneira possível, isto é, chateando o patrão, cobrando cada vez mais, buscando o impossível — como diz Tia Zulmira —, ou seja, equilíbrio orçamentário. Se o Banco do Brasil não tem equilíbrio orçamentário, eu é que vou ter, é ou não é?

Mas a gente luta. Eu ganho cada vez mais e nem por isso deixo de terminar sempre o mês que nem time de Zezé Moreira: 0 x 0. Segundo cálculos da tia acima citada, que é bárbara para assuntos econômicos, eu sou um dos homens mais ricos do Brasil, pois consigo chegar ao fim do mês sem dever. Esta afirmativa não me agrada nada, mas dá uma pequena amostra de como vai mal a organização administrativa do nosso querido Brasil.

Aliás, minto…o cronista pede desculpas, mas estava mentindo. Eu vou no empate até dezembro, porque, quando chega o Natal, é fogo. Aí embaralha tudo. Não há tatu que resista aos compromissos natalinos. São as Festas — dizem.


O presente das crianças, a ganância do comerciante, as gentilezas obrigatórias, os orçamentos inglórios, a luta do consumidor, a malandragem do fornecedor e olhe nós todos envolvidos nesse bumba-meu-boi dos presentinhos.

E que fossem só os presentinhos. A gente selecionava, largava uma lembrancinha nas mãos dos amigos com o clássico letreiro: “Você não repare, que é presente de pobre” e ia maneirando. Mas tem as listas, tem os cartõezinhos.

O que me chateia são as listas e os cartõezinhos. A gente passa o mês todo comprando coisas pros outros sem a menor esperança de que os outros estejam comprando coisas pra gente. De repente, quando o retrato do falecido Almirante Pedro Álvares Cabral, que, no caminho para as Índias, ao evitar as calmarias, etc., etc. já é um raro no bolso dos coitados do que deputado em Brasília, vem um de lista.

O de lista é sempre meio encabulado. Empurra a lista assim na nossa frente e diz: — O pessoal todo assinou. Fica chato se você não assinar. Então a gente dá uma olhada. A lista abre com uma quantia polpuda — quase sempre fictícia — que é pra animar o sangrado. E tem a lista dos contínuos, tem a lista dos porteiros, tem a lista dos faxineiros, tem a lista das telefonistas, tem a lista do raio que te parta.

A gente assina a lista meio humilhado, porque, no máximo, pode contribuir com duzentas pratas, onde está estampada a figura de Pedro I, que às margens do Ipiranga, desembainhando a espada, etc., etc. e pensa que está livre, embora outras listas estejam de tocaia, esperando a gente.

Stanislaw Ponte Preta

quarta-feira, dezembro 21

O leitor

Yayo:
Yayo

Assim começa o livro...

“O que é que você ainda está fazendo aqui!” Sua voz não era maldosa, mas também não era gentil; Sylvie estava irritada.

“E onde deveria estar?”, perguntou Irena.

“Na sua casa!”

Claro, não queria expulsá-la da França, nem fazer com que pensasse que era uma estrangeira indesejável: “Você sabe o que estou querendo dizer!”.

“Sim, sei, mas você se esquece de que é aqui que tenho meu trabalho? Meu apartamento? Meus filhos?”

“Escute, conheço Gustaf. Ele cuidará de tudo para que você possa voltar para sua terra. Quanto a suas filhas, não me venha com brincadeiras! Elas já têm a vida delas! Meu Deus, Irena, o que está acontecendo no seu país é tão fascinante! Numa situação dessas as coisas sempre se arranjam.”

“Mas, Sylvie! Não são só os aspectos práticos, o trabalho,o apartamento. Eu vivo aqui há vinte anos. Minha vida é aqui!”

“Houve uma revolução na sua terra!” Disse isso num tom que não admitia contestação. Depois ficou calada. Com esse silêncio, queria dizer a Irena que, quando grandes coisas acontecem, não se deve desertar.

“Mas, se eu voltar para meu país, não nos veremos mais”, disse Irena, para desconcertar a amiga.

Essa demagogia sentimental surtiu efeito. A voz de Sylvie tornou-se calorosa: “Minha querida, irei visitá-la! Está prometido, está prometido!”.

Estavam sentadas frente a frente diante de duas xícaras de café vazias já havia muito tempo. Irena viu lágrimas de emoção nos olhos de Sylvie, que se inclinou até ela, apertando-lhe a mão: “Será seu grande retorno”. E, mais uma vez: “Seu grande retorno”.

Repetidas, essas palavras adquiriram tal força que, em seu íntimo, Irena as viu escritas em maiúsculas: Grande Retorno. Ela não protestou mais: foi invadida por imagens que emergiram de repente, de velhas leituras, de filmes, de sua própria memória e talvez até daquela de seus ancestrais: o filho perdido que reencontra a velha mãe; o homem que volta para sua amada, da qual outrora fora afastado pelo destino feroz; a casa natal que cada um traz dentro de si; o caminho redescoberto onde ficaram gravados os passos perdidos da infância; Ulisses que revê sua ilha depois de anos de peregrinação; o retorno, o retorno, a grande mágica do retorno.

terça-feira, dezembro 20

À procura do presente

Eligiendo libros para realar en navidad (ilustración de Boris Kulikov)
 Boris Kulikov

Bibliotecas Públicas

Um vão no calendário

A semana entre o Natal e o Réveillon é a única que não faz sentido em todo o ano. Remotamente aparentados com o período entre o Ano-novo e o Carnaval, estes cinco dias são a síntese da inércia humana, e atravessá-los é tão incômodo quanto andar num corredor estreito de parede chapiscada.

São dias em suspenso – nada começa, nada termina. A sensação de que tudo já passou faz com que as pessoas se sintam exaustas. Algumas contentes, outras cabisbaixas, mas todas invariavelmente melancólicas. Melancólicas como se estivessem passando certa madrugada em claro, insones e solitárias, a observar a imensidão de janelas apa­gadas da cidade. Um clima desconcertante, que não admite muito balanço de corpo nem agitação de espírito.


Uma das poucas coisas que fazem sentido neste longo amanhecer nublado é uma canção de Luiz Tatit e Arrigo Barnabé, “Ano bom”: “Pois do Natal ao Réveillon/ tem um vão ali/ é um vazio em mim/ que você notou/ logo ocupou/ e cantou:/ boas festas/ e um ano bom”.

Barnabé descobriu a melodia trabalhando num arran­jo do samba “Luz negra”, de Amâncio Cardoso e Nelson Cavaquinho – o mais melancólico de todos os nossos compositores. “Ano bom”, portanto, não poderia se dedi­car a outro assunto que não fosse o intervalo de incom­parável tristeza agridoce entre uma festa e outra.

Só há três maneiras de atravessar esse vão do calendário que, aliás, não tem nome: esperando pelo 31, apegando-se ao 25 ou, para os mais abastados, transformando-se em almofada do sofá a digerir a infindável ceia natalina, que se desdobra em outras refeições e petiscadas fora de hora.

Os mais pendentes para o lado do 31 tendem a esboçar sua otimista lista de desejos e promessas que é inútil, pois a modesta canoa do novo ano, que alguns pensam ser um cruzeiro do Roberto Carlos, não acomodará todos os en­sejos e muito se perderá no mar bravio que atravessaremos. Os partidários do 25 fazem balanços do ano que se vai, en­caram o espelho da autocrítica como quem julga um rosto maquiado e tentam compreender tudo pelo que passaram, achando graça em descobrir que algumas coisas estão mais conectadas do que aparentam. Sentem-se mais sábios, em­bora às vezes se pareçam com uma criança que força peças do quebra-cabeça que não se encaixam.

De um jeito ou de outro, todos somos acometidos pela melancolia do vão, uma parada obrigatória para aprender­mos a conviver com o tédio da vida, um Engov na jornada etílica, um dia longo em que apenas se observa, calado, do alvorecer ao pôr-do-sol.

domingo, dezembro 18

Leitura na biblioteca da sinagoga

Queixa de defunto

Antônio da Conceição, natural desta cidade, residente que foi em vida, a Boca do Mato, no Méier, onde acaba de morrer, por meios que não posso tornar público, mandou-me a carta abaixo que é endereçada ao prefeito. Ei-la:

"Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Prefeito do Distrito Federal. Sou um pobre homem que em vida nunca deu trabalho às autoridades públicas nem a elas fez reclamação alguma. Nunca exerci ou pretendi exercer isso que se chama os direitos sagrados de cidadão. Nasci, vivi e morri modestamente, julgando sempre que o meu único dever era ser lustrador de móveis e admitir que os outros os tivessem para eu lustrar e eu não.

Não fui republicano, não fui florianista, não fui custodista, não fui hermista, não me meti em greves, nem em cousa alguma de reivindicações e revoltas; mas morri na santa paz do Senhor quase sem pecados e sem agonia.

Cândido Portinari
Toda a minha vida de privações e necessidades era guiada pela esperança de gozar depois de minha morte um sossego, uma calma de vida que não sou capaz de descrever, mas que pressenti pelo pensa mento, graças à doutrinação das seções católicas dos jornais.
Nunca fui ao espiritismo, nunca fui aos “bíblias”, nem a feiticeiros, e apesar de ter tido um filho que penou dez anos nas mãos dos médicos, nunca procurei macumbeiros nem médiuns.

Vivi uma vida santa e obedecendo às prédicas do Padre André do Santuário do Sagrado Coração de Maria, em Todos os Santos, conquanto as não entendesse bem por serem pronunciadas com toda eloqüência em galego ou vasconço.

Segui--as, porém, com todo o rigor e humildade, e esperava gozar da mais dúlcida paz depois de minha morte. Morri afinal um dia destes. Não descrevo as cerimônias porque são muito conhecidas e os meus parentes e amigos deixaram-me sinceramente porque eu não deixava dinheiro algum. E bom, meu caro Senhor Doutor Prefeito, viver na pobreza, mas muito melhor é morrer nela. Não se levam para a cova maldições dos parentes e amigos deserdados; só carregamos lamentações e bênçãos daqueles a quem não pagamos mais a casa.

Foi o que aconteceu comigo e estava certo de ir direitinho para o Céu, quando, por culpa do Senhor e da Repartição que o Senhor dirige, tive que ir para o inferno penar alguns anos ainda.

Embora a pena seja leve, eu me amolei, por não ter contribuído para ela de forma alguma. A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que não cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas. Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanha mento tiveram que atravessar em toda a extensão a Rua José Bonifácio, em Todos os Santos.

Esta rua foi calçada há perto de cinqüenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e larguras, por ela afora. Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que por ela rola sofre o diabo. De uma feita um até, após um trambolhão do carro mortuário, saltou do esquife, vivinho da silva, tendo ressuscitado com o susto.

Comigo não aconteceu isso, mas o balanço violento do coche machucou-me muito e cheguei diante de São Pedro cheio de arranha duras pelo corpo. O bom do velho santo interpelou-me logo:

— Que diabo é isto? Você está todo machucado! Tinham-me dito que você era bem-comportado — como é então que você arranjou isso? Brigou depois de morto?

Expliquei-lhe, mas não me quis atender e mandou que me fosse purificar um pouco no inferno.

Está aí como, meu caro Senhor Doutor Prefeito, ainda estou penando por sua culpa, embora tenha tido vida a mais santa possível. Sou, etc., etc. Posso garantir a fidelidade da cópia a aguardar com paciência as providências da municipalidade."

Lima Barreto (1881-1922)

sábado, dezembro 17

Natureza morta com livros

gilberto-geraldo-livros-oleo-sobre-tela-60x80-cm-acie
Gilberto Geraldo

O perfume de viver

Cientistas afirmam que os odores nos agarram com maior força e por mais tempo, pois as narinas ficam perto do centro olfativo no cérebro. Não sei se o motivo é esse, mas alguns cheiros deles nos remetem a situações vividas décadas antes e, ao percebê-los, recuperamos toda a intensidade do momento. Em outras palavras, odores são máquinas do tempo. Devolvem-nos instantaneamente ao passado.

Resultado de imagem para magnólias
Por exemplo, em dezembro, não escapo das magnólias de BH. Este ano não tem sido exceção. Quando as flores apareceram, após a primeira chuva, seu perfume invadiu o bairro Funcionários e a Savassi. Ao andar por lá, voltei à adolescência. Num clique, minha memória foi destampada. Relembrei as provas de fim de ano; o sanduíche de pernil da Padaria Savassi; as sessões do Cine Pathé em que, aos 13 anos, o porteiro me deixava assistir ao filme proibido até os 18, desde que eu entrasse depois de iniciada a sessão e saísse antes do término, por receio do Juizado de Menores; as caminhadas pelas ruas, sem medo de assalto; as conversas com os amigos, que, como eu, não sabiam o que era a vida – desconfio, ainda continuamos em plena dúvida. Alguém realmente sabe o que é a vida, sem fórmulas pré-concebidas e idiotas?

Foi debaixo de uma magnólia florida que, depois de acreditar que uma colega do curso de inglês, com quem andava de mãos dadas, aceitaria um beijo, levei uma despedida cruel:

– Quem que você está achando que eu sou, menino?

Menino! A palavra doeu mais que o fora. Apagou meu orgulho adulto de 15 anos.

Como se vê, o perfume das magnólias, sem que as pessoas desconfiem, marca a memória de muita gente. Hoje, ele se intromete em namoros, paqueras, exames do Enem, conversas entre colegas, cervejas na Rua Pernambuco ou na feirinha da Tomé de Souza, no saboroso pastel de carne da Rua Paraíba, no WhatsApp que trouxe uma boa notícia no shopping, no livro surpreendente que você descobriu numa das livrarias da Fernandes Tourinho, na caminhada até a Praça da Liberdade. De repente, no futuro, sem que se explique como, a lembrança volta nas moléculas do ar de dezembro.

As magnólias não sabem por que exalam o perfume, assim como muita gente continua sem entender o motivo da vida. Haveria mesmo uma razão – ou nosso perfume é simplesmente viver? Embora os tempos mudem, as magnólias e algumas velhas questões permanecem. Dezembro sempre as traz de volta.

Bungee jumping leitor

Pawel Kuczynski 

Escrita

7:36 a.m. February 1st gif
Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio.


Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.

Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo – é por esconderem outras palavras.

Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade.

Simplesmente não há palavras.

O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também. Sim, mas é a sorte às vezes.

Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora.

Simplesmente as palavras do homem.
Clarice Lispector

sexta-feira, dezembro 16

Sempre boa dica de passeio

Eligiendo lecturas en la librería (ilustración de Arthur Getz)
Arthur Getz

Livro de Isaac Newton vendido por 3,7 milhões de dólares

Uma cópia rara da primeira edição do Principia Mathematica, de Isaac Newton, foi arrematada em um leilão na quarta-feira por 3,7 milhões de dólares (aproximadamente R$ 12,4 milhões), tornando-se o livro de ciência mais caro já vendido. A obra, publicada em 1687, superou em quase três vezes o preço inicial fixado pela Christie’s, uma casa britânica de leilão de obras de arte. O lance inicial era entre 1 milhão e 1,5 milhão de dólares.

A obra do leilão fazia parte do conjunto de livros distribuídos apenas no continente europeu no século XVII. No total foram impressas 400 cópias do primeiro volume: 20% são as chamadas versões continentais e o restante era enviado para livrarias somente da Inglaterra por Newton e pelo editor do livro, Edmond Halley.

No livro Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica ou, simplesmente, Principia Mathematica, Newton enuncia as leis da Mecânica Clássica e da Gravitação Universal, que descrevem o movimento dos corpos no universo. É considerado um dos trabalhos científicos mais importantes da história da ciência. Duas cópias e o manuscrito original estão na Royal Society, instituição inglesa responsável pelo desenvolvimento científico. O trabalho do físico permaneceu inalterado por 300 anos, até ser modificado pela teoria da relatividade de Albert Einstein.

Leitura com estilo

A estrela-guia da tribo surrealista

Quando se apagam as luzes é que eu me vingo espiando as estrelas.
Campos de Carvalho

De repente, vejo uma bela constelação: Sartre, Ionesco, Buñuel, Breton e Campos de Carvalho. São sábias estrelas onde tentamos, encantados, buscar um pouco de brilho, na esperança de ofuscar o fosco que somos. Do meu pequeno observatório constato que observam muito mais do que qualquer luneta. No contexto de tal constelação, Campos de Carvalho se faz minha Estrela-Guia. Estrela discreta. Não gosta de figurar no centro do céu, para não ser vista. Não gosta de luzes ao seu redor. Pra quê? se luz é o que mais tem para nos dar?

Pra enxergá-la, é preciso não uma luneta, mas, uma “visão” que transcenda o meramente visível. E esta visão não se encontra nos olhos, mas no abstrato sentido de “ver”. E, a Arte de ver atinge o “óbvio oculto”, aquilo que nossos olhos não nos permite alcançar, mesmo usando lunetas. Também não estou me referindo a uma “terceira retina” e, sim, aos “olhos da percepção”, que ultrapassam o fato chamado de real, criando desta forma, uma outra realidade que, antes de se consolidar, é vista como Utopia, como se esta não fosse fundamental para transformar a (Ir)Realidade que (Iludidos) acreditamos vi-ver.

Resultado de imagem para livro no surrealismo
E esta minha Estrela-Guia me fez acreditar que estivesse em um outro plano que não o terrestre, quando pisei o chão de seu apartamento, no dia dois de dezembro de 94, um dia após meu aniversário (E poderia haver presente maior?), quando ao lado de sua esposa, Dona Lygia (a quem ele chama de Santa), me entregou um livro absolutamente inédito, escrito há sessenta anos, ou seja: aos dezoito anos de idade! É um livro de poemas que se chama “Os Sinos de Is”, onde o poeta já fazia citações de Verlaine, Gaughin e, se inspirando ao mesmo tempo em um quadro (não especificado) de Arnold Böcklin, além de epigrafar o seguinte texto de Jens Peter Jacobsen: “...Mas isso não impedia que em certos momentos, em horas de recolhimento, algo se agitasse e murmurasse dentro dele, qualquer coisa como sinos que tocassem numa cidade coberta pelo mar.” E, junto com seu segundo livro editado que é “Tribo”, Campos me deixou fotocopiar este inédito, que é um perfeito esboço de toda a sua obra. Certamente, este foi um dos mais felizes e importantes dias de minha vida. Afinal, você já teve o privilégio de conversar com a sua estrela-guia? De ser muito bem recebido em seu apartamento? Já bebeu uísque com sua estrela-guia? Pois, eu já.

E não é à-toa que no dia-a-dia, quando falamos, quebramos a própria fala e, calados, “vemos” o indizível na linguagem do inominável. Afinal, o que existe nem sempre aparece. Quando diz que “o fato de desaparecer como apareceu, também o pensamento faz o mesmo, e o sonho e nem por isso são menos reais e lhes conseguimos fugir ao jugo, como puros sonâmbulos, a carteira de identidade inutilmente no bolso”, Campos de Carvalho nos prova que só se concretiza o real através da solidez do abstrato.

Com relação à nossa identidade, muitas vezes só a temos “inutilmente no bolso”, sem, no entanto, questionarmos os padrões e valores e conceitos que recebemos “de graça” e, pelos quais pagamos um preço altíssimo: o preço de sermos o que desejam por nós, e não o que desejamos ser.

Falamos tão mecanicamente, que nos tornamos roboticamente humanos, aceitando os comandos do convencional, fingindo que somos felizes pelo simples fato de sermos aceitos como querem, sem criarmos o nosso próprio contexto de vida, sem re-conceituarmos o que dizem ser “certo” ou “errado”. Digo tudo isso porque somente com a embriaguez do questionamento é que se chega à lucidez do conceito. Que o diga minha estrela-guia!

E, para aprendermos os (I)limites do Real/Surreal, para adquirirmos uma visão que transcenda a “miopia cotidiana”, que apenas constata a imagem da obviedade (da qual sempre nos ocultamos), se faz URGENTE ler Campos de Carvalho, este gênio que re-cria, com seu “surrealismo autobiográfico”, a chamada “Linguagem do Absurdo”.

Por fim, para entender Campos de Carvalho é preciso saber que no fim do olhar vê-se o invisível. E, com ou sem observatório, jamais perderei de vista esta minha Estrela-Guia!

Campos de Carvalho (Correio de Araxá, 30 de setembro de 1995)

quinta-feira, dezembro 15

Leitura em dia de chuva

Ler ou não ler, eis a questão

Você gosta de Dostoiévski? Se a resposta for "não", o problema está em você, nunca nele. Uma coisa que qualquer pessoa culta deve saber é que Dostoiévski (e outros grandes como ele) nunca está errado, você sim.

Se você o leu e não gostou, minta. Procure ajuda profissional. Nunca diga algo como "Dostoiévski não está com nada" porque queima seu filme.

Costumo dizer isso para meus alunos de graduação. Eles riem. Aliás, um dos grandes momentos do meu dia é quando entro numa sala com uns 30 deles. Inquietos, barulhentos, desatentos, mas sempre prontos a ouvir alguém que tem prazer em estar com eles. Parte do pouco de otimismo que experimento na vida (coisa rara para um niilista... risadas) vem deles.

Devido a essa experiência, costumo rir de muito blá-blá-blá que falam por aí sobre "as novas gerações".

Um exemplo desse blá-blá-blá são os pais e professores dizerem coisas como: "Essa moçada não lê nada".

Na maioria dos casos, pais e professores também não leem nada e posam de cultos indignados. A indignação, depois da Revolução Francesa, é uma arma a mais na mão da hipocrisia de salão.

59c63e62cc4743b775aed6e9994006ea
Mas há também aqueles que dizem que a moçada de hoje é "superavançada". Não vejo nenhuma grande mudança nessa moçada nos últimos 15 anos. Mesmas mazelas, mesmas inquietações do dia a dia.

Nada mais errado do que supor que eles exijam "tecnologia de ponta" na sala de aula (a menos que a aula seja de tecnologia, é claro). Atenção: com isso não quero dizer que não seja legal a tal "tecnologia de ponta". Quero dizer que "tecnologia de ponta" eles têm "na balada". O que eles não têm é Dostoiévski.

O "amor pela tecnologia" é sempre brega assim como constatamos o ridículo de filmes com "altíssima tecnologia de ponta" comum nos anos 80 e 90 (tipo "Matrix"). Hoje, tudo aquilo parece batedeira de bolo dos anos 50. O que hoje você acha "sublime" na histeria dos tablets, amanhã será brega como os computadores dos anos 80.

Dostoiévski é eterno como a morte. Mas eis que lendo uma excelente entrevista com um psicólogo professor de Yale na página de Ciência desta Folha da última terça (19) encontro um dos equívocos mais comuns com relação a Dostoiévski.

O professor afirma que agir moralmente bem não depende de crenças religiosas. Corretíssimo. Qualquer um que estudar filosofia moral e história saberá que acreditar em Deus ou não nada implica em termos de "melhor" comportamento moral. Crentes e ateus matam, mentem e roubam da mesma forma.

E mais: se Nietzsche estivesse vivo veria que hoje em dia -época em que ateus são comuns como bananas nas feiras- existe também aquele que vira ateu por ressentimento.

Nietzsche acusa os cristãos de crerem em Deus por ressentimento (o cristianismo é platonismo para pobre). Temos medo da indiferença cósmica, daí "inventamos" um dono do Universo que nos ama e, ao final, tudo vai dar certo.

Quase todos os ateus que conheço o são por trauma de abandono cósmico. Se o religioso é um covarde assumido, esse tipo de ateu (muito comum) é um "teenager" revoltado contra o "pai".

Mas voltando ao erro na leitura de Dostoiévski. Do fato que religião não deixa ninguém melhor, o professor conclui que Dostoiévski estava errado quando afirmou que "se Deus não existe, tudo é permitido". Erro clássico.

Essa afirmação de Dostoiévski não discute sua crença, nem o consequente comportamento moral decorrente dela (como parece à primeira vista). Ela discute o fato de que, pouco importando sua crença, se Deus não existe, não há cobrança final sobre seus atos. O "tudo é permitido" significa que não haveria "um dono do Universo" para castiga-lo (ou não), dependendo do que você fizesse.

Claro que isso pode incidir sobre seu comportamento moral, mas apenas secundariamente. A questão dostoievskiana é moral e universal, não pessoal. Pouco importa sua crença, a existência ou não de Deus independe dela, e as consequências de sua existência (ou não) cairão sobre você de qualquer jeito. O problema é filosófico, e não psicológico.

O cineasta Woody Allen entendeu Dostoiévski bem melhor do que o professor.

Luiz Felipe Pondé (Folha de S.Paulo - 25 de julho de 2011)  

quarta-feira, dezembro 14

Leitura no jardim

In the Garden at Villers-le-Bel, Frederick Childe Hassam (1889)

Tinha uma pedra no meio do caminho

Sempre houve livros mais fáceis do que outros. Mesmo dentro de uma mesma coleção como a Bíblia, é mais fácil explicar a metáfora do salmo “O senhor é meu pastor” do que o prólogo joanino: “No princípio era o Verbo”. A leitura de Alexandre Herculano emperra mais do que a de Machado de Assis. Tamanho das frases e vocabulário explicam a diferença. Por vezes, é a erudição do autor; em outras, a complexidade da narrativa.

Guimarães Rosa usa um vocabulário único e reinventa a língua, dificultando a leitura para alguns. James Joyce dificulta para todos. Finnegans Wake foi um dos raros textos que abandonei pela metade. Ainda não tenho maturidade para entender a mente do irlandês. Não decifrei essa obra de Joyce e, confesso, tenho um pouco de medo de quem consiga fazê-lo. Joyce parece cumprir aquela velha piada: quando Hegel começou a escrever sua obra, só ele e Deus sabiam o que ele queria dizer; ao final, só ele...

O elenco das peças de Shakespeare é um desafio para o leitor. Há muitos nomes, especialmente nos dramas históricos. Apesar da clareza exemplar de linguagem, Tomás de Aquino assusta pelo volume. 

Quint Buchholz
Outro exemplo de muro íngreme a escalar? O texto de Lacan apresenta palavras em letra maiúscula que são inteiramente diferentes do que podem parecer: Outro, Mesmo... Você precisa ser íntimo das bisbilhotices dos partidos guelfos/gibelinos/negros/brancos em Florença para atravessar o mata-burro da entrada do latifúndio de Dante Alighieri na Divina Comédia. A genealogia pouco criativa de Macondo é um dique para o fluxo do leitor de Cem Anos de Solidão: todos os nomes se repetem em todas as gerações. Não sabe se é o ditador Francia ou seu secretário que está falando? Perca-se em meio à sintaxe quase guarani da obra de Roa Bastos: Eu, o Supremo. 

Tamanho, vocabulário, ideias, erudição, metáforas herméticas: tudo pode ser um obstáculo no enfrentamento de um clássico. Em oposição, um best-seller asfalta nosso caminho e o povoa de árvores e bancos para que o leitor não se canse na jornada. Palavras simples, enredo rápido e cheio de mudanças vibrantes, mistérios que se resolvem ao longo da obra e um doce canto da sereia da facilidade que deseja atrair nossa atenção. O livro comum quer nosso interesse e anela cativar. O clássico diz que esteve bem nos últimos 300 anos sem você e passará bem os próximos mil após sua morte. O best-seller grita: preciso do seu ibope! O clássico sussurra num muxoxo blasé: não tenho a menor necessidade da sua consideração.

Há dúvidas plausíveis na escolha. Por que pegar a estrada menos asfaltada e ser fustigado por um sol inclemente? Por que escolher a dificuldade em detrimento da facilidade? Quem escalaria a íngreme palmeira atrás do coco duro se dispusesse do mesmo coco já perfurado, gelado e com canudinho e servido à mesa? Que patologia move o leitor de obras difíceis? A resposta é complexa.

Se você se inscrever numa academia de musculação, verá que há pesos de poucos gramas. Fazer exercícios com eles pode provocar, em última instância, apenas tédio. O peso leve não oferece resistência. Sem obstáculo, o músculo não cresce. Sem trauma, a fibra não se transforma. Não suamos, não crescemos, não saímos da nossa zona de conforto. O mesmo ocorrerá se você decidir andar na esteira a um quilômetro por hora. O benefício será menor do que um passo mais decidido. Crescimento deriva do desafio.

A dificuldade da grande obra é seu mérito. Meu vocabulário cresce, minha mente se expande, minha musculatura intelectual se fortalece diante do esforço. O custo? Todo o cérebro range ao peso das ideias, como uma carroça sobrecarregada. As rodas afundam no solo, os bois resistem, o arcabouço estala e o avanço é lento. Ao final, as uvas da obra foram esmagadas por nossos pés cansados e do lagar flui um novo vinho complexo e capitoso.

Um best-seller pode ser muito bom. Já li dezenas. São obras bem construídas. Distraem e servem bem para momentos nos quais seria difícil a concentração extrema. Há dias de vinhos complexos e há dias de refrigerantes. Ao final da leitura da obra fácil, você está algumas horas mais próximo da morte. Best-seller tem função de opiáceo: relaxa, induz à tranquilidade, adormece.

A obra clássica é multifacetada. Muda nosso lugar no mundo. Ela desafia nossos limites e revira as ideias. O que você realmente sabia sobre desejo e fome até ler Um Artista da Fome de Kafka? Não há nenhuma palavra nova no conto. A narrativa é linear e até fácil. Mas, as ideias... o final surpreendente. Ir além seria spoiler...

A obra clássica bem lida tem de ser digerida. Pessoas com certezas absolutas nunca parecem ter se aprofundado em Dostoievski. Quando alguém me afirma que o mundo anda meio perdido, eu me indago se ele varou noites na Comédia Humana de Balzac. Se me dizem que estamos perdendo nossa identidade ocidental, eu suponho que não tenha entendido Coração das Trevas, de J. Conrad. Confundindo afetos, gênero e moral? Já leu a Ilíada de Homero ou Bom-Crioulo de Adolfo Caminha? Terá captado as sutilezas entre Davi e Jônatas? A boa leitura impede que você suponha que nossos dias são extraordinariamente novos. Você ousaria saber?

terça-feira, dezembro 13

Leitura dá brotos

listentothestories:
“Abigail Halpin
”
Abigail Halpin

A inútil beleza das girafas

Hogwash & Nonsense: Ever Onwards re-pinned by: http://sunnydaypublishing.com/books/:
Há alguns anos fui visitar o Kruger Park, na África do Sul, na companhia de Mia Couto. Fomos de carro desde Maputo, a capital de Moçambique, que fica a pouco mais de duas horas do Kruger. Mia, que além de escritor é biólogo, sempre trabalhou na área do ambiente e conhece bem o parque. Em determinada altura vimos duas girafas namorando. Gosto das girafas porque são uma improbabilidade elegante. Seres improváveis há muitos, mas quase todos parecem um tanto desajeitados, como os ornitorrincos ou os cangurus, lembrando o que se costuma dizer acerca do camelo: que é um cavalo desenhado por um comitê.

As girafas enrolavam os intermináveis pescoços uma na outra, numa lenta e amável brandura, fazendo com que qualquer outro bailado nupcial, por comparação, parecesse rústico e sem graça. Todos nós guardamos uma caixinha cheia de memórias felizes, às quais recorremos nos dias escuros para nos reconciliarmos com a vida. Na minha caixinha de memórias felizes haverá sempre essa imagem das girafas dançando. Lembrei-me dela, há dias, ao ler um alerta da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em inglês) para a drástica redução da população de girafas. Em 1985 haveria cerca de 155 mil; no ano passado foram contabilizadas apenas 97 mil. Esses números colocam pela primeira vez a possibilidade de que a espécie se venha a extinguir dentro de poucas décadas. A destruição do habitat natural das girafas, bem como a caça furtiva, explicam, segundo a IUCN, os números agora divulgados.

Em 1962, Rachel Carson publicou “Silent spring” (“Primavera silenciosa”, disponível no Brasil com a chancela da Gaia Editora), um livro que abriu caminho ao movimento ecologista global. O título é uma referência à extinção em massa de muitas espécies de aves, como resultado do triunfo da agricultura industrial e da generalização dos pesticidas. No livro, Carson acusa a indústria química de ocultar os danos causados ao ambiente pelos pesticidas, em particular o DDT, veneno que, anos depois, viria a ser proibido em quase todo o mundo.

O negacionismo da indústria dos pesticidas, nessa época, em nada difere do atual negacionismo das indústrias poluentes, responsáveis pelo incremento do efeito de estufa. O enredo é o mesmo, apenas mudam (quando mudam) os nomes das empresas envolvidas.

O recente convite de Donald Trump a Scott Pruitt para chefiar a Agência de Proteção Ambiental (EPA) foi como uma cusparada de escárnio dirigida a todos quantos se preocupam com a sobrevivência da vida na Terra. Enquanto secretário de Justiça do estado de Oklahoma, cargo que ainda ocupa, Pruitt entrou em guerra judicial com a própria EPA, recusando-se a reduzir as emissões de gases responsáveis pelo incremento do efeito estufa nas centrais a carvão. Pruitt chegou a referir-se à EPA como uma “agência ilícita e excessiva”!

É como se Trump decidisse convidar um pedófilo assumido para dirigir um lar de crianças abandonadas.

Muita gente nos Estados Unidos se indignou contra tão infame convite. Uma dessas pessoas foi o ator Leonardo DiCaprio, que há poucas semanas apresentou um documentário da sua autoria, “Before the flood” (no Brasil, com o título “Seremos História?”) sobre as consequências para o ambiente, e para a vida de todos nós, do aquecimento global. O documentário discute ainda soluções energéticas alternativas. Mal soube do convite a Pruitt, Leonardo DiCaprio pediu para conversar com Trump. O ator não se esforçou em convencer Trump das ligações entre o aquecimento global, o efeito estufa e as indústrias poluentes. Não valeria a pena. Trump, como todos os negacionistas, está perfeitamente a par de tais ligações. Apenas as nega. O que DiCaprio tentou fazer foi convencer Trump de que a economia americana tem tudo a ganhar caso opte por investir em infraestruturas sustentáveis. Esta parece ser, agora, uma estratégia seguida por várias organizações ligadas à proteção do meio ambiente. Ou seja: já não se trata de denunciar a estupidez e a imoralidade da indústria poluente. Trata-se de tentar convencer Trump e os seus colegas empresários de que eles podem ganhar mais dinheiro não poluindo do que arrasando o planeta.

Compreendo a estratégia, mas acho-a bem reveladora do quanto nos vimos aviltando, todos nós, desde a vitória de Trump. E o homem ainda nem sequer se instalou na Casa Branca.

Acho que terei de me conformar a viver num mundo sem girafas. Girafas não dão lucro. Só beleza.

José Eduardo Agualusa

segunda-feira, dezembro 12

Leitor é voyer

Selçuk Demirel Web sitesi » Galerie de Dessins:

Guia de viagem por bons mistérios

Com muita felicidade, tenho reparado que este espaço no jornal tem servido como referência a leitores que se interessam por conhecer um pouco mais sobre literatura policial e de mistério, meu tema favorito. Através de emails, é comum que muitos leitores venham me pedir outras indicações de histórias de suspense, enigma, violência e tensão. Por isso, aproveitando que já é dezembro e as férias vêm aí, decidi escrever um breve “guia de viagem” pela literatura policial que sirva tanto aos marinheiros de primeira viagem quanto àqueles já íntimos da região, mas que podem ter deixado escapar algum ponto turístico importante.

Para começar, nada melhor do que uma visita ao berço da civilização policialesca. Em três contos protagonizados por Auguste Dupin, Poe fixou as bases arquitetônicas do gênero: “Os crimes da rua Morgue”, “O mistério de Marie Roget” e “A carta roubada”. São contos breves e potentes, vale conferir. Daí, seguimos para a primeira aventura de Sherlock Holmes em Londres com “Um estudo em vermelho” e a primeira aparição do belga Hercule Poirot, com “O misterioso caso de Styles”. Também escritos por Agatha Christie, a Rainha do Crime, três outros romances merecem atenção por quebrarem regras do gênero e trazerem inovações: “O caso dos dez negrinhos”, “O assassinato de Roger Ackroyd” e “Assassinato no Expresso do Oriente”.

Resultado de imagem para poe e holmes
Auguste Dupin e Sherlock Holmes

Aos que curtem uma programação mais pesada, hardboiled, mas também tradicional, as pedidas básicas são “O falcão maltês”, de Dashiel Hammet; “A noiva estava de preto”, de Cornell Woolrich, e “O longo adeus”, de Raymond Chandler. Numa abordagem mais psicológica, o melhor de todos é “Pacto sinistro”, de Patricia Highsmith, minha autora favorita. E se a viagem incluir uma passada pelos tribunais mais tradicionais, devem entrar na lista “Tempo de matar”, de John Grisham; “Acima de qualquer suspeita”, de Scott Turow, e “Em defesa de Jacob”, de William Landay.

Se alguém passar mal na viagem, os hospitais oferecem boas possibilidades, como “Lavoura de corpos” e “Post-mortem”, de Patricia Cornwell; “Coma”, de Robin Cook; “O cirurgião” e “Corrente sanguínea”, de Tess Geritssen. Para quem gosta de visitar alguns museus, os thrillers históricos são ótimas opções, como “O nome da Rosa”, de Umberto Eco; “Traduzindo Hannah”, de Ronaldo Wrobel, e “O segredo do oratório”, de Luize Valente. Acha que acabou aí? Todo bom lugar tem um serial killer para nos causar medo e, na literatura policial, o melhor é o famoso Dr. Hannibal Lecter. Para quem não conhece, “O silêncio dos inocentes” é leitura imprescindível. Na Inglaterra pós-Agatha Christie, duas damas do crime merecem uma visitinha com chá e bolos: Ruth Rendell com seu “Um assassino entre nós”, e P.D. James com “O enigma de Sally”.

Pegando um avião para outros cantos do planeta, passemos pela França, com “O cachorro amarelo”, de Georges Simenon, “Tarântula”, de Thierry Jonquet, e “O homem do avesso”, de Fred Vargas. Na Itália, “A forma da água”, de Andrea Camilleri; na Espanha, “O labirinto grego”, de Manuel Vázquez Montalbán; na Suécia, “Os homens que não amavam as mulheres”, de Stieg Larsson; em Cuba, o recém-lançado box “Estações de Havana” com o detetive Mario Conde, de Leonardo Padura; na Islândia, “O silêncio do lago”, de Arnaldur Indridason; na Escócia, “O enigmista”, de Ian Rankin, ou “Domínio sombrio”, de Val McDermid; na Irlanda, “Rastros na neblina”, de Benjamin Black, ou “Porto inseguro”, de Tana French; na Noruega, “A vela do demônio”, de Karin Fossum, ou “Baratas”, de Jo Nesbo.

Dos romances policiais brasileiros já falei muito neste espaço, mas destaco o tempero carioca de “O Xangô de Baker Street” e de “O silêncio da chuva”, o caos paulistano de “O matador” e de “Bellini e os espíritos” e, claro, o batuque baiano de “O canto da Sereia”. Entre as publicações mais recentes, são imperdíveis “O sorriso da hiena”, de Gustavo Ávila; “Eu vejo Kate”, de Cláudia Lemes, “Pssica”, de Edyr Augusto, e as coletâneas Rio Noir e São Paulo Noir, que apresentam histórias de mistérios situadas em bairros dessas grandes cidades. Um bom romance policial é a melhor maneira de viajar pelo mundo sem gastar muito dinheiro. Afinal, a literatura policial pode ser tradicional, exótica, pop ou violenta. Compre sua passagem (só de ida) e se deleite nesses passeios cheios de cores, sabores, texturas e possibilidades.

Raphael Montes

Um anjo lê no metrô

Los ángeles también leen (ilustración de Carter Goodrich)
Carter Goodrich

Talento desperdiçado

Resultado de imagem para irmãs bronte
O meu amigo escritor e editor Adolfo García Ortega, residente em Madrid, manda-me regularmente coisas que publica na imprensa espanhola ou em sites dedicados ao nosso ofício. E começou de há dois meses a esta parte a fazer um "Abecedário do Leitor" realmente fascinante; chegada há uns dias a letra B, fiquei deliciada com o que me contou sobre as irmãs Brontë. Ora vejam: Charlotte, autora do famosíssimo Jane Eyre e, segundo o meu amigo, a mais inteligente da família, morreu aos 39 anos. Emily, que escreveu o por tantos adorado Monte dos Vendavais – adaptado, de resto, ao cinema numa versão muito teatral –, morreu com 30 anos, deixando apenas esse romance de que ainda hoje se fala. A mais nova das três, Anne, morreu ainda mais cedo, com uns meros 29 anos, tendo escrito dois romances considerados bastante modernos para a época: Agnes Grey e The Tenant of Wildfell Hall. As Brontë constituem um raro exemplo de talento familiar (seria dos genes ou coincidência?) – e as suas obras passaram todas no teste do tempo. Agora imaginem: se todas tivessem vivido mais anos, que livros não poderiam ter-nos deixado?…

À beira do mar

Um cinturão

As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.

Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal – e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.

Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.

Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé do turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente, me livrassem daquele perigo.


Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação.

Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.

Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me acompanharam.

O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.

Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.

Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.

A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal. Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos – e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás de caixões, livre do martírio.

Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.

Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.

Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me num desespero.

O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.

Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.

Pareceu-me que a figura imponente minguava – e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.

Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.

Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.

Graciliano Ramos