Os romances são mais longos que os contos e, em virtude dessa extensão ou, digamos, amplitude, têm a oportunidade – a obrigação, na verdade – de serem mais complexos e envolver mais personagens. A maioria dos romances é narrativa, isto é, linear na forma e fiel à cronologia, eles avançam ou flutuam em idas e vindas no tempo. A narrativa conta uma história e as histórias são a essência das coisas, o elemento fundamental. E. M. Forster em Aspectos do Romance, um ensaio em inglês ligeiramente datado, fala sobre a importância de contar uma história e as habilidades de um de seus mais brilhantes artífices, Sherazade, a perspicaz filha do vizir.
Apesar de ser uma grande romancista, requintada em suas descrições e prudente em seus julgamentos, espirituosa ao narrar incidentes, avançada em sua moral, eloquente na caracterização das personagens e profunda conhecedora das três capitais do Oriente, ela não recorreu a nenhum desses dotes ao tentar salvar sua vida perante o marido intolerável. Eram apenas elementos secundários. Se sobreviveu, foi porque as compôs de forma que o rei sempre perguntasse o que aconteceria em seguida. Toda vez que ela via o amanhecer, parava no meio de uma frase, deixando-o boquiaberto. “Nesse momento, Sherazade viu raiar as primeiras luzes da aurora e, discreta, guardou silêncio.”
Essa última frase, como adverte Forster, é a chave para As Mil e Uma Noites: Sherazade ficou em silêncio. O que aconteceria depois? A vontade de saber é o motor da literatura: por favor, continue contando a história.
O enredo é algo mais que a história. Inclui os elementos causais e as surpresas. A história de Lolita é simples: Humbert encontra Lolita, e digamos que a seduz, a faz passar por sua filha, uma situação detestável, mas inebriante, e um rival a rouba dele. Ele sai em sua busca, encontra os dois e mata o ladrão. Mas é o enredo, com seus muitos momentos cômicos, a revelação progressiva de motivos e incidentes grotescos, que o engrandece. Lolita de início foi mal compreendido, naturalmente, mas se salvou do esquecimento previsível ou da prateleira de livros picantes graças a Graham Greene, que incluiu a obra em sua lista do Times como um dos três melhores livros do ano, e assim lhe garantiu um respaldo literário. Nabokov era, na época, um escritor pouco conhecido.
Vou tentar falar sobre escrever romances, mas devo alertar, de antemão, que pode não ser sobre o romance vocês estão pensando em escrever, ou já começaram a escrever, ou , quem sabe, já têm quase pronto. Na verdade, é sobre os romances de certas pessoas. Não pretendo dar lições sobre como se faz.
Acho que ninguém é capaz de ensinar a escrever um romance, pelo menos não em uma hora. É difícil escrever romances. Você precisa ter a ideia e as personagens, e talvez se acrescentem personagens pelo caminho. Você precisa da história. Você precisa, se me permitem dizer, da forma: Qual será o tamanho do livro? Será escrito em parágrafos longos? Curtos? Em que pessoa narrativa? Manterá um fio condutor ou se dispersará em todas as direções? Qual será o grau de densidade? Quando você tem a forma, você pode escrever o romance. Quando você tem o estilo. O estilo. Onde você se situa como escritor? Seus preconceitos. Seu posicionamento moral. O modo como se deve ler esse livro. E depois você precisa de um começo. “Duas cordilheiras atravessam a República, quase de norte a sul ...”, as contidas primeiras palavras do suplício final do cônsul em À Sombra do Vulcão. O começo é de suma importância. Já mencionei o começo de Adeus às Armas. Tudo está naquelas primeiras frases: a guerra da qual estão tentando se afastar ou fugir. Por enquanto, estão protegidos, vendo tudo acontecer, mas seu destino está ligado ao conflito.
Uma das coisas mais difíceis, como dizia García Márquez, é o primeiro parágrafo. Passou meses com um primeiro parágrafo, mas, depois que o conseguiu, o resto foi simples. Ele tinha o estilo, o tom, mas o problema era como colocar isso no papel. O primeiro parágrafo era uma amostra do que seria o restante do livro.
Se isso é verdade, se é tão difícil e para quase todo mundo há tão pouco a ganhar, pouco dinheiro... Bem, na verdade, é uma maneira de ganhar dinheiro; você não precisa de nada para começar, exceto as palavras. Mas qual é o impulso? Por que escrever? Aí está a essência. Então, por quê?
Bem, certamente por prazer, embora esteja claro que não é um prazer tão grande. Nesse caso, para agradar os outros. Escrevi com isso em mente às vezes, pensando em certas pessoas, mas seria mais honesto dizer que escrevi para que os outros me admirem, para que gostem de mim, para ser elogiado, reconhecido. Afinal, essa é a única razão. O resultado não tem quase nada a ver com isso. Nenhuma dessas razões dá a força do desejo.
Eu sempre penso em Paul Léautaud, um velho crítico teatral, pobre, quase esquecido. No final da vida, quando morava sozinho com uma dúzia de gatos, ele escreveu: “Écrire! Quelle chose merveilleuse!” [Escrever! Que coisa maravilhosa!]
Você é o herói de sua própria vida: ela pertence somente a você e é, muitas vezes, a base de um primeiro romance. Nenhuma outra história estará mais ao seu alcance do que essa. Philip Roth escreveu seu primeiro livro, Goodbye, Columbus, sobre si mesmo e um amor juvenil com uma garota em Nova Jersey. Esse segmento de sua vida é história e suas complicações compõem o enredo.
Voltaire escreveu Cândido como crítica social, de um fôlego só, aos 75 anos de idade.
Theodore Dreiser visitou seu amigo Arthur Henry no verão de 1899 em Maumee, Ohio. Henry estava trabalhando em um romance. “Por que você não escreve um também?”, sugeriu a Dreiser. Este sentou-se, pegou um papel e escreveu na parte superior: Sister Carrie.
Dreiser era filho de uma família de dez irmãos que cresceram na pobreza em Warsaw, Indiana. Um professor generoso pagou seus estudos para que fosse à faculdade, mas não concluiu o curso. Enquanto isso, uma de suas irmãs engravidou e outra fugiu de casa. Dreiser começou a trabalhar como cobrador de dívidas nos bairros pobres de Chicago, mas tinha um olhar aguçado, encorajado pelas coisas que lia nos jornais. Enviou vários artigos para um deles e se tornou um escritor de sucesso, e depois repórter e editor de uma revista. Tinha 28 anos quando começou a escrever Sister Carrie, sem uma ideia preconcebida, sem sequer saber do que trataria. Limitou-se a usar suas experiências e permitiu que a memória organizasse as coisas apenas com um leve tremor. Demorou quatro meses para terminar o livro, incluindo o abandono quando concluiu que era péssimo. No entanto, tinha pouco a perder. Carrie foi publicado em um mundo no qual um dos temas estabelecidos da ficção era o da virtude maculada que triunfa no final. Foi imediatamente retirado de circulação por razões morais. Dreiser conhecia uma realidade mais ampla e o rude mercantilismo de muitas cidades: Chicago, St. Louis, Pittsburgh, Nova York. Havia lido Nietzsche, Balzac e Zola, e estava fascinado por ideias vagas de um super-homem, assim como o deus do dinheiro e os reis do dinheiro. Sabia que “a vileza do indivíduo, para ser amada, deve estar revestida de glória”, disse Robert Penn Warren, e essa ambição ardeu nele durante toda a vida. Perdeu o Prêmio Nobel, que foi concedido a Sinclair Lewis. Dreiser era um escritor ruim, repetitivo, vulgar, previsível e falacioso, mas era também um grande contador de histórias, incansável e transbordante de ideias. Além disso, foi o primeiro escritor norte-americano a vir da pobreza. Samuel Clemens também, mas em um sentido diferente.
Por que falo tanto de Dreiser, uma presença forte e excessiva que acredita que a base materialista da vida é a verdade fundamental? Não é por isso. Os livros que escreveu se aproximam tanto de sua própria vida de cidades, bares, restaurantes e bordéis, sucesso e fracasso, do medo de não chegar a lugar nenhum, que é difícil saber o que acrescentou para transformá-los em ficção. O que é relevante é a sua visão da ordem estabelecida, o seu conhecimento da vida no estrato mais baixo, que tenta ascender através das impenetráveis camadas da sociedade, que tenta conquistar um lugar.
John O’Hara era filho de um médico, mas sempre se sentia como se viesse dos bairros pobres. Ressentia-se profundamente de não ter ido a Princeton ou Yale, de ser “diferente”. Era repórter e desenvolveu, como Dreiser, o hábito da observação minuciosa junto com um conhecimento nada romântico do comportamento humano. A desenvoltura na escrita e um bom faro para histórias são vantagens de uma vida dedicada ao jornalismo. Nas histórias de O’Hara existem centenas de personagens, e ele, muitas vezes, nem se dava ao trabalho de escrever mais do que uma nota, sem ir muito fundo. Seu método consistia em colocar uma folha em branco na máquina de escrever e imaginar dois rostos, talvez de alguém que tivesse visto no trem, e, sem saber nada sobre essas duas pessoas, fazia-as se encontrarem em um restaurante e deixava que falassem, de início sobre coisas triviais, por uma ou duas páginas, até começarem a ganhar vida. Era tudo através do diálogo. Enquanto conversavam, um ou outro acabaria dizendo algo tão revelador que, a partir daí, era apenas uma questão de até que ponto continuaria interessado em suas personagens. Era um grande escritor de diálogo, hábil em infâmias e nuances sociais – o lugar de cada um na escala – e as histórias lhe vinham em abundância.
O’Hara era minucioso com as personagens que apareciam e as elaborava cuidadosamente. Todos os detalhes pessoais estão lá: as roupas, e talvez até as lojas tinham sido compradas, os costumes, as virtudes, os defeitos. Ele recria a cena em tamanho detalhe que você é capaz de vê-la: o coldre de couro e as luvas do policial, o quepe, onde estacionou a viatura e por quê, e para quem abaixa a cabeça e de quem sabe algum episódio sórdido. Você vê a sociedade que O’Hara está descrevendo e treme só de imaginar onde vão parar esses preconceitos tão profundamente enraizados e os comentários inesperados.
Essas pessoas, essas personagens, são tiradas da vida? São baseadas, no físico e nos outros aspectos, em pessoas reais? Suas ações e algo do que dizem ou as características de sua fala são extraídas da vida? Acho que vocês sabem – mesmo entre os escritores há sempre alguma sensibilidade sobre isso, como se inspirar-se na vida, e admitir isso, fosse uma renúncia à arte – que muitas ou a maioria das personagens fictícias vieram da vida real.
James Salter (Trecho do livro que reúne três palestras ministradas em 2015, pouco antes de sua morte)
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