Madrugada
Acordou assustada e medrosa no silêncio da casa adormecida. Era como se fosse a única habitante de um mundo de quietude e solidão.Um mundo trêmulo de felicidade que um gesto desajeitado poderia quebrar e destruir. Escorregou de manso sob as cobertas, com medo que ele acordasse, a respiração ritmada de seu sono tranquilo, a mão largada junto ao rosto, nesse jeito meio perdido de criança de todo homem adormecido. Ficou sentada um pouco na beirada da cama, amaciando com a ponta do pé descalço a lã do tapete. E viu-se de repente no espelho, na madrugada que principiava a entrar de manso pelas frestas das venezianas, o rosto meio escondido pelo cabelo, uma vaga silhueta de mulher, um jeito meio ansioso, a ingênua camisola branca, refletida no espelho.
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Tony Robert-Fleury |
Tinha nascido com ela aquela sensação pungente da infinita precariedade de tudo, que a acompanhara, sem largar, por toda a vida. Fora assim que surpreendera a beleza no seu rosto, no céu, nas águas, no mundo. Fora com essas mãos surpreendidas e desesperadas de não poderem reter coisa nenhuma, que segurara um filho no colo, um rosto bem amado, um momento de prazer. E todos esses sentimentos se atropelavam, agora – suspensos em que noção de tempo? – nesta madrugada estrangeira, que ia virando dia, numa cidade com que sonhara uma vida inteira, ao lado de um homem que não era mais seu. O dia ia nascendo e com ele o anúncio de todas as partidas. E do fundo do seu sono ordenara a si mesma que acordasse, que ficasse a espiar, a tentar reter – como? – aquele momento, no escuro do quarto em que ele dormia, livre de cuidados, a sua última noite juntos.
Nunca sentira o mundo ou este homem mais seus do que nesse instante em que ambos ainda não tinham acordado e em que lhe pertenciam, tão brevemente, por inteiro. Levantou-se de manso – e seu vulto no espelho, amaciando os passos e a respiração, abriu sem ruído uma fresta da veneziana – sentiu no rosto o ar fresco que vinha lá de fora, guardou pedra por pedra na memória a ruazinha estreita, descendo para o porto, a névoa que começava a debruar o horizonte. Vinha do fim da ladeira um trabalhador encapotado, uma janela abriu-se barulhenta com um riso de mulher.
Teve medo desse dia que ia nascendo, fechou a janela depressa para que ele não entrasse no quarto. Voltou-se para a cama em que o homem dormia, ressonando de leve, escondendo o rosto no travesseiro para aprofundar mais no seu sono. Começou a falar baixinho, quase sem palavras, com ele – dizem que se pode falar assim com o espírito, que vagueia, dos que estão adormecidos. – Disse-lhe do seu amor, de sua angústia, de sua pena. De toda a solidão com que ia ficar. Estava alegre – sabe? – muito obrigada, sabe? – a ele, à vida, ao que fosse, meu Deus. Nunca mais dormiria o seu sono junto dela. Mas que dormisse bem. E acordasse em paz, em alegria. Essa hora ficaria com ela, só sua, de mais ninguém. E até nunca mais.
Elsie Lessa
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