segunda-feira, janeiro 9

Vale o escrito

Os quatro volumes das histórias napolitanas de Elena Ferrante, que começaram com “A amiga genial”, se tornaram um dos maiores fenômenos literários da última década, não só pelos milhões de livros vendidos no mundo inteiro, como pela consagração na crítica internacional.

Ambientadas na periferia miserável e violenta de Nápoles no pós-guerra, contam a história de duas amigas ao longo de 60 anos, com suas trajetórias pessoais se confundindo com a história da Itália, das Brigadas Vermelhas nos anos 70 e da Operação Mãos Limpas nos 90 até Berlusconi e a decadência econômica, política e social do país.


Encontros e desencontros amorosos, ilusões e desilusões políticas, enganos e desenganos familiares e sociais, tragédias e comédias das grandezas e misérias da Itália, sexo, drogas e macarronada sob a sombra da Camorra.

Grandes livros são sempre boas notícias, mais ainda em tempos de ignorância, estupidez e intolerância, porque aliviam as dores do cotidiano e aquecem os corações oprimidos pela brutalidade da vida real, nos fazendo rir e chorar com as maravilhas e torpezas da condição humana.

Tanto sucesso abriu uma grande polêmica, não sobre a qualidade dos livros, mas porque sua autora escolheu esconder-se sob um pseudônimo, nunca foi fotografada e só dava entrevistas através da editora. Nunca deu um autógrafo ou fez uma selfie.

Justo na era da vaidade e do exibicionismo, do culto à publicidade e ao marketing, da ostentação mais vulgar, parece uma atitude nobre e corajosa renunciar às glórias efêmeras do sucesso e impedir que obra e autor se confundam — o contrário de tudo que a indústria editorial faz para vender mais livros. Ironicamente, o mistério só fez crescerem as vendas.

Finalmente, um repórter investigativo especializado em organizações criminosas usou o método infalível: seguiu o dinheiro. E descobriu que a tradutora Anita Raja e seu marido, o escritor Domenico Starnone, haviam recebido quase dez milhões de euros em direitos autorais. Mas nem eles nem a editora jamais confirmaram. E daí? Os livros não ficam melhores nem piores. Como no jogo do bicho, vale o escrito.
Nelson Motta

Nenhum comentário:

Postar um comentário