sábado, junho 30

A cada uma seu jeito


Brochuras amadas

Simone Massoni
Simone Massoni
Confesso minha simpatia pelos livros brochados. Em sua postura natural, simples e modestos, eles chegam a me parecer mais úteis e prestativos. Abertas as páginas, logo denunciam o uso, como satisfeitos do serviço prestado - um quê de mulheres grávidas. Nas estantes não se comportam como jóias: sem falsas bondades nem ostentação nenhuma, ali se deixam ficar pacientes e amáveis, à espera do instante em que alguém irá tirar-lhes do bojo qualquer coisa de importante ou de inadiável
Valdemar Cavalcanti, "Jornal Literário"

Poltrona de leitura

Pascal Moguerou 

Assim começa o livro...

Por muito tempo, tanto no entender do governo quanto no da maioria da população, o subsídio aos transportes públicos foi associado à negação da liberdade individual. Como os vários serviços entravam em colapso duas vezes por dia na hora do rush, Stephen se deu conta de que era mais rápido caminhar de seu apartamento até Whitehall do que pegar um táxi. Era o fim de maio, pouco antes das nove e meia da manhã, e a temperatura já se aproximava dos trinta graus. Caminhou rumo à Ponte Vauxhall, passando por filas duplas e triplas de carros resfolegantes que não tinham para onde escapar, cada um com seu motorista solitário. Pelo jeito, a busca da liberdade era mais um exercício de resignação que de paixão. Dedos com anéis tamborilavam pacientemente no metal dos tetos quentes, cotovelos cobertos por camisas brancas despontavam através das janelas abaixadas. Viam-se jornais abertos sobre os volantes. Stephen andava rápido através da multidão, através da balbúrdia sonora vinda dos carros — jingles, locutores veementes de programas matinais, noticiários, alertas de trânsito. Os motoristas que não estavam lendo ouviam estoicamente. O avanço incessante da turba nas calçadas devia transmitir-lhes uma sensação de movimento relativo, de estarem deslizando aos poucos para trás.

Com ágeis manobras para ultrapassar os mais lentos, Stephen, embora de forma quase inconsciente, permanecia como sempre à espreita de crianças, em especial uma com cinco anos de idade. Era mais que um hábito, pois um hábito pode ser abandonado. Tratava-se de uma profunda predisposição, uma silhueta que a experiência tinha gravado em sua mente. Não era exatamente uma busca, apesar de haver sido uma caça obsessiva — e por muito tempo. Passados dois anos, só restavam vestígios daquilo: agora era uma grande saudade, uma fome insaciada. Havia um relógio biológico, impiedoso em seu progresso inescapável, que fazia com que sua filha continuasse a crescer, aumentasse e enriquecesse seu vocabulário antes bastante simples, se fortalecesse, firmasse seus movimentos. O relógio, fibroso como um coração, era fiel a uma condição permanente: ela estaria aprendendo a desenhar, começando a ler, perdendo um dente de leite. Ela seria alguma coisa bem conhecida, vista como algo rotineiro. Era como se a proliferação de ocorrências pudesse erodir aquele condicional, o biombo, frágil e semiopaco, cujos tênues tecidos de tempo e acaso a separavam dele: ela está de volta da escola e cansada, o dente foi posto sob o travesseiro, procura pelo pai.

sexta-feira, junho 29

Sexta de fazer feira


Bilhete

Marc Potts
Na grande sala de leitura da biblioteca da Universidade de Salzburgo, o bibliotecário enforcou-se no enorme lustre porque de súbito, como deixou escrito num bilhete, depois de vinte e dois anos de serviço não aguentava mais ordenar e emprestar livros que só haviam sido escritos para causar desgraça, com o que ele se referia a todos os livros já escritos
Thomas Bernhard, "O imitador de vozes"

Ilhas de salvação


Crônica de Natal

Todos os anos, por esta altura, quando me pedem que escreva alguma coisa sobre o Natal, reajo de mau modo. "Outra vez, uma história de Natal! Que chatice!" — digo. As pessoas ficam muito chocadas quando eu falo assim. Acham que abuso dos direitos que me são conferidos. Os meus direitos são falar bem, assim como para outros não falar mal. Uma vez, em Paris, um chauffeur de táxi, desses que se fazem castiços e dizem palavrões para corresponder à fama que têm, aborreceu-me tanto que lhe respondi com palavrões. Ditos em francês, a mim não me impressionavam, mas ele levou muito a mal e ficou amuado. Como se eu pisasse um terreno que não era o meu e cometesse um abuso. Ele era malcriado mas eu - eu era injusta. Cada situação tem a sua justiça própria, é isto é duma complexidade que o código civil não alcança. 

Jon Uban
Mas dizia eu: "Outra vez o Natal, e toda essa boa vontade de encomenda!" Ponho-me a percorrer as imagens que são de praxe, anjos trombeteiros, pastores com capotes de burel e meninos pobres do tempo da Revolução Industrial inglesa. Pobres e explorados, mas, entretanto, não excluídos do trato social através dos seus conflitos próprios, como se pode observar nos livros de Dickens. Atualmente as crianças estão mais isoladas dum processo de libertação adequada à sua normalidade. Não há qualquer lógica entre o pensamento que elas sugerem e a ação que lhes é imposta. Mas isto são considerações de Natal? Confessem que preferem uma história, uma coisa leve, talvez um pouco insensata e graciosa. Pois bem, falemos de pastores.

Um amigo meu passou uns dias na serra da Estrela para se curar duma depressão, uma dessas doenças que são produzidas pela sociedade burocrática onde todos se destroem em boa paz. Cuidou ele que a solidão e a vida rude o haviam de transformar. Mas o sofrimento, que não é disciplina nem necessidade, torna-se em crítica mesquinha. Ele andava pelos montes, com ar de censura e escândalo, perguntando às pessoas como podiam viver sem ir ao teatro e sem comer costelas panadas. Alumiando-se com azeite e deitando-se ao sol-pôr para não o gastar. Sobressaltava-o muito aquela imobilidade da serra com os rebanhos que pareciam pedras e os pastores com o cão de pêlo assanhado. Sentava-se ao lado deles e travava conversa.

— Olhe lá: você nunca sai daqui? — perguntava. E o pastor respondia:

— Eu, não senhor.

— E então, não se aborrece?

— Eu, não senhor — tornava o homem.

— Mas não se aborrece mesmo, sempre sozinho, a ver só ovelhas, aqui no cimo da serra? — insistia o meu amigo.

Então o pastor, apertado naquele inquérito, fez um esforço para compreender a desordem que provocava no espírito do homem da cidade, e disse, apontando, com um ligeiro movimento do queixo, as ovelhas:

— Ah! Elas às vezes bolem...

Queria desculpar-se, se o conseguiu ou não, não sei. O meu amigo não andou muito tempo por lá. Deu um jeito a um tornozelo e tiveram que o levar de padiola até à localidade, onde arranjou melhor transporte para o hospital. Disse daquilo cobras e lagartos. Também é preciso ver que não era homem para grandes descobertas. Até acha que as descobertas foram um erro histórico. Mas que tem o Natal a ver com isto? – direis. Descubram.
Agustina Bessa-Luís

quinta-feira, junho 28

Nosso herói


A mesa do café

Pruett Carter
Menino só sabe que é feio, no colégio, quando o padre escolhe os que vão ajudar à missa, os que vão sair de anjo, na procissão, e os que vão constituir a diretoria do Grêmio Mariano.

Eu soube que não era bonito em 1928, no Colégio Marista de Recife. Nunca fui escolhido. Mas sem a menor tristeza, sem concordar até. Aquele julgamento era precipitado, pois (estava convencido) ainda não havia nada de definitivo sobre o bonito e o feio, a beleza e a fealdade. Quais seriam as demarcações? A exata limítrofe, quem seria capaz de determinar? Se não existia a explicação lógica do feio e do bonito, a notícia da minha feiura não me causava mal nenhum. Ao contrário, livrava-me dos tributos que teria que pagar se fosse bonito, ajudando missa e saindo de anjo, à frente das procissões.

Na mesa do café, eramos cinco irmãos. Havia bolo de mandioca, requeijão, bananas fritas, pão torrado e bolacha d’água. Eramos cinco irmãos e, dos cinco, quatro eram bonitos. Vá lá, eu era o feio. Então, por que minha mãe gostava mais de mim? Ela, que nos zelava a todos, que nos conhecia pelo avesso e pelo direito, por que gostava mais de mim? De pena não era, porque pena é uma coisa e amor é outra. Menino conhece. O gesto complacente, por mais carinhoso, é sempre vacilante e triste. O gesto de amor chega a ser bruto, de tão livre, alegre e descuidado.

Minha mãe gostava mais de mim. Eu sabia, e ela sabia que eu sabia. Em tudo a nossa cumplicidade. Na fatia do bolo, na talhada de requeijão e no sobejo do seu copo d’água. Nossa cumplicidade até hoje existe, quando de raro em raro nos encontramos.

Da mesa do café víamos pela vidraça os canteiros de terra negra e as rosas de maio. Vinha o cheiro úmido da terra molhada, mais que o das pálidas rosas da minha infância.

Minha mãe e eu. Nossos olhos tão parecidos.

Minha mãe só tem um defeito. Não ser minha filha. Sempre foi metida a saber mais que eu.
Só soube que era feio quando amei pela primeira vez. Vi-me, então, corajosamente… e não era como gostaria de ser. No coração, um amor tão bonito. Ninguém iria acreditar, mesmo dizendo, mesmo eu explicando, mesmo eu jurando.

Apaguei a luz, tocava o concerto nro. 3 de Beethoven e, no fnal, apesar do tom ser menor, o lirismo era tão ardente que tudo ficou entendido, entre mim e a minha feiúra: eu a amava e não a abandonaria até a morte.

Antônio Maria, “Crônicas”

Velejar em mar de tubarões

Pawel Kuczynski

Um dia, um gato

Escritores são importantes na Rússia, sobretudo os do século XIX. Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov, Gogol, Gorki e alguns outros são patrimônio da Humanidade e uma espécie de interface da Rússia com o mundo. Museus, estátuas, estações de metrô, parques, muitos pontos vitais das grandes cidades levam o nome de um escritor.

Mas só na Rússia, especificamente aqui em São Petersburgo, um gato vive num museu representando um escritor, Joseph Brodsky, que ainda não tem o seu próprio museu. O gato e dois amigos estão hospedados no Museu Anna Akhmatova, considerada a maior poeta russa.

Anna era mentora de Brodsky, sabia que ele amava gatos e, inclusive, achava-o parecido com um gato e meio, como costumava dizer. Por causa dessa relação, os gatos vivem no Museu Anna Akhmatova e representam uma atração especial para quem conhece a história da poeta.

A presença dos bichos no museu, que na verdade é o apartamento na ala sul do Palácio Sheremetev, talvez seja o lado mais lírico e suave da história que o lugar conta.

Ana Akhmatova sofreu muito no período estalinista. Em primeiro lugar porque ao racionar a comida, os comissários politicos puniam os intelectuais mais independentes.

Um deles afirmou: é preciso dar o minimo de comida a esses intelectuais. Mas o que é o mínimo alguém perguntou? O bastante para que se lembrem do cheiro.

Ana conseguium um lugar no apartamento que, na verdade, era ocupado pelo pintor Nikolai Punin e sua mulher. O governo exigia que as pessoas tivessem um endereço e ela se abrigou ali.


O filho foi preso pela polícia de Stalin. A própria Anna Akhmatova uma vez recebeu a visita de Isaiah Berlin, que trabalhava na Embaixada da Inglaterra e a admirava muito.

Isso para o governo significa traição e venda ao estrangeiro. O comissarios da cultura afirmavam que ela era uma mistura de freira e prostituta.

Agora é interessante ver o museu dedicado a ela frequentado por muitos russos que procuram tomar conhecimento de sua história. Eles veem seu retrato pintado por Modigliani, que era amigo de Anna. E talvez fiquem perplexos como tudo isso pode ter acontecido no passado recente.

Alguém disse ironicamente que a Rússia trata muito bem os escritores, depois de mortos. Mas a verdade é que o país lê muito. Alguns livros chegaram a vender três milhões de exemplares.

Essa paixão não acabou na era digital. Apenas foi transferida para a internet. Existem hoje ainda as 115 mil bibliotecas abertas pelos comunistas. Mas num mundo virtual há 150 bibliotecas que funcionam intensamente, inclusive lançando novos títulos.

O gato no museu de Anna Akhmatova, por exemplo, representa um escritor, Brodsky, que passou cinco anos um campo de prisioneiros no Ártico foi praticamente expulso da Rússia e passou a morar nos Estados Unidos. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.

Outro dia, constatei que há Rússia tem tantas estátuas que ate uma espécie de cemitério delas foi criado nos fundos da galeria Tretiakov em Moscou. E nele há uma estatua do mais querido de todos os poetas russos: Alexander Pushkin, que tem museus e homenagens por toda parte.

Enfim é tão grande a celebração da literatura dos mortos que não me espantaria se o gato do museu um dia também arriscasse a lançar um romance pensando na vida póstuma.

quarta-feira, junho 27

Segurança para ler com os amigos


A obra segundo o autor

Mudei-me para o Rio, ou antes, mudaram-me para o Rio, onde existo agora. Aqui fiz o meu último livro, história mesquinha - um casal vagabundo, uma cachorra e dois meninos
Graciliano Ramos, Vamos Ler (1939)

Tudo vale a pena que a leitura não é pequena

Brian Morgan

Assim começa o livro...

Segundo a lenda da família, o avô de Ferguson partiu a pé de sua cidade natal, Minsk, com cem rublos costurados no forro do paletó, viajou para o oeste, rumo a Hamburgo, passando por Varsóvia e Berlim, e depois comprou uma passagem num navio chamado Imperatriz da China, que atravessou o Atlântico debaixo de brutais tempestades de inverno e chegou ao porto de Nova York no primeiro dia do século XX. Enquanto esperava para ser entrevistado por um funcionário do serviço de imigração na ilha Ellis, entabulou conversa com um colega judeu russo. O homem lhe disse: Esqueça o nome Reznikoff. Não vai servir de nada para você aqui. Você precisa de um nome americano para a sua vida nova nos Estados Unidos, alguma coisa com um bom toque americano. Como, em 1900, o inglês ainda era uma língua estranha para Isaac Reznikoff, ele pediu uma sugestão a seu compatriota, mais velho e mais experiente. Diga a eles que você é Rockefeller, disse o homem. Assim, não pode dar errado. Passou uma hora, depois mais uma hora e, quando Reznikoff, de dezenove anos, sentou‑se para ser interrogado pelo funcionário do serviço de imigração, tinha esquecido o nome que o homem havia sugerido. Qual seu nome?, perguntou o funcionário. Depois de dar um tapa de frustração na cabeça, o esgotado imigrante exclamou em iídiche: Ikh hob fargessen! (Eu esqueci!) E foi assim que Isaac Reznikoff começou sua vida nova nos Estados Unidos como Ichabod Ferguson.

Ele passou maus bocados, sobretudo no início, mas mesmo depois, quando já não era mais o início, nada corria do jeito que tinha imaginado em seu país adotivo. É verdade que conseguiu arranjar uma esposa assim que completou vinte e seis anos, e também é verdade que essa esposa, Fanny, cujo sobrenome de solteira era Grossman, lhe deu três filhos vigorosos e saudáveis, mas a vida nos Estados Unidos continuou a ser uma luta para o avô de Ferguson, desde o dia em que desembarcou do navio até a noite de 7 de março de 1923, quando encontrou uma morte prematura e inesperada, aos quarenta e dois anos de idade — morto por um tiro, num assalto, no depósito de artigos de couro em Chicago, onde estava empregado como vigia noturno. Nenhuma foto dele sobreviveu, mas, segundo todos os relatos, era um homem grande, de costas fortes e mãos enormes, sem instrução, sem qualificação, o mais completo exemplo do simplório ignorante. Em sua primeira tarde em Nova York, esbarrou com um vendedor ambulante que apregoava as maçãs mais vermelhas, redondas e perfeitas que ele já tinha visto. Incapaz de resistir, comprou uma e mordeu com sofreguidão. Em vez da doçura que esperava, o gosto era amargo e esquisito. Pior ainda, a maçã era enjoativamente mole e, depois que os dentes atravessaram a pele, o interior da fruta se derramou pela frente de seu casaco, no esguicho de um líquido vermelho claro, pontilhado por uma porção de caroços iguais a bolinhas. Esse foi seu primeiro gosto de Nova York, seu primeiro encontro, para nunca mais esque cer, com um tomate de Jersey.

Portanto, não um Rockefeller, mas um trabalhador braçal de ombros largos, um gigante judeu com um nome absurdo e um par de pés indóceis, que tentou a sorte em Manhattan e no Brooklyn, em Baltimore e em Charleston, em Duluth e em Chicago, que arranjou diversos empregos: estivador, marinheiro num navio-petroleiro dos Grandes Lagos, treinador de animais num circo itinerante, operário de uma linha de montagem numa fábrica de latinhas, motorista de caminhão, cavador de valas, vigia noturno. Apesar de todo seu esforço, nunca recebeu mais do que tostões e mixarias e, assim, as únicas coisas que o pobre Ike Ferguson deixou de herança para a esposa e os três filhos foram as histórias que contava para eles, das aventuras errantes de sua juventude. Ao longo da vida, as histórias não valem menos do que o dinheiro, mas no calor da hora elas têm limitações decisivas.

terça-feira, junho 26

Navegar é preciso

Eugénie Varone

Consolação

Kristina Vardazaryan
Agora, quando acaba de subir a escada do metrô Consolação, espanta-o ver que ninguém nota a ausência de algo sem o que a Paulista não pode ser a Paulista. Ali está o sol, as calçadas são as mesmas e também continua lá a livraria onde ele apreciaria ser encarcerado. Mas ele não vai entrar no Conjunto Nacional, ele não entra mais. Falta ali aquilo que também falta no lado de fora: aquela presença radiosa percorrendo as estantes, procurando como um passarinho inquieto livros de Philip Roth, Janet Frame, Zo Helller, Salinger e saindo depois com eles na mochila, como certa vez, para o esplendor da tarde e para o eterno tormento da memória.
Raul Drewnick

Aprendizado na pescaria


Assim começa o livro...

Se, num dia de sol, você subir o caminho íngreme que sai da pequena ponte de madeira que por aqui ainda chamam de “Ponte da Hesitação”, não terá de andar muito para avistar o telhado de minha casa entre os topos de duas árvores de gingko. Mesmo que não ocupasse uma posição tão proeminente no morro, a casa se destacaria de todas as outras da vizinhança, de forma que, ao subir o caminho, você poderá se ver perguntando que tipo de homem rico é o dono dela.

Porém eu não sou, nem nunca fui, um homem rico. O ar imponente da casa se justifica talvez se eu informar que ela foi construída por meu predecessor e que ele era ninguém menos que Akira Sugimura. Claro, você pode ser novo na cidade, nesse caso o nome de Akira Sugimura não vai te dizer nada. Mas mencione esse nome para qualquer pessoa que viveu aqui antes da guerra e vai descobrir que, durante trinta e tantos anos, Sugimura esteve inquestionavelmente entre os homens mais respeitados e influentes da cidade.

Se eu lhe disser isso e, quando chegar ao alto do morro, você parar e olhar o belo portão de cedro, a grande área cercada pelo muro do jardim, a cobertura com suas telhas elegantes e a cumeeira entalhada com estilo apontando para a paisagem, você pode muito bem se perguntar como eu pude comprar uma propriedade dessas, sendo, como eu digo, um homem de meios apenas medianos. A verdade é que comprei a casa por uma soma nominal — uma quantia que não era provavelmente nem metade do valor real da propriedade naquela época. E isso foi possível devido a um processo muito curioso — alguns diriam tolo —instigado pela família Sugimura durante a venda.

Isso já é coisa de uns quinze anos. Naquela época, quando minhas condições pareciam melhorar a cada mês, minha mulher começara a me pressionar para encontrar uma casa nova. Sempre previdente, ela argumentara que era importante termos uma casa à altura de nosso status — não por vaidade, mas em função das perspectivas de casamento de nossas filhas. Eu até via sentido naquilo, mas como Setsuko, nossa filha mais velha, ainda tinha apenas catorze ou quinze anos, não pensei nesse assunto com nenhuma urgência. No entanto, durante um ano talvez, sempre que ouvia falar de uma casa adequada à venda, me lembrava de tomar informações. Foi um de meus alunos quem primeiro trouxe a meu conhecimento que, um ano depois da morte de Akira Sugimura, sua casa seria posta à venda. Parecia absurdo que eu viesse a comprar uma casa daquelas e atribuí a sugestão ao respeito exagerado que meus alunos sempre tiveram por mim. Mas mesmo assim fui atrás de informações e obtive uma resposta inesperada.

Uma tarde, recebi a visita de duas senhoras altivas, grisalhas, que eram as filhas de Akira Sugimura. Quando expressei minha surpresa por receber tamanha atenção de uma família tão distinta, a mais velha das irmãs me disse friamente que não tinham vindo por mera cortesia. Que ao longo dos meses anteriores tinham recebido um bom número de pedidos de informações sobre a casa de seu falecido pai, mas a família decidira recusar todos, menos quatro solicitações. Essas quatro solicitações tinham sido selecionadas cuidadosamente pelos membros da família com base exclusivamente em bom caráter e realizações.

segunda-feira, junho 25

Leitura matinal


2666

Keith Larson.
Sua própria vida, conforme explicava, havia sido um aprendizado constante. Não aprendeu a ler nem a escrever até os vinte anos, para dar um número redondo. Nascera em Nácori Grande e não pôde ir à escola como uma menina normal porque sua mãe era cega, e ela precisou cuidar dela. De seus irmãos, dos quais guardava uma lembrança vaga e carinhosa, não sabia nada. O vendaval da vida foi levando eles para os quatro cantos do México e provavelmente já estavam debaixo da terra. Sua infância, apesar dos apertos e das desventuras próprias de uma família camponesa, foi feliz. Adorava o campo, dizia, se bem que agora me incomode um pouco porque me desacostumei com os bichos.

A vida em Nácori Grande, embora muitos custem a acreditar, podia ser às vezes muito intensa. Cuidar da mãe cega podia ser divertido. Cuidar das galinhas podia ser divertido. Lavar roupa podia ser divertido. Cozinhar podia ser divertido. A única coisa que lamentava era não ter ido à escola. Depois se mudaram, por causas que não vinham ao caso, para Villa Pesqueira, onde sua mãe morreu e ela, oito meses depois do falecimento, se casou com um homem a quem quase não conhecia, uma pessoa trabalhadora, honrada, respeitosa com todo o mundo, um homem bem mais velho do que ela, diga-se de passagem, que na hora de ir para o altar tinha trinta e oito anos e ela só dezessete, quer dizer, um homem vinte e um anos mais velho!, que trabalhava com compra e venda de animais, sobretudo cabras e ovelhas, se bem que de vez em quando também vendia ou comprava gado bovino e até suíno, e que por essas circunstâncias de trabalho tinha de viajar constantemente pelas cidades da região, como San José de Batuc, San Pedro de la Cueva, Huépari, Tepache, Lampazos, Divisaderos, Nácori Chico, El Chorro e Napopa, por estradinhas de terra ou trilhas de animais e por atalhos que margeavam aquelas montanhas intrincadas. Seus negócios não iam mal. Às vezes ela o acompanhava em alguma das suas viagens, não muitas, porque era malvisto um comerciante de gado viajar com uma mulher, ainda mais se fosse sua própria mulher, mas em algumas o acompanhou. Era uma oportunidade única de ver o mundo. Para ver outras paisagens que, embora pareçam a mesma, se você olhasse bem, com os olhos bem abertos, se revelavam no fim das contas muito diferentes das paisagens de Villa Pesqueira. A cada cem metros o mundo muda, dizia Florita Almada. Isso de que há lugares iguais a outros é mentira. O mundo é como um tremor.

Claro, ela gostaria de ter tido filhos, mas a natureza (a natureza em geral ou a natureza do seu marido, dizia rindo) privou-a dessa responsabilidade. O tempo que teria dedicado ao bebê empregou em estudar. Quem a ensinou a ler? As crianças me ensinaram, afirmava Florita Almada, não existe melhor professor do que elas. As crianças, com seus abecedários, que iam à sua casa pedir que lhes desse pinole. A vida é assim, justo quando acreditava que se desvaneciam para sempre as possibilidades de estudar ou voltar aos estudos (vã esperança, em Villa Pesqueira achava-se que Escola Noturna era o nome de um bordel nos arredores de San José de Pimas), aprendeu, sem maiores esforços, a ler e a escrever. A partir desse momento leu tudo o que lhe caía nas mãos. Num caderno anotou as impressões e pensamentos que suas leituras lhe produziram. Leu revistas e jornais velhos, leu programas políticos, que de quando em quando jovens de bigode vindos em caminhonetes entregavam no vilarejo, e jornais recentes, leu os poucos livros que pôde encontrar, e seu marido, depois de cada ausência traficando com animais nos lugares vizinhos, se acostumou a lhe trazer livros que às vezes comprava não por unidade mas por peso. Cinco quilos de livros. Dez quilos. Uma vez chegou com vinte quilos. Ela não deixou de ler um só e de todos, sem exceção, extraiu algum ensinamento. Às vezes lia revistas que chegavam da Cidade do México, às vezes lia livros de história, às vezes lia livros de religião, às vezes lia livros licenciosos que a faziam corar, sozinha, sentada na mesa, as páginas iluminadas por um abajur cuja luz parecia bailar ou adotar formas demoníacas, às vezes lia livros técnicos sobre o cultivo de vinhedos ou sobre a construção de casas pré-fabricadas, às vezes lia histórias de terror e de assombração, qualquer tipo de leitura que a divina providência pusesse ao alcance da sua mão, e com todos eles aprendeu alguma coisa, às vezes muito pouco, mas alguma coisa ficava, como uma pepita de ouro numa montanha de lixo, ou para afinar a metáfora, dizia Florita, como uma boneca perdida e reencontrada numa montanha de lixo desconhecida.

Enfim, ela não era uma pessoa instruída, em todo caso não tinha o que se chama de educação clássica, pelo que se desculpava, mas tampouco se envergonhava de ser o que era, pois o que Deus tira de um lado a Virgem repõe do outro, e quando isso acontece a gente tem de estar em paz com o mundo. Assim passaram os anos.

Seu marido, por essas coisas misteriosas que alguns chamam de simetria, um dia ficou cego. Por sorte ela já tinha experiência em cuidado com os deficientes visuais e os últimos anos do comerciante foram sossegados, pois sua mulher cuidou dele com eficiência e carinho. Depois ficou sozinha, e por então já havia feito quarenta e quatro anos. Não se casou de novo, não porque faltassem pretendentes, mas porque tomou gosto pela solidão. O que fez foi comprar um revólver calibre 38, porque a escopeta que seu marido lhe deixou de herança lhe pareceu pouco manejável, e dar, momentaneamente, seguimento aos negócios de compra e venda de animais. Mas o problema, explicava, é que para comprar e sobretudo para vender animais era necessária certa sensibilidade, certa educação, certa propensão à cegueira que ela de modo algum possuía.

Viajar com os animais pelas trilhas dos morros era muito bonito, praceá-los no mercado ou no matadouro era um horror. De modo que em pouco tempo abandonou o negócio e continuou viajando, em companhia do cachorro de seu falecido marido, do seu revólver e às vezes dos seus animais, que começaram a envelhecer com ela, mas desta vez fazia isso como uma curandeira transumante, das tantas que há no bendito estado de Sonora, e durante as viagens procurava ervas ou escrevia pensamentos enquanto os animais pastavam, como fazia Benito Juárez quando era um menino pastor, ai, Benito Juárez, que grande homem, que correto, que íntegro, mas também que menino mais encantador, desse pedaço da sua vida se falava pouco, em parte porque pouco se sabia, em parte porque os mexicanos sabem que quando falam de crianças costumam dizer besteiras ou cafonices.

Roberto Bolaño

domingo, junho 24

Domingão de leitura


Rua morta

Longa rua distante de subúrbio,
velha e comprida rua não violada pelos prefeitos,
passo sobre ti suavemente neste fim de tarde de domingo.

Sinto-te o coração pulsando oculto sob as areias.
O sangue circula na copa imensa dos flamboyants.

Tropeço nos passos perdidos há muito nestas areias,
onde as pedras não vieram ainda sepultá-los.
Passos de homens que jamais voltarão.

Ó velhos chalés de 1830,
eterniza-se entre as paredes o eco das vozes de invisíveis habitantes.
Mãos de sombras femininas abrem de leve janelas no oitão.

Há um cheiro de jasmins e resedás
que não vem dos jardins abandonados,
mas dos cabelos dos fantasmas das moças de outrora.

Mauro Mota

Quando desligada...


O maluco

O fato é que o médico dramatizou tanto que Odésio saiu, de lá, impressionado. Não tinha dinheiro; foi ao patrão, que era um santo homem, mostrar a receita. O patrão não teve dúvidas:

– Passa no Caixa e faz um vale. E, querendo, fica em casa uns dias. Com a saúde não se brinca.
Darren Thompson

Levou Odésio até a porta do gabinete, repetiu:

– Em primeiro lugar, a saúde.

Do escritório,Odésio rumou, amargurado, para a drogaria. Enquanto era servido, pôs-se a pensar: “Todo mundo tem sífilis e ninguém se trata. Estão me fazendo de palhaço.” Pagou a conta, apanhou o embrulho e saiu. Mas ia resmungando, interiormentre; “Esse negócio de injeção é muito chato.” Sem querer, começou a reexaminar a hipótese de de loucura, com que o doutor ameaçara. Achou, na situação, uma graça triste: “Imagine eu, maluco, rasgando dinheiro.” Então, não tendo para onde ir, pensou numa visita à casa de Abelardo. Àquela hora, a mulher do amigo estaria na cozinha. Odésio coçou a cabeça, temeroso de uma inconveniência. Mas como se sentia, para todos os efeitos, doente, e grave, decidiu-se: “Vou lá, sim.”Tomou um lotação e, no caminho, já achava um ótimo negócio aquela doença que permitiria aquela visita à Laurinha, na ausência do marido. Lembrou-se da última vez que a vira. Suspirou no lotação: “A besta do Abelardo não sabe a mulher que tem!”.
Nelson Rodrigues, "A vida como ela é... "

sábado, junho 23

Perdida no tempo


Fita verde no cabelo

Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam.

Todos com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita inventada no cabelo.

Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia.

Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.

Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo.

Então ela, mesma, era quem se dizia:

– Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou.

A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são.

E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vindo-lhe correndo, em pós.

Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa.

Vinha sobejadamente.

Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela, toque, toque, bateu:

– Quem é?

– Sou eu... - e Fita–Verde descansou a voz. – Sou sua linda netinha, com cesto e com pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou.

Vai, a avó difícil, disse: – Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus ate abençoe.

Fita–Verde assim fez, e entrou e olhou.

A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar apagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo.

Dizendo:

– Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo.

Mas agora Fita–Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:

– Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!

– É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta.... – a avó murmurou.

– Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados.

– É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta... - a avó suspirou.

– Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido?

– É porque já não estou te vendo, nunca mais, minha netinha.... - a avó ainda gemeu.

Fita–Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez. Gritou: – Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!...

Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo. 

Guimarães Rosa

sexta-feira, junho 22

Pronta para o fim de semana

 Lisandro Rota

Viagens em livrarias

China
Ao pegar num livro, ao colocá-Io na prateleira, ou ao folheá-Io apressadamente em minha casa nas mesas, nas cadeiras, nas camas e tapetes, toda a espécie de livrarias, com horas de páginas entreabertas, de férias e de passeio ocorre ao meu espírito. Gosto dos livreiros e das livrarias, e de encontrar na ponta dos dedos que voltam as páginas a preguiça sussurrante das longas pausas sob as galerias do Odéon, nas prateleiras de alfarrabistas gigantes da Quinta Avenida em Nova lorque, ou entre as montras de Brentano's, ornadas de livros luzidios como caixas de conserva Libby's, perto da Quinta Avenida, ou em Piccadilly, no grande Faber and Faber de Londres, onde existem as mais belas prateleiras de livros infantis do mundo, ou no Fritze em Esto­colmo, cuja vitrina é lacada como o casco de um iate que estivesse ancorado no Fredsgatan, ou o Mondadori na Galeria de Milão (Pettt Cheyney, em italiano, e Leonardo de Vinci, em inglês, acasalam bem nas prateleiras), ou então essa livraria de Lausana, já desaparecida, que se encontrava ao lado de Pepinet como um refúgio de alta montanha para livros raros.
Claude Roy, "Diário de viagens"

Leitura de metrô

É preciso agarrar a oportunidade pelos cabelos mas não esquecer que ela é careca

Andei agora uma série de dias no estrangeiro e o que mais me surpreendeu foi não ter visto uma única pessoa de iphone na mão, a carregar nas teclas, alheada do mundo. Eu como todos os dias fora, num restaurante aqui perto, vou e venho a pé, cruzo-me com gente na rua, passo por uma paragem de autocarro e é extraordinário o que Portugal mudou. Por exemplo o que mais me aborrecia, nos sítios onde almoçava e jantava, eram os guinchos de meninas e meninos a correrem entre as mesas, enlouquecendo todo o mundo sob o olhar desvelado ou ausente dos pais. Não é que as crianças se tenham tornado bem educadas, isso seria pedir demais aos lusitanos, é que em lugar de gritarem, incomodarem e empurrarem os vizinhos estão caladinhas ao lado dos adultos, cada uma com o seu iphone, a carregarem nas teclas num autismo absoluto, concentradas num jogo qualquer. Como os pais não conversam com elas ou entre si, ocupados a comerem, de olhos no prato

(se calhar existem iphones 
escondidos no puré)

completamente sozinhos, 
tenho a sensação de estar, com o bacalhau à Brás em frente, num silêncio de capela. A mesma coisa nos transportes, a mesma coisa nas esplanadas, a mesma coisa nas paragens de autocarro

(há semanas, ao passar por uma delas, vi sete pessoas sete à espera, todas de olhos baixos, a picarem o seu quadradinho de plástico com o indicador, alheadas do universo. Não somos um país, somos um enorme convento de carmelitas autistas em silenciosa comunicação com o seu écranzinho que os põe em contacto com um estranho universo inexistente, cheio de palavras e imagens irreais. Os humanos já não falam: dialogam em silêncio com o nada, isto é com o que pensam ser os outros e o mundo, trocando banalidades arrasadoras com criaturas e acontecimentos tão fantasmáticos quanto elas. Não se relacionam entre si: relacionam-se com silhuetas vazias, interessam-se por acontecimentos ocos, os afectos transformam-se em siglas, a ternura em bjs sem carne, meia dúzia de consoantes e de k estratégicos substituem os sentimentos e as emoções. Os corpos transformam-se em silhuetas, a partilha em frases feitas, o amor no supermercado do face book onde as pessoas se apaixonam por criaturas irreais, ou seja fotografias minúsculas e ideias sem carne, encharcando os iphones de lugares comuns patetas nos quais se sente o enorme peso de uma solidão irremediável. Tenho muito dó desses infelizes fantasmas procurando desesperadamente outros infelizes fantasmas na esperança de uma relação fantasmática que, ao fim e ao cabo, não é possível porque não se pode amar uma ausência sem espessura de gente. O poeta Fernando Pessoa, por exemplo, parece-me não uma criatura mas um nada falante. Não é ao artista que me refiro agora, é ao homem que tentava existir através da bebida na esperança de obter, por intermédio de um substituto do leite materno, a densidade carnal que não tinha e, portanto, os seus escritos não respiram. Fingem que respiram, num sofrimento imenso. As criaturas dos iphones não pensam, não lhes interessa pensar, interessa-lhes existir no vazio, relacionando-se com vazios tão brancos quanto os deles, procurando desesperadamente bjs sem substância. Conversam com ninguéns em diálogos de uma pobreza afectiva absoluta que é o único anteparo de que são capazes para tentarem lutar contra a depressão, porque ao princípio não era o Verbo, era a Depressão, e as nossas almas tão sozinhas, tão pobres. O que queremos de facto, o que esperamos ainda é encontrar um modo de nos acharmos menos desamparados, menos indefesos, menos perdidos, e esperamos, como crianças que esqueceram o caminho para casa, que um bj nos aponte o caminho. E não aponta porque nenhum bj se transforma em beijo, é uma metamorfose impossível. Toma o meu bj, dá-me o teu bj em troca. E ficamos cada um com o bj do outro na palma a pensar

– O que faço eu com isto?

enquanto as duas letras se dissolvem ou se evaporam num écranzinho que não responde. 
Na fila dos automóveis de regresso a casa ao fim do dia vemos as pessoas sentadas no carro, olhando fixamente em frente, imóveis e sérias. Se repararmos nos olhos delas estão todas mortas atrás dos olhos. Não faz mal: o iphone está aqui no bolso; em chegando a casa ligo-o e encontro outros desgraçados, tão defuntos quanto eu, à espera de um colo que não existe. Há uma ausência apenas e lá ao fundo, na cozinha, uma torneira que não veda bem a pingar no lava-loiças o ritmo angustiado do nosso desespero. Talvez um bj ajude um bocadinho a torná-lo suportável: é que somos tão pobres que nos contentamos com uma côdeazita de nada. E amanhã encontraremos na fronha algumas migalhas que sobraram. Se as metermos na boca têm um gosto a lágrimas.

quinta-feira, junho 21

Aula de pescaria


Vida longa!

Deixar de ler é a morte instantânea. Um mundo sem livros é um mundo sem atmosfera, como Marte. Um lugar impossível, inabitável. De maneira que muito antes da escrita vem a leitura. Um leitor tem uma vida muito mais longa que outras pessoas, porque não morre antes de acabar o livro que está lendo
Rosa Montero

Tentação


Portas cerradas

A placa com “Aluga-se” em letras garrafais encerrava uma história. O trânsito lento e o sinal fechado mais adiante facilitavam a leitura daquele anúncio incômodo dependurado no umbral. A papelaria de tantos anos fechara finalmente suas portas, depois de uma lenta agonia.

Não sobrara alternativa de mudança para um novo endereço. Os donos, um casal avançado na idade, estavam cansados e se diziam incapazes de enfrentar as modernizações exigidas pela competição do mercado. Aprenderam a jurar que agora preferiam destinar tempo integral aos filhos e netos, mas estava claro que os dois não sabiam o que fazer com aquela tristeza comovente instalada nos olhos. Pareciam atarantados na soleira do desconhecido imposto ou escolhido — tinha cá minhas dúvidas —, prestes a se iniciar.

Eu fora avisado algumas semanas antes, mas sempre via o ritual do desmonte andando a passos tão lentos que até consegui enxergar notas de esperança. Agora, estava claro que tudo não passou da tal “melhora da morte”, quando o doente parece haver recuperado milagrosamente suas forças, mas sai da vida em seguida.

Diante daquela placa de folha de flandres sobre a armação de madeira me dei conta do fim. Estavam mortas as possibilidades de novas conversas, de reabrir lembranças deliciosas, do cafezinho fumegante em determinado momento da tarde — segredo restrito a meia dúzia —, que poderia vir acompanhado ora de biscoitos, ora de bolinhos, ora de bolachas, ora de tapiocas, ora de quase todos. Tudo agora ficaria finito numa espécie de arquivo morto da minha memória.

Retirou-se de cena o enorme balcão onde falávamos animados de grampeadores Carbex, inigualáveis em robustez e precisão nos tempos áureos, e daquele outro, enorme, batizado de Ricardão por analogias a poderio, eficiência e sexo. Das almofadas para carimbos, dos tinteiros e suas tintas perfilados ao lado de mata-borrões. Das esponjas embebidas em glicerina ou água, para umedecer dedos prestes a manusear páginas ou cédulas. Dos belíssimos frascos de vidro para armazenar cola, cujas tampinhas ofereciam o pincel providencial para espalhar seu conteúdo sem lambuzar tudo ao redor.

Dos pesos de vidro, transparentes ou cheios de adereços internos — onde se podia mandar aplicar nomes e mensagens —, que serviam para domar o espírito brincalhão do vento sobre os papéis. Dos mais diversos modelos de cadernetas. Dos lápis Hidrocor, grande novidade na época do lançamento. Das borrachas Mercur de duas cores, para apagar tinta (metade azul) e grafite (metade vermelha), cuja eficiência podia até arrancar literalmente os erros do papel e deixar buracos no lugar.

Dos suportes de baquelita para rolos de fita Durex, produto que ficou tão conhecido que a marca virou substantivo de fita adesiva no dicionário — eu nunca consegui entender o mistério que mantinha a cola eficiente naquele pedaço que ficava esticado entre o rolo e a serra de metal para corte. Dos apontadores de lápis presos às mesas, cujo movimento da manivela criava cones perfeitos.

Dos rotuladores Dymo, Sylvapen, Rotex, Motex, Astro para imprimir fitas de vinil autoadesivas, coloridas, suprassumo do capricho em qualquer uso, de trabalhos escolares a arquivos das empresas — depois foram lançadas algumas eletrônicas, com teclado para digitação. Para minha surpresa, ainda existem no mercado alguns bem caros, embora a Dymo mantenha modelos mais em conta.

Na velha papelaria também ríamos da quase inutilidade atual do papel-carbono, que atingiu reluzente preço de relíquia para os insistentes usuários. Nos tempos de sucesso chegou ao ponto de neologismo para denominar cópia de qualquer coisa, até de um cantor que imitasse outro. Batizou, por isso mesmo, atração musical de programa de televisão. Papel-carbono que morreria de rir da ineficiência dos modernos papéis carbonados, capazes de reproduzir, apenas de forma anêmica, o que se escreve na página de cima.

Durante o período de agonia do lugar, me enchi de covardia e quase driblei a vontade de ir dar um abraço de despedida nos meus amigos de confraria, como se não falar a respeito evitasse o pior. Cabisbaixo de coragem, entrei na loja para meu último café. Veio regiamente acompanhado com bolo de laranja, tapioca e queijo, como se não houvesse amanhã.

O sinal de luz impaciente no retrovisor me resgatou da contemplação do fim, me fez ajudar a mover novamente o cortejo estressante do trânsito. Ficou para trás a placa agressiva, retirada poucos dias depois.

Apesar das obras de reforma anunciarem que há novo inquilino, não tive interesse em descobrir o que virá depois da poeira dos operários. Vai que nasce um vínculo que faz sofrer depois…
Heraldo Palmeira

quarta-feira, junho 20

A livraria da esquina

Steven Hubbard 

O livro, esse ser mutante

Mariusz Stawarski
Estamos sempre aprendendo a ler. Um livro que passou por nossos olhos há um ano, ou um mês, já é outro quando relido. Nossas novas experiências de vida e de leitura, de um ano ou de um mês, nos fazem ver e ler de forma diversa o texto. A cada instante, qualquer texto, qualquer livro, se modifica, seguindo as transformações do mundo e do leitor. O livro é um caleidoscópio.
Raul Drewnick

De volta ao passado

Jungho Lee

O siri higiênico

A proprietária e o gerente de um restaurante foram detidos após uma inspeção da 1ª Delegacia de Saúde Pública do Departamento de Polícia e Proteção a Cidadania. Segundo a polícia, o estabelecimento funcionava em condições precárias. A polícia foi até o local após receber uma denúncia anônima. No restaurante, policiais encontraram um siri vivo no banheiro.
(Cotidiano Online)

"Senhor delegado, entendo perfeitamente a sua disposição de zelar pela higiene de restaurantes. É uma causa que só posso apoiar; afinal, a saúde pública depende disso. Mas, no caso do meu próprio restaurante, devo lhe dizer que o senhor cometeu um engano. Engano compreensível, engano resultante do excesso de zelo, mas engano, de qualquer maneira. O senhor me autuou e me prendeu, por ter encontrado um siri vivo em meu restaurante. Aparentemente é uma medida adequada. Na verdade, e como já lhe mostrarei, não é.

Em primeiro lugar, não se trata de um siri qualquer, senhor delegado.

Quando foi trazido para o restaurante, com muitos outros siris apanhados numa praia, parecia isso, um siri comum. Mas logo ficou evidente que aquele siri tinha qualidades excepcionais.

Acenava-me com as patinhas, senhor delegado. Isso mesmo: fazia gestos amistosos, uma coisa comovente. De imediato decidi: ele não iria para a panela. Ficaria no restaurante, como animalzinho de estimação. Outros donos de restaurante têm gato de estimação, cachorro de estimação, papagaio de estimação, lagarto de estimação por que não poderia eu ter um siri de estimação?

Dei ao siri o nome de César, porque ele gostava de fazer pose de imperador, e passei a criá-lo. O que, com siris, não é difícil. Eles não comem muito, não ocupam muito espaço. E o César era a simpatia em pessoa. Os fregueses simplesmente o adoravam. Chamavam-no: aqui, César, aqui! E ele ia correndo para as mesas e ficava acenando as patinhas. Lá pelas tantas aprendeu a dançar. Coisa mais engraçadinha. A gente botava música e o César ficava dançando a dança do siri, três passos para um lado, três passos para o outro. O pessoal ficava deliciado.

E agora, vem o mais importante: o César era muito higiênico. Outros siris fazem as necessidades em qualquer lugar. O César, não. O César descobriu que havia, no restaurante, um lugar especial para isso e dirigia-se espontaneamente ao banheiro (dos homens).

Repito: espontaneamente, senhor delegado. Eu nunca o obriguei a fazer isso. Ele ia até lá, pulava para o vaso, fazia o que tinha de fazer e limpava-se com papel higiênico.

Por azar, o senhor veio ao restaurante exatamente no momento em que o César estava no banheiro. O senhor o surpreendeu lá dentro. O pobre bichinho deve ter morrido de vergonha, mas o César era digno, não sairia correndo por causa disso.

Ficou no banheiro, coisa que, para o senhor, se constituiu num flagrante.

E, para ele, num trauma. Desde que isso aconteceu, o pobre não evacuou mais. Está com uma prisão de ventre terrível. Uma coisa emocional, claro.

Siris também têm emoções, senhor delegado. Inclusive e principalmente no banheiro.

Moacyr Scliar

terça-feira, junho 19

Livro pensante


Ferino

Jonathan Wolstenholme


Em certos livros o prefácio mais parece um pedido de desculpas
Joel Silveira

Somos abelhas

Elena Mascolo

Quando Sherlock Holmes derrotou seu criador

Sherlock Holmes nasceu porque um médico de cabeceira escocês, que mal ganhava para acender o gás, vivia com o consultório vazio. Aquele doutor se chamava Arthur Conan Doyle e tinha encontrado um modelo para o seu detetive em um de seus professores da Faculdade, Joseph Bell. Poucos personagens tiveram um impacto tão forte como Holmes sobre a sociedade que os viu nascer, e poucos conseguiram prolongar sua sombra de forma tão profunda sobre o futuro. De fato, quando seu autor, que queria seguir outros caminhos literários, teve a bizarra ideia de matá-lo nas cataratas de Reichenbach, não teve outro remédio senão ressuscitá-lo pouco tempo depois, por causa da fúria de seus leitores. O próprio Conan Doyle escreve, num artigo recuperado agora dentro do volume que reúne seus textos de não ficção, Meus Livros. Ensaios Sobre Leitura e Escrita: “Sherlock Holmes é para muita gente qualquer coisa menos um personagem de ficção, como demonstram todas as cartas que recebi dirigidas a ele e nas quais formulam pedidos”. Um banco situado no famoso endereço da Baker Street 221B – que não existia na época em que o personagem foi criado, porque a rua era mais curta – teve que contratar um funcionário só para responder a todas as cartas dirigidas ao detetive.

O jornalista norte-americano Michael Sims reconstrói, em seu estupendo livro Arthur and Sherlock, a criação do detetive e de seu companheiro John Watson, em 1887. O surgimento de um personagem tão durável sempre tem um componente casual, inclusive em seu nome – Doyle pensou em chamá-lo Sherrington Hope –, embora também tenha algo de inevitável. Sims revela a fascinação do escritor por seu velho professor de medicina, que impressionava seus alunos com sua capacidade dedutiva, mas seu personagem também reflete a época que lhe coube viver, o enorme interesse pela ciência que estava mudando por completo o mundo durante a Revolução Industrial, assim como a invenção do romance policial por parte de Poe, entre outros autores. O triunfo de Sherlock Holmes reflete ainda a profunda mudança que o mundo editorial viveu em um século e meio: o personagem só se firmou quando começou a ser editado pela revista Strand, não nos livros (trata-se do equivalente às séries de TV para o século XIX).

Ao final, o estudo de Sims representa uma reflexão sobre o poder e o mistério dos personagens de ficção. Conan Doyle foi, sem dúvida alguma, um escritor de enorme talento, mas sempre inferior ao de sua maior criação. De fato, o autor do detetive mais preparado do mundo chegou a acreditar em fadas. Não é estranho que, em um momento dado, tenha decidido matá-lo para seguir em frente. Sua derrota demonstra até que ponto seu personagem foi sempre muito mais importante que ele.

segunda-feira, junho 18

Escada para o amor

Tom Haugomat

Os 'nossos livros'

Mariusz Stawarski 
Estranhos destinos dos livros... Eles ali estão, nas vitrinas ou nas prateleiras da livrarias, nos comentários dos críticos, nos anúncios dos jornais e revistas, nas sugestões dos amigos que os leram antes, e, no entanto, quantos deles não passam ou não passaram despercebidos, alheios aos nossos interesses ou à nossa curiosidade imediata de tentaculares leitores, atraídos ou envolvidos noutros caminhos , por outros livros, outros escritores.
Quantos não nos dizem nada à primeira vista, restamos distantes ou indiferentes aos seus títulos, aos nomes dos seus autores, ou, às vezes, vamos adiando o seu conhecimento, por desfastio ou inércia, por temor, talvez, por defesa prévia, contra possíveis decepções ou desencantos – e também a perspectiva de que eles não nos acrescentarão nada - ou ainda de que não serão, certamente, como os “nossos” livros, os livros que escolhemos, os livros que amamos, os livros e autores a que já nos habituamos, por intimidades anteriores, por afinidades, por gozos - tornados, assim, nossos companheiros de indagações e respostas, de diálogos, afinal, e no entanto...
Américo de Oliveira Costa

Leitor tem caráter


No mundo da bola

Os americanos aprendem geografia metendo-se em guerras e invadindo terras longínquas. Já nós, desambiciosos e sem o arsenal exigido para tais empresas, aprendemos geografia em Copas do Mundo. Muitas vidas foram sacrificadas para que os americanos ficassem sabendo onde ficam Luzon, Hanói, Phnom Penh ou mesmo Bagdá, ao passo que os habitantes do Planeta Futebol não precisaram derramar uma gota de sangue para saber localizar no planisfério as cidades de Malmö (Suécia, 1958), Ulsan (Coreia do Sul, 2002) e Porto Elizabeth (lá fomos derrotados pela Holanda no torneio da África do Sul).

Nas Copas aprendi até palavras que a idade ainda não me permitia conhecer. Magiar, por exemplo; contribuição do Mundial de 1954, em que nenhuma equipe brilhou mais que a da Hungria, caprichosamente derrotada na final pela da Alemanha. Tão espetaculares eram os jogadores magiares que seus nomes ficaram para sempre gravados na memória de muita gente, especialmente daqueles que os tiveram por algozes.


Dia desses surpreendi um jovem húngaro, com alguns anos de Brasil, declinando-lhe de um só jato o magnífico ataque formado por Budai, Hidegkuti, Czibor, Puskas e Kocsis – pelo qual seu pai e seu avô suspiram até hoje. Resumi para ele, do ponto de vista do perdedor, a “batalha de Berna”, que foi como ficou conhecida a renhida peleja em que seus patrícios nos alijaram da competição pelo placar de 4 x 2, com a inegável, embora redundante, ajuda de um árbitro inglês, tão inesquecível quanto seu nome, Mr. Ellis, pivô de um vexame extrajogo estrelado pelo também árbitro (e mais tarde comentarista radiofônico) Mário Vianna, que, além de xingá-lo de ladrão, tachou-o de “comunista”.

O Mundial na Suíça chegou até aqui pelo rádio, como os anteriores e os três subsequentes, sendo que o de 1958, na Suécia, já pude acompanhar, à sorrelfa, no fundo da sala de aula, pelo transistor do aluno mais rico da turma. O som era precário, ondulante e arisco. Não fosse o patriótico escarcéu de nossos locutores, levaríamos alguns segundos para identificar qual dos dois times afinal marcara o gol.

Por um trivial rádio doméstico acompanhei os dois últimos jogos da Copa em que enfim conquistamos a Taça Jules Rimet. Claro que chorei. Duas vezes. A primeira ao ouvir a torcida francesa que lotava o estádio de Rasunda cantar A Marselhesa – que nem no filme Casablanca. Eles tinham A Marselhesa e o artilheiro do torneio (Just Fontaine), mas nós tínhamos o que precisávamos para ganhar deles por 5 x 2

Rasunda. Outra lição de geografia. Que a molecada logo explorou numa paródia de Alá-lá-ô. A marchinha carnavalesca de Nássara e Haroldo Lobo dizia: “Ai que calor, ô, ô, ô, ô, ô, ô! Atravessando o deserto de Saara, o sol estava quente e queimou a nossa cara”. Bastou trocar o deserto de Saara pela cidade de Rasunda e a cara por sua rima mais óbvia.

Além de ensinar geografia, as Copas nos possibilitaram produzir uma espécie de diário afetivo, fixando em nossa memória momentos marcantes do passado, com as datas colhidas em alfarrábios futebolísticos ou no Google. Sei exatamente o que estava fazendo, por exemplo, em 6 de junho de 1962 porque, naquele dia, antes de o Brasil virar o jogo contra a Espanha, no estádio Sausalito, penei um bocado para escrever uma crítica da comédia O Terror das Mulheres, de Jerry Lewis, na redação do Correio da Manhã.

Insólito Mundial o do bicampeonato. Cada jogo num local diferente. Até na varanda do Alcazar, na Avenida Atlântica, fiz minha transistorizada vigília cívica, amargando na companhia de Mauricio Gomes Leite um empate sem gols com a Checoslováquia, na tarde de 2 de junho.

O mais inesperado ficou para o desfecho da competição, contra a mesma Checoslováquia, no domingo 17 de junho. No apartamento da atriz Irma Alvarez, em Copacabana. Enquanto ela, Reginaldo Faria e Sérgio Sanz vibravam, na sala, com o gol de empate de Amarildo, eu ajudava o trabalho de parto da gata da casa – na cozinha.

O que eu fazia na tarde de 19 de julho de 1966? O Brasil perdendo para Portugal no Mundial da Inglaterra e eu a dar voltas em torno na Cinelândia, no teto do Simca Chambord de Carlos Heitor Cony, segurando pela cintura José Carlos Avellar, para evitar que ele caísse com sua câmera e perdêssemos não só nosso cinegrafista, mas também as imagens da desolação da torcida carioca, fundamentais para um documentário sobre Otto Maria Carpeaux.

Também vi jogos da Copa em pousadas do interior da Guatemala, numa churrascaria brasileira de Nova York e, suprema proeza, no Palácio da Vaca, em São Francisco, que nem sei se ainda existe. Era um pavilhão dedicado a exposições de pecuária, que dotaram de um telão para que os latinos das redondezas – e sobretudo os brasileiros que estudavam em Berkeley – pudessem assistir à derrota do Brasil para o Carrossel Holandês, em 3 de julho de 1974, a 50 dólares por cabeça.

Na Copa anterior, a do tricampeonato, mais precisamente em 7 de junho de 1970, curti pela TV, em família, o jogo mais eletrizante de todos os tempos: Brasil 1 x 0 Inglaterra. Aquela defesa matematicamente impossível de Banks, interceptando no chão uma cabeçada mortífera de Pelé, e a desarrumação da inexpugnável defesa adversária aprontada por Tostão, que resultou no gol de Jairzinho – well, nem a consagradora goleada na Itália conseguiu superar.

Peguei o tri na raiz. Assisti a treinos no Retiro dos Padres, ainda na fase João Saldanha, e confesso que, desde o início, descolei a política (vale dizer, a ditadura militar) do futebol. As “onze feras” do Saldanha me compraram. Ao ver nosso ataque alinhado antes do pontapé inicial em Jalisco – Jairzinho, Gerson, Pelé, Tostão, Rivelino –, Cláudio Mello e Souza exclamou, embasbacado: “Olha o Q.I. desta linha! Não dá pra torcer contra”.

Não dava. Aquele não era o time do ditador Médici. Aquele era o time de todos nós.