Acordava mais cedo para ler por mais tempo. A casa ainda dormia, e eu com os claros olhos das crianças conseguia ler mesmo sem acender a luz. Não havia abajur no grande quarto de quatro camas que eu dividia com minhas irmãs mais velhas. A luminosidade do dia apenas se insinuava pelas vidraças das janelas sem cortina da casa, e eu já estava de volta às aventuras dos livros que capturavam minha mente. Meu pai costumava dar uma incerta:
– De novo lendo no escuro. Levante, tome café e vá para um lugar iluminado. Você vai estragar a vista - dizia ele.
Forçada, saía do aconchego da cama, do escurinho e do livro e ia fingir interesse pela comida posta sobre a mesa. Apenas pelo tempo suficiente para voltar correndo para o livro. Nunca estraguei a vista. Só o tempo impôs o óculos para leitura. O que ficou foi a sensação que liga leitura a aconchego.
De vez em quando ouço que uma criança gostou de um livro meu e isso me deixa em deslumbramento. Outro dia uma amiga escreveu dizendo que o filho aprendera a ler, mas pede para ela ler antes de ele dormir. E ultimamente tem pedido sempre um livro meu com o qual está encantado.
O que faz nos dias de hoje uma criança leitora eu não sei. Sei que quero fazer parte da contra-corrente, contra-cultura, contra-tendência e passar para as crianças que vivem em volta de mim, e das que me leem, a magia do livro. Não é exatamente uma briga contra os devices eletrônicos, que são inevitáveis e úteis plataformas, mas o livro alma, uma história que fica, uma ligação que não se desfaz. É isso que busco.
O motorista que me levou na semana passada à minha cidade, em Minas, me falou que quando criança a sua mãe contava sempre a mesma história. Não sabia outras. Apenas aquela que ele nunca esqueceu. Não há nada de diferente nas crianças de hoje. As mudanças tecnológicas não alteraram sua natureza. Criança gosta de história. Hoje alguns livros não têm exatamente história. Querem tanto agradar às crianças que montam brincadeiras, mas não constroem enredo, não tentam envolver a criança numa sucessão de eventos. Fui com meu neto Daniel a uma livraria e ele, depois de muito procurar, reclamou que só tinha encontrado “livro-atividade". Ele queria uma história, que acabamos encontrando.
Outro dia fui visitar uma irmã e a neta dela de três anos ficou brincando perto enquanto a gente conversava. De repente, ela se levantou, pôs as mãos na cintura, e me disse:
– Você está aqui há muito tempo e até agora não me contou uma história.
Minha neta mais nova estava chorando sentido. Chorava por bons motivos, e se eu estivesse no lugar dela faria a mesma coisa. Eu a coloquei no colo e inventei uma história boba, meio real, de um jacu que atacava a horta da Chiquinha. E a mulher plantava outra horta em outro lugar e lá ia o jacu e comia tudo. E criei uma negociação entre Chiquinha e a ave e fui por aí em invencionices. O choro parou, ela enxugou as lágrimas e pediu para contar de novo. História é acalanto.
Recentemente meu marido inventou uma história para os netos maiores com um enredo tão cheio de desdobramentos inesperados que ele mesmo esqueceu. No novo encontro, os mais velhos disseram para os mais novos que o vovô sabia uma história incrível. Só que Sérgio tentava recuperar a ordens dos fatos e se atrapalhava. Os netos então contaram a história inteira e pediram para ele escrever para não esquecer mais.
Pais hoje preferem muitas vezes entregar um cala-boca eletrônico a contar uma história. Não quero parar a roda da tecnologia, mas continuarei convencida de que as histórias, os livros, os relatos da infância dos pais e avós, as criações mágicas a partir de retalhos da realidade são mais do que um passatempo. Vão fertilizar as mentes, vão construir sensações, vão atar relações para a vida inteira.
Miriam Leitão
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