As girafas enrolavam os intermináveis pescoços uma na outra, numa lenta e amável brandura, fazendo com que qualquer outro bailado nupcial, por comparação, parecesse rústico e sem graça. Todos nós guardamos uma caixinha cheia de memórias felizes, às quais recorremos nos dias escuros para nos reconciliarmos com a vida. Na minha caixinha de memórias felizes haverá sempre essa imagem das girafas dançando. Lembrei-me dela, há dias, ao ler um alerta da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em inglês) para a drástica redução da população de girafas. Em 1985 haveria cerca de 155 mil; no ano passado foram contabilizadas apenas 97 mil. Esses números colocam pela primeira vez a possibilidade de que a espécie se venha a extinguir dentro de poucas décadas. A destruição do habitat natural das girafas, bem como a caça furtiva, explicam, segundo a IUCN, os números agora divulgados.
Em 1962, Rachel Carson publicou “Silent spring” (“Primavera silenciosa”, disponível no Brasil com a chancela da Gaia Editora), um livro que abriu caminho ao movimento ecologista global. O título é uma referência à extinção em massa de muitas espécies de aves, como resultado do triunfo da agricultura industrial e da generalização dos pesticidas. No livro, Carson acusa a indústria química de ocultar os danos causados ao ambiente pelos pesticidas, em particular o DDT, veneno que, anos depois, viria a ser proibido em quase todo o mundo.
O negacionismo da indústria dos pesticidas, nessa época, em nada difere do atual negacionismo das indústrias poluentes, responsáveis pelo incremento do efeito de estufa. O enredo é o mesmo, apenas mudam (quando mudam) os nomes das empresas envolvidas.
O recente convite de Donald Trump a Scott Pruitt para chefiar a Agência de Proteção Ambiental (EPA) foi como uma cusparada de escárnio dirigida a todos quantos se preocupam com a sobrevivência da vida na Terra. Enquanto secretário de Justiça do estado de Oklahoma, cargo que ainda ocupa, Pruitt entrou em guerra judicial com a própria EPA, recusando-se a reduzir as emissões de gases responsáveis pelo incremento do efeito estufa nas centrais a carvão. Pruitt chegou a referir-se à EPA como uma “agência ilícita e excessiva”!
É como se Trump decidisse convidar um pedófilo assumido para dirigir um lar de crianças abandonadas.
Muita gente nos Estados Unidos se indignou contra tão infame convite. Uma dessas pessoas foi o ator Leonardo DiCaprio, que há poucas semanas apresentou um documentário da sua autoria, “Before the flood” (no Brasil, com o título “Seremos História?”) sobre as consequências para o ambiente, e para a vida de todos nós, do aquecimento global. O documentário discute ainda soluções energéticas alternativas. Mal soube do convite a Pruitt, Leonardo DiCaprio pediu para conversar com Trump. O ator não se esforçou em convencer Trump das ligações entre o aquecimento global, o efeito estufa e as indústrias poluentes. Não valeria a pena. Trump, como todos os negacionistas, está perfeitamente a par de tais ligações. Apenas as nega. O que DiCaprio tentou fazer foi convencer Trump de que a economia americana tem tudo a ganhar caso opte por investir em infraestruturas sustentáveis. Esta parece ser, agora, uma estratégia seguida por várias organizações ligadas à proteção do meio ambiente. Ou seja: já não se trata de denunciar a estupidez e a imoralidade da indústria poluente. Trata-se de tentar convencer Trump e os seus colegas empresários de que eles podem ganhar mais dinheiro não poluindo do que arrasando o planeta.
Compreendo a estratégia, mas acho-a bem reveladora do quanto nos vimos aviltando, todos nós, desde a vitória de Trump. E o homem ainda nem sequer se instalou na Casa Branca.
Acho que terei de me conformar a viver num mundo sem girafas. Girafas não dão lucro. Só beleza.
José Eduardo Agualusa
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