”Dantes”, dizia a minha avó materna, cuja vida decorrera, essencialmente, na era dos dois últimos monarcas da Alemanha.
Sally Storch |
“Dantes, os meninos tinham juízo, obedeciam à gente crescida; havia respeito e ordem… Dantes, não nos faltava nada, e todas as coisas eram de ótima qualidade… Dantes, o Kaiser ocupava-se do povo, sabia o que era a responsabilidade, sabia punir os atrevidos… Dantes, no meu tempo, uma rapariga não viajava sozinha, nem de uma aldeia para outra aldeia próxima…”
E eu, ouvindo a lengalenga, reagia ora com curiosidade ora com enfado. Esses “dantes” da minha avó, em que os imperadores todo-poderosos usavam coroas na cabeça, se deslocavam em coches dourados, viviam em castelos, tinham filhos que se intitulavam príncipes e princesas, afiguravam-se-me esplendorosos, fantásticos, com o sabor das histórias dos Irmãos Grimm. Por outro lado, enfastiava-me o constante repetir daquela glorificação de uma época distante, glorificação que punha de rastos a época em que eu vivia, e isso desgostava-me.
À medida que fui crescendo e adquirindo conhecimentos, fiquei a saber que no “dantes” da minha avó uma grande parte da população era forçada a trabalhar de sol a sol e que só depois do famigerado Guilherme II se ter posto em fuga, face de um povo revoltoso, se institucionalizou o dia de trabalho de oito horas para todos os trabalhadores do país; que havia analfabetos e gente na penúria; que tensões constantes afligiam o povo; que se travou uma guerra com a França a que se seguiu, a ameaça de uma guerra mundial; que o “respeito” e a “ordem” tão louvados não passavam de medo das autoridades repressivas e que as raparigas, mulheres tão bem comportadas, não tinham direitos cívicos, que a minha própria avó teve de casar com o homem escolhido não por ela, mas pelo pai…
Terminada a Segunda Guerra Mundial, regressei à Alemanha depois de longa ausência. Apeei-me na cidade da Colónia, oitenta por cento destruída pelos bombardeamentos, um autêntico cemitério.
Como não conseguia orientar-me facilmente entre ruínas, montões de pedras e ruas sem nome, tomei um táxi. O motorista, palrador, iniciou uma conversa e não demorou em “deliciar-me” com o seu “dantes”. Esse “dantes” era o tempo de Hitler, em que ele ocupara um lugar de destaque. Dantes, éramos um grande povo, dantes não nos faltava nada; dantes, havia respeito e ordem, disso se encarregava o Führer…
Apesar do seu querido Führer… ter planeado e levado a cabo a guerra que lhe destruíra a cidade e o resto do país (não falando já nos outros países), apesar de todos os crimes cometidos e, nessa altura, em grande parte revelados, ele manifestava-se nostálgico pelo “dantes”.
“Dantes, no tempo de Salazar, havia respeito e ordem; dantes, os malvados eram punidos; dantes toda a gente comia bacalhau; dantes os meninos aprendiam uma imensidade de coisas, agora não aprendem coisa nenhuma; dantes, os estudantes universitários estudavam, agora são uns preguiçosos…” e “dantes, dantes…”!
Assim, de um modo semelhante, já falavam as avozinhas do século passado e, decerto, também as dos séculos mais recuados. Assim falam em todos os tempos as pessoas que no seu tempo “dantes” gozavam privilégios incompatíveis com novas situações. E também falam assim as pessoas com uma memória curta.
Se não se conseguir viver sem nostalgia, porque não a ter então dos rios límpidos, das ruas ladeadas de árvores, das praias sem petróleo derramado, da ausência de centrais atómicas e armas nucleares… Mas ter nostalgia dos ditadores, dos que nos oprimiam, não nos ajuda a melhorara as condições do nosso “agora”. Pois quanto ao dantes, seria mais sensato recear-se do que desejar que ele volte.
Quando, há dias, passei por um pedinte encostado a uma esquina, expondo as pernas nuas, cheias de feridas e estendendo a mão nesse medonho gesto de humildade que esconde um ódio surdo, ouvi dizer alguém: “é como dantes.
Ilse Losa, "À flor do tempo"
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