De janelas abertas, a aragem passa leve pela casa toda, traz ainda dos recantos o odor das eras mortas. O silêncio pesa sobre a terra como um augúrio, a luz é intensa como uma treva. Olho-a deslumbrado até à cegueira, quase esquecido de mim. A morte alastra à minha volta no silêncio, sobe pelo meu corpo até aos meus olhos parados. Que é que quer dizer a vida e a vertigem do seu milagre? Onde se gera o espanto e o arrepio do seu alarme? Estou só , esvaziado de tudo. Ideias, projetos, e as súbitas revelações , e o mundo , e a visão original das coisas, a recuperação do seu ser de início mesmo depois de já sabidas, e o encantamento da beleza primordial onde estão? Só, na nulidade de mim, na frieza linear e vegetativa. E todavia, por vezes: que é que vai morrer de mim na morte? Por vezes, esta vontade inteira de recuperar o sentir. Recuperar as evidências que de súbito me iluminaram. Reentender a vida e a sua fulguração. Recuperar-me na fúria explosiva de ser, no reaparecimento da iluminação de mim, da afirmação categórica da minha presença ao mundo, da necessidade bruta, endemoninhada, do meu ser eterno. Não sou capaz. Ou de recuperar o pânico da revelação da vida, o abalo como um soco no baixo-ventre, a sufocação a olhos exorbitados, o grito horrível entalado na garganta, frente à grande noite de pedra. Entender, entender. Esmigalhar o crânio contra o muro, entender. Não quero já entender - para que hás-de querer entender? Ou sentir-me escoado de abismo no silêncio dos grandes espaços, no turbilhão do sem-fim e do incompreensível. Estou quedo, recostado no meu limite, encolho os ombros sem os encolher. Um montículo de peles encarquilhadas - que resta em mim de um homem para dar à terra em dignidade? em valor que me preencha do espaço da minha morte? Quem morre em mim para se dizer que alguém morreu? Olho a luz , as coisas, um cão que vai passando na rua, olho as cores. E a sua realidade é a sua superfície como a pele do que é oco. Recuperar a virgindade de ser. Fito vivacíssimo, a um olhar de dente rilhado, o que me parece uma mancha de flores azuis, em baixo, no jardim e é talvez um pedaço de pano. A cor - o mundo está cheio de uma beleza de origem. Uma cor. Olho o azul do céu, limpo das nuvens, de tudo que lhe amortece a violência. Fito-o só a ele, no seu absoluto de ser. É uma cor nítida, por dentro, viva luminosa intensa de vitalidade. Unicidade deslumbrante - como um pintor, penso, será assim que ele a vê? Única. Esplendorosa. Com a força da terra rebentando-a abrindo-a como a uma música que vem de uma corda percutida. É uma cor feita só de uma luz de dentro, violentamente marcada, diferente com a força original de uma original criação. Olho-a intensamente, os meus olhos tremem de deslumbramento.
Há um azul nascido no mundo, uma cor prodigiosa de invenção, um milagre de luz diferente. Estala-lhe a luminosidade na revelação da pele, brilha sem estridência, destacada de quanto à volta quer também existir. Deus criou o azul neste instante e eu assisto fulminado deste prodígio terrível. Uma cor. Um modo de a luz ser em maneira mais terrena, para os limites de eu ser humano. Palpo o azul com os meus olhos, afloro-o em imaginação, assisto ao constante da sua substância terna que vem de dentro do seu mistério invisível. Os meus olhos dilatam-se no envolvimento do milagre, da realização fantástica de uma revelação. O azul. Não a flor e o céu e a terra que os fez ser. Só a cor no seu modo violento de me encher os olhos, os fundir à sua intrínseca vibração luminosa, os transformar na sua substância interna e ser com ela a sua aparição. Olho ainda um momento, mas o instante da revelação passou. São umas flores no jardim à entrada do portão, banais , normalizadas, sem uma interrogação na sua profundeza. Perto, as folhas dos choupos estremecem brevemente à aragem quente que passa. Olho ainda, os meus olhos ardem de atenção, um trémulo de chamas ou de lágrimas. O milagre existe, oh, e o cansaço - que é que vai contigo a enterrar? Um maço de peles encarquilhadas.
Vergilio Ferreira
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