quinta-feira, maio 24

Assim começa o livro....

Caro Zuckerman,

No passado, como você sabe, os fatos não foram mais que anotações num caderno, meu aprendizado em matéria de ficção. Para mim, como para a maioria dos romancistas, todos os eventos genuinamente imaginativos têm origem lá, nos fatos, em coisas concretas e não ideológicas ou abstratas. No entanto, para minha surpresa, parece que agora comecei a escrever um livro realmente de trás para a frente, pegando aquilo que já imaginei e, por assim dizer, desidratando‑o a fim de restaurar minha experiência original, a realidade pré‑ficcional. Por quê? Será para provar que há um abismo significativo entre o escritor autobiográfico que dizem que sou e o escritor autobiográfico que de fato sou? Para provar que a informação que colhi da minha vida era incompleta na ficção? Se isso fosse tudo, não creio que teria me dado ao trabalho, uma vez que leitores argutos, caso tivessem interesse suficiente, seriam capazes de compreendê‑lo por conta própria. Nem ninguém encomendou este livro ou pediu uma autobiografia de Roth. A encomenda, se houve, foi feita trinta anos antes, quando certos líderes de minha comunidade judaica desejaram saber quem era o tal garoto que escrevia aquelas coisas.

Não, o impulso parece ter tido origem em outras necessidades e, ao lhe enviar este manuscrito — pedindo que me diga se acha que devo publicá‑lo —, cumpre explicar o que me terá levado a apresentar‑me assim sem disfarce. Até hoje sempre utilizei o passado como base para uma transfiguração, entre outras coisas como uma espécie de intrincada explicação de meu mundo para mim mesmo. Por que me expor sem transfigurações diante das pessoas, quando em geral, no mundo imaginário, me abstive de divulgar sem disfarces minha vida íntima perante uma audiência séria ou de me tornar uma personalidade midiática? No pêndulo da autoexibição, que oscila entre o agressivo exibicionismo de Mailer e o retraimento radical de Salinger, ocupo uma posição intermediária, tentando resistir, na arena pública, à curiosidade ou ao pavoneamento gratuitos sem fazer do sigilo e da reclusão algo sagrado demais. Sendo assim, por que decidir pela visibilidade biográfica agora, especialmente quando fui treinado para crer que a realidade independente da ficção é tudo que existe de importante e que os escritores deveriam se manter na sombra?

Bem, em primeiro lugar, a pessoa que pretendi tornar visível neste momento foi, sobretudo, eu mesmo. Depois dos cinquenta, precisamos encontrar meios de nos tornar visíveis a nós mesmos. Chega uma hora, como aconteceu comigo há alguns meses, em que me vi de repente num estado de absoluta confusão, sem entender o que antes era óbvio para mim: por que faço o que faço, por que moro onde moro, por que compartilho minha vida com a pessoa que vive comigo? Minha escrivaninha se tornou um lugar estranho, assustador, e, ao contrário de outros momentos similares em que velhas estratégias deixaram de funcionar — seja pelos problemas práticos do cotidiano que todos enfrentamos, seja pelas dificuldades inerentes ao ofício de escritor, e eu estava engajado ativamente num caminho de renovação —, fui levado a crer que não teria condições de me reconstruir mais uma vez. Não apenas me senti incapaz de me reconstruir, mas senti como se estivesse me desfazendo.

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