De todos os grandes escritores europeus que nos visitaram, e eu tive a oportunidade de abordar, nenhum me impressionou tão agradavelmente como esse Albert Camus, que acaba de desaparecer num fortuito acidente de automóvel. Quando ele esteve aqui, ainda não era Prêmio Nobel, mas já havia escrito La peste e o seu nome se tornara conhecido em todo o mundo. A maior láurea literária não podia aumentar-lhe a celebridade, que já era imensa: era dos tais que fazem mais honra ao prêmio do que o prêmio a eles.
Assim, ao se anunciar a sua conferência, a ser pronunciada no auditório do Ministério da Educação, a afluência do público foi enorme, e creio mesmo que só Anatole France despertou entre nós tamanha curiosidade. Até eu, que sou muito avesso a esses corre-corres, a esse espevitamento de tomar o cheiro dos famanazes em trânsito, saí-me dos meus cuidados e fui até o Ministério. Mas, diante do aspecto da sala, absolutamente à cunha, com grande sentada até junto à mesa, bati em retirada. A consequência foi que nunca vi Camus falar em público.
Vi, porém, coisa melhor. Conversei com ele em tête-à-tête, e eis como tive essa fortuna, que devo a Maria da Saudade Cortesão. Alguns amigos brasileiros do grande escritor, uns vinte, entre os quais Murilo Mendes, tiveram a boa ideia de lhe oferecer um almoço de despedida num restaurante português da rua do Ouvidor, perto do cais. Ao fim do almoço, eu, que apenas havia apertado a mão de Camus ao lhe ser apresentado, sentia-me bastante derreado pela peixada e pelo verde da casa: mal podia trocar palavra com os meus vizinhos de mesa. Foi quando Maria da Saudade, que ocupara o lugar à direita do escritor, levantou-se e veio buscar-me para me fazer sentar ao lado de Camus, a fim de que ele e eu conversássemos um pouco. Obedeci com certa relutância, pois não esperava grande coisa do contato (a minha experiência com Spender, Lehmann e outros sublimes fora desanimadora). Que dizer de saída a Camus? Eu estava arrasado. Foi o que disse: "Esses almoços em restaurante me cansam muito." A simpatia de Camus foi total. - "A mim também", respondeu. E eu prossegui: - "O senhor deve estar exausto de tanta conferência, tanta homenagem." E ele: - "Estou doente. Eu resisti à guerra, resisti à Resistência, não resisti à América do Sul!" Por aí fomos num papo sem nenhuma formalidade, falamos de nossa doença (porque Camus também foi marcado pela tuberculose na mocidade), falamos de muitas outras coisas e ele acabou dando-me o seu telefone privado em Paris para que eu o procurasse quando fosse à França. Durante todo o tempo que o ouvi, senti-me à vontade e encantado. Surpreso. Não havia naquele homem vestígio dessa personagem odiosa que é a celebridade itinerante. Não parecia um homem de letras. Era um homem da rua, um simples homem, dando a outro homem um pouco da sua substância espiritual, simplesmente humana. Senti vontade de ser seu amigo. Quando, um ano depois, estive em Paris, quis procurá-lo. Ele estava ausente. Agora o desastre... Deixo nessas pobres linhas a minha saudade do homem Camus, tão simples, tão simpático, tão despretensioso na sua glória mundial.
Manuel Bandeira
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