Fui convidar amigos para um evento no Rio de Janeiro e encontrei as páginas ativas de três deles que já estavam mortos. Como assim?
Despertou um mal-estar, um incômodo, como se estivesse profanando túmulos. Tinha receio de espiar as postagens, o que agravaria a saudade o tanto que eles significavam para mim. Afogava-me na navegação com a respiração cortada e acelerada.
Reparei que é um problema comum. No Facebook e Instagram, meus dedos caminham em lápides. Páginas paradas de quem morreu. Sem nenhuma administração. Sem flores e celebração. As senhas foram embora com os seus donos.
Pawel Kuczynski
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É um cemitério que cresce entre os vivos, sem distinção. Sem que as pessoas sejam enterradas. Sem um aviso claro de despedida. Sem um adeus e uma cruz. Os rostos parecem tão bem ainda nas fotografias, com saúde e cheios de planos, mas não estão mais aqui.
Tento localizar uma nota dissonante na harmonia cronológica, um aviso póstumo nas legendas, porém não há. As últimas frases não são pressentimentos. Não portam nenhuma mensagem implícita, nenhuma criptografia de salvação, nenhum recado para o futuro
Posso apagar o e-mail e o celular da minha lista de contatos, só que não tenho como mexer naquele continente alheio para hastear uma bandeira preta no lugar da azul.
O endereço virtual é imutável, não receberei um carimbo dos Correios com o X assinalado no quadrinho de Falecido. Antevejo o quanto a dor deve cortar um pai ou uma mãe ao entrar na web e enxergar seu filho morto ainda vivo por lá, com a possibilidade de mandar um comentário e ter a foto do outro lado piscando.
Sim. Nem todos lembram de pedir a remoção para o Facebook. Nem todos sabem que podem converter o espaço em memorial. Nem todos enfrentam o enterro virtual, já que foi tão cansativo o velório físico.
Diante da constelação de estrelas mortas insistindo em brilhar, eu questiono o trabalho inútil de multiplicar os seguidores e não fortalecer os poucos amigos que nos restam.
Dedicamos a maior parte de nosso tempo para as redes sociais e reservamos as sobras para a convivência. Às vezes a esposa e os filhos descobrem algo pelas postagens antes de nossa palavra e voz. Não é um sintoma de deslealdade?
Compramos a imortalidade no espelho e rifamos a passagem das marcas e das rugas na pele.
Separamos as nossas folgas e distrações para abastecermos os nossos endereços com vídeos e imagens, para explicarmos o que estamos fazendo, para fingirmos uma alegria que não durará nem até a próxima postagem.
Sacrificamos os nossos descansos para permanecermos em evidência. São likes, risos e corações em uma série interminável de fotogramas. Tem gente, inclusive, que parece que não dorme tendo em vista os seus aplicativos sempre atualizados. Será que é um receio de ser tão pouco para nós mesmos?
Somos patrões de nossa rotina digital 24h, empresários full time de nossas roupas, gostos e opiniões, não concedendo férias, FGTS, hora-extra e insalubridade para a nossa porção pobre de realidade.
Não há como parar sequer um dia, para não comprometer a performance e arriscar uma queda de seguidores. É uma compulsão para manter uma realidade paralela, em troca do desaparecimento gradual no próprio cotidiano.
A comida esfria porque temos a obrigação de fotografar o prato. A festa acaba porque nos distraímos atrás do clique perfeito. O bar esvazia porque os drinques pediam filtros.
Cultivamos miragens. Desistimos de conversar olhando nos olhos. Nossos abraços vão se esgueirando, nossos beijos se apressam em selos, o sexo nem terminou direito e já corremos para a tela luminosa do aparelho para ver o que perdemos entre os tweets do momento e as manchetes do Facebook.
A visibilidade vale o sacrifício? Não seria melhor ter permanecido mais tempo perpetuando hábitos com os amigos, aventurando-se nos afetos?
Talvez as redes sociais apresentem mais informações sobre o morto do que os próprios familiares. É justo com quem dividimos a intimidade da casa?
Estamos cada vez mais vivos na morte e fantasmas em vida, legando lacunas e imprecisões aos mais próximos.
Não há despedida na virtualidade pois, no fundo, não desenvolvemos a consciência da nossa finitude. Toda aquela atenção virtual custou uma enorme e irreparável desatenção.
O que demoramos a reconhecer é que a nossa biografia mora nas cenas que não foram publicadas. Elas que formam o amor que deixaremos, nada mais.
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