E, todavia, o respeito pelo livro não desapareceu. Somente nestes últimos tempos se começaram a distribuir livros gratuitamente e, aqui e ali, o livro está a tornar-se uma mercadoria vil. Por outro lado, dir-se-ia que até na Alemanha a alegria de possuir livros está a aumentar.
Que fique bem claro que estamos ainda distantes de uma recta compreensão do valor de tal posse. Aqueles que sentem relutância em gastar com os livros apenas a décima parte daquilo que reservam para a cerveja e o café-concerto são uma falange inumerável; enquanto, para outros, com uma mentalidade mais antiquada, o livro é uma espécie de relíquia para ter na melhor sala, a encher-se de poeira sobre o pequeno corte de felpa.
Andreas Nossmann |
Para o bom leitor, ler um livro significa ficar a conhecer a índole e o modo de pensar de um ser que lhe é estranho, procurar compreendê-lo e, se possível, torná-lo seu amigo. Na leitura dos poetas, especialmente, aquilo que ficamos a conhecer não é decerto apenas um pequeno âmbito de pessoas e de factos mas, em primeiro lugar, o próprio poeta, o seu modo de viver e de ver, o seu temperamento, a sua fisionomia interior e, por fim, também a sua escrita, os seus meios artísticos, o ritmo dos seus pensamentos e da sua língua. Há quem, de um modo ou de outro, seja conquistado por um livro, quem comece a conhecer e a compreender o seu autor, quem entabule uma relação com o mesmo: só a partir deste momento o livro começa a desenvolver sobre esse leitor o seu verdadeiro efeito. Por isso, este último não irá cedê-lo nem esquecê-lo, irá, pelo contrário, conservá-lo, ou seja, irá adquiri-lo, de modo a poder relê-lo, a poder reviver nesse mesmo livro, quando sentir necessidade disso. Quem compra com base nestes critérios, quem procura sempre para si próprio só aqueles livros cujo tom e cuja alma tenham conseguido tocar o seu coração deixará bem cedo de devorar livros indiscriminadamente e sem um fim preciso e, em vez disso, com o decurso do tempo, irá reunir em seu redor um círculo de livros queridos e preciosos do qual saberá extrair alegria e conhecimento e que, em qualquer circunstância, lhe serão mais frutíferos do que abandonar-se desordenadamente à leitura casual e irreflectida de tudo aquilo que lhe caia nas mãos.
Não existem cem ou mil «livros mais belos», há, para cada indivíduo, uma escolha particular baseada naquilo que lhe é afim e compreensível, caro e precioso. Por isso, é impossível constituir uma boa biblioteca sob encomenda; cada um de nós deve seguir as suas próprias exigências e preferências, e criar, pouco a pouco, uma coleção de livros, da mesma forma que se criam amizades. Então, uma pequena coleção poderá para o leitor significar o mundo inteiro. Os leitores verdadeiramente bons foram sempre aqueles cujas exigências se restringiram a pouquíssimos livros; uma simples camponesa, que não possui nem conhece nada além da Bíblia, leu-a mais a fundo e extraiu dela uma maior soma de saber, de conforto e de alegria do que um qualquer ricaço mimado poderá alguma vez obter da sua luxuosa biblioteca.
O efeito que os livros produzem tem algo de misterioso. Qualquer pai ou educador já fez a seguinte experiência: julgou dar, no momento certo, um livro óptimo e belíssimo a um rapaz ou a um adolescente para, a seguir, se aperceber de que se enganou. 0 facto é que todos, velhos ou jovens, devem encontrar o seu próprio caminho no mundo dos livros, ainda que o conselho e a vigilância amigável possam ter alguma utilidade. Há quem consiga tornar-se íntimo dos poetas muito cedo, enquanto outros precisam de longos anos antes de constatarem o quão doces e singulares tais leituras são. É possível começar com Homero e acabar com Dostoiévski ou vice-versa, é possível crescer na companhia dos poetas e acabar por passar para os filósofos ou vice-versa: os caminhos são inúmeros. Porém, só existe um critério, um único caminho para formar e desenvolver o próprio espírito através dos livros: é o da atenção para com aquilo que se lê, a paciente vontade de entender, a atitude humilde de quem não rejeita e permanece à escuta. Quem lê apenas por passatempo, por muito numerosas e belas que sejam as suas leituras irá esquecê-las rapidamente e dará por si pobre como dantes. Quem, pelo contrário, lê os livros como se ouvem os amigos, verá como esses revelarão os seus tesouros e se tornarão para ele uma posse íntima. Aquilo que ele ler não deslizará para longe nem será perdido, pelo contrário, irá permanecer e pertencer-lhe, irá alegrá-lo e consolá-lo, como somente os amigos sabem fazer.
Hermann Hesse, "Uma Biblioteca da Literatura Universal"
Nenhum comentário:
Postar um comentário