Henrique Cardoso, "A arte da política — A história que vivi", fui assaltado por uma tremenda angústia: não há uma única linha de reflexão sobre políticas públicas de cultura em todo o calhamaço. O professor é um intelectual portentoso. O livro está pontilhado de citações de pensadores da mais variada estirpe, substanciando a teoria política que o professor procurou aplicar no exercício da Presidência da República. Max Weber, Karl Marx, Antonio Gramsci estão lá, junto com Erasmo de Roterdã, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes (que foi professor de FHC e aparece mais nessa condição), Habermas, Hegel, Kant, Keynes, Maquiavel (com destaque), Montesquieu, Pascal e os diletos amigos do autor, Alain Touraine e Manuel Castells. Além de punhados de autores brasileiros, citados aqui e ali, sempre reforçando algum ponto da análise do eminente sociólogo.
Certamente parte considerável do livro é dedicada à análise dos problemas da economia e da política institucional, como é de se esperar e certamente deve ser. Mas, se o professor cita tanto e é tão amigo dos livros e do saber, como explicar a ausência de qualquer reflexão sobre política pública de cultura? Na página 259 ele diz que “na Cultura, Weffort realizaria um excelente trabalho e acabou permanecendo os oito anos à frente do ministério”, e que a escolha do titular tinha sido “pessoal”. Mais nada disse sobre o assunto.
Não conheço nenhum, nenhum mesmo, que expresse o raciocínio de que, sendo os livros tão bons, tão importantes, deveriam estar acessíveis ao conjunto da população. Não, a sensação é a de ver Pombais redivivos esclarecendo D. José I: “Enterremos os mortos e cuidemos dos vivos”. Porque eles sabem o que fazer, como fazer e para onde ir. A autonomia de pensamento que obtiveram com a leitura não é algo que, no fundo, queiram ampliar para o povo, já que seu diálogo é com os demais intelectuais. Frederico II da Prússia buscava os conselhos de Voltaire e dos demais iluministas. O círculo do saber girava entre os ilustrados, que certamente queriam o melhor “para a humanidade”.
A administração FHC é retrato dessa mentalidade. As iniciativas em termos de bibliotecas foram espasmódicas. A mobilização em torno da Câmara Setorial do Livro produziu um anteprojeto de lei que repousou na gaveta do encarregado da área por seis anos, até ser ressuscitada — amputada — pelo senador José
Sarney. O programa de bibliotecas nos municípios foi pífio e irregular. Mas foi criada a Ordem do Mérito Cultural, que distribui medalhas para medalhões. Na prática, essa mentalidade deixa as verbas e a execução de uma política pública para o livro e a leitura relegada à última das prioridades.
Constata-se que, na posição dos políticos em relação à cultura, faltou a simples passagem para o utilitarismo. Uma filosofia que talvez não tivesse tanto charme quanto a francesa, mas que fez surgir na Inglaterra do século 19 o movimento das bibliotecas públicas, impulsionado pelo cartismo mas, no final das contas, ancorado na compreensão de que, nas bibliotecas, o valor social do livro para a sociedade se incrementa à medida que mais pessoas a ele têm acesso. Como bem assinala Matthew Battles no seu A conturbada história das bibliotecas, citando John Stuart Mill, “estas ofereciam um bem ainda maior que a razão: também ofereciam a felicidade”.
Parece que nossos políticos, em vez do utilitarismo inglês, se afeiçoam à matriz filosófica do personagem do "Outono do patriarca", de Gabriel Garcia Márquez, que era erudito e tinha lido tudo... no original francês. E como sabia de tudo, exercia o poder ditatorial sem remorsos. É o despotismo esclarecido que continua na moda.
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