O último dos presépios da primeira geração ruiu numa noite de Natal, teria eu oito ou nove anos, devido, provavelmente, ao peso dos inumeráveis personagens que caminhavam ao longo das verdes colinas de musgo, assentes sobre complexas estruturas em arame e cartão. Havia mesmo um rio, no qual circulavam barcaças e jangadas, com um complicado sistema para elevar e fazer circular a água. Por essa altura, aos apaches, moicanos e caubóis, haviam-se juntado várias bonecas da minha irmã, e até uma manada de elefantes em pau preto. Todos aqueles seres se dirigiam felizes a saudar o Menino Jesus, quando ocorreu o desastre. Fui o único a acordar com o ruído e, portanto, o primeiro a entrar na sala. Consegui salvar o Menino Jesus, que se afogava, sem glória, numa poça de água e lama. Infelizmente, a Virgem Maria perdeu a cabeça. No fim, lá conseguimos recompor o presépio. Contudo, nunca encontramos a cabeça da Virgem, de forma que, nesse ano, tivemos de substituir a mãe de Jesus por um dos pastorinhos, ao qual acrescentamos uma peruca loira, feita de algodão. O pastorinho, assim travestido, assumiu o seu papel e não fez má figura, muito pelo contrário.
Penso naquele presépio como um modelo do mundo em que cresci e no qual acredito — mundo esse que parece, também ele, em vias de desabar. Um mundo de fronteiras difusas, sejam elas raciais, étnicas ou de gênero. Um mundo sincrético, mestiço, integrador. Um mundo que ambiciona (ou ambicionava) ser o Brasil no que o Brasil tem de melhor: a extraordinária capacidade de assimilar e nacionalizar o outro.
Eis senão que o passado se ergueu de entre os escombros, com a soma de tudo aquilo que julgávamos já ter ultrapassado: o ranço do nacionalismo mais primário, o bolor do racismo, da xenofobia, do machismo e da intolerância religiosa. É um movimento que já estava em marcha há vários anos; mas em 2016, com a vitória de Donald Trump, podemos dizer que se afirmou de forma explícita, em toda a sua excêntrica e brutal obscenidade.
Em dezembro, gosto de colecionar as previsões de astrólogos, cientistas, analistas políticos, para o ano seguinte. Doze meses mais tarde confronto essas previsões com o que realmente aconteceu. A conclusão é que quase ninguém acerta. Nem a magia, nem a ciência. O futuro continua inescrutável, o que me parece ao mesmo tempo assustador e reconfortante. Não sabemos nunca o que está para além da curva do tempo. O futuro pode trazer-nos tudo — inclusive o passado.
A julgar pelo que aconteceu em 2016, devemos estar preparados para todo esse passado terrível que aí vem. Essas são as previsões da maioria dos astrólogos e analistas políticos. Dado o prazer evidente que o futuro tem em contrariar as previsões, pode ser, contudo, que 2017 nos surpreenda pela positiva. Para quem, como eu, não acredita nem em astrólogos, nem em analistas políticos, existe a matemática. A regressão à média é um conceito matemático segundo o qual em qualquer série de eventos aleatórios existe enorme probabilidade de um acontecimento extraordinário ser seguido, por puro acaso, por outro mais trivial. Ou seja, no evento que agora nos interessa, a um ano extraordinariamente mau e agitado é provável que se sigam meses relativamente tranquilos. Vamos ver.
Volto a pensar no dia em que a Virgem perdeu a cabeça. Foi um desastre terrível — no minúsculo universo em que ocorreu, é claro. Mas na manhã seguinte tínhamos um novo presépio, ainda mais bonito do que o anterior. Talvez a moral da história seja esta: por vezes, para que o mundo avance, é preciso que a Virgem perca a cabeça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário