segunda-feira, abril 23

Escrever

A minha mãe ensinou-me a ler com quatro ou cinco anos, como ensinou os meus irmãos e, quase imediatamente, comecei a escrever. Não sei o que me levou a fazer isso: a impressão que eu tinha era a de entrar na carvoaria quase logo abaixo da casa dos meus pais. Vivíamos em Benfica, na altura um subúrbio pobre de Lisboa, cheio de pequenas casas e pequenos comércios, onde as minhas avós se passeavam como castelãs e nós éramos os “meninos”. Pegado à casa dos meus pais, com um jardim em torno, o cubículo do senhor Florentino, sapateiro, a martelar solas, de porta aberta, no meio de um grupo de cegos, dois ou três, ou seja imensos, a beberem de um garrafão de vinho tinto, isto para cima, na Travessa dos Arneiros e, abaixo, a carvoaria, uma espessura de escuridão com alguns brilhos de briquetes pelo meio e a voz do dono da loja, vinda de não sei onde. Nessa altura, para mim, tal como ainda hoje, escrever era como entrar na carvoaria sem sair do meu quarto: caminhava ao acaso naquele negrume, seguro que, se alcançasse um daqueles brilhos e o fechasse na mão, se me revelariam de súbito mistérios que eu desconhecia mas que tinha a certeza

(continuo a tê-la)

de serem importantíssimos. Sentia o ruído das pedras a desfazerem-se debaixo das solas, mas os brilhos escapavam--me sempre quando os julgava ao meu alcance. No meio disto havia um corvo

(outro mistério)

com uma das patas presa por um cordel a um pau e barricas com uma torneirinha de madeira que pingavam ainda. Até o postigo do tecto era negro, até no postigo do tecto havia brilhos, para além do vozeirão do dono da carvoaria:

– Vai para casa, rapaz.


O. Søndergård 

De modo que, como não podia estar sempre no sapateiro ou na carvoaria, comecei a ler livros nos intervalos da escola, porque o meu pai às vezes lia em voz alta para nós e nalgumas páginas, de quando em quando, encontrava de novo os brilhos. O meu pai lia poesia e lia prosa de autores portugueses e lembro-me que quase todas as páginas de Antero cintilavam. Para mais havia o retrato dele na sala, devido à admiração que o meu pai lhe tinha. Um homem loiro, de uma imensa beleza física, cujas feições brilhavam também. Desde criança que a minha admiração e o meu amor por ele se mantêm intactos, desde criança comecei a subir as infinitas escadas que me fariam chegar à sua altura. A poesia de Antero, a prosa de Herculano nos opúsculos, certos momentos de Garrett. Depois comecei a ler em Francês, depois comecei a ler em Inglês. Por volta dos catorze anos o meu pai emprestou-me uma segunda edição da Mort à Crédit, de Céline, e tudo aquilo brilhava. O meu entusiasmo foi de tal ordem que lhe mandei uma carta, para o editor, em que lhe pedia uma fotografia e lhe explicava a minha luta. O facto de ele me ter respondido foi uma das maiores alegrias da minha vida. Durante anos andei com o envelope, com o meu nome escrito por ele, no bolso, envelope que continua a ser um dos presentes mais preciosos que recebi. Na carta, numa folha tipo A4 amarela, ele avisava-me que talvez não fosse grande ideia eu escrever. Ocupa o tempo inteiro, dá poucas alegrias, os momentos de desânimo são os mais frequentes, é necessário abdicar de muita coisa e existe um sem número de passatempos agradáveis na vida. Para quê escolher o tormento e a angústia? Claro que nessa época não sentia tormentos nem angústias: isso veio depois, queria apenas fechar o brilho na palma da mão. O tormento e a angústia, esses, chegam devagarinho, pé ante pé, quando comparamos o que fizemos com o que queríamos fazer, começamos a pensar

– Não sou capaz não sou capaz

e voltamos ao princípio vezes sem conta. Tropecei, por essa altura, numa frase de Goethe que, até certo ponto, me ajudou. Dizia ele: “Homem quando compreenderás que é o facto de não conseguires o que queres que faz a tua grandeza?” E, com estas palavras dele na cabeça, fui continuando, deitando fora tudo o que rabiscava e recomeçando sempre. Levei vinte anos nisto, a repetir para dentro

– Não é o que eu quero, não é o que eu quero, não é o que eu quero

seguro, ainda hoje me pergunto porquê, que um dia o milagre ia acontecer e os meus pobres esforços seriam recompensados. Estou para saber de onde me chegava esta certeza, esta pretensão ingénua e infantil. O sapateiro morreu, a oficinazeca levou sumiço, o carvoeiro acabou, todos os brilhos deles se sumiram e eu continuava no quarto a escrever, depois na tropa, depois na guerra, depois na volta da guerra. A escrever e a rasgar, a escrever e a rasgar, a escrever e a rasgar. Por fim, inesperadamente, apareceu a Memória de Elefante, o primeiro trabalho que não me envergonhou totalmente, que apesar de não ser o que eu pretendia se começava a aproximar se mudasse tudo. Só ao fim de dois anos, e após muita resistência, um editor se decidiu a publicá-lo. Fez um lançamento com convites à imprensa, essas palermices todas, as únicas pessoas presentes na augusta cerimónia eram ele e eu, no meio de umas garrafas e de uns copos e de súbito o livro tornou-se um sucesso retumbante. Mas eu não estava contente: faltava--lhe o brilho, faltavam-lhe as cintilações, faltava a capacidade de verter a alma inteira nas páginas. Isso foi acontecendo devagar, muito devagar, enquanto eu lutava com a cada vez maior resistência das palavras. Veio uma carta de um agente americano dizendo que eu ia conquistar o mundo, eu que não conquistava nada, e me propunha um contrato. Depois começaram as traduções. Depois começaram os prémios, e eu sempre com a frase de Goethe na ideia: “Homem quando compreenderás que é o facto de não conseguires o que queres que faz a tua grandeza?” Depois mudei de agente. Mudei de editor em Portugal. Tornei-me isto. E, de há anos para cá

(eu não minto)

comecei, após infinitas correções, a gostar do meu trabalho. Não necessitava da opinião dos outros, que aliás nunca pedi: dissessem o que dissessem não seriam nunca tão exigentes quanto eu.

As críticas não me ralam e, como as críticas não me ralam, os elogios não me transportam. Julgo que conheço muito bem o que estou a fazer, julgo que conheço muito bem o que tenho de fazer, e não existe seja quem for que me desvie disso. Porque os outros não cresceram, como eu, entre um sapateiro e uma carvoaria, não viram martelar solas de capítulos, não entraram num negrume absoluto a fim de encontrar um brilhozinho de nada e o fechar na mão enquanto se revelam, de súbito, segredos que até então a gente desconhecia, nós que estamos encostados à cadeira da nossa mãe que nos ensina a juntar letras com o indicador, a minha mãe, uma rapariga de vinte e tal anos que repete connosco ata titi ata a tia atou, e nos manda brincar a seguir. Quem quer jogar às escondidas comigo antes da lição de amanhã?

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