segunda-feira, junho 4

Tolkien: o homem que inventou a Terra Média

O estudante atravessa a rua de pedra. Carrega um cachimbo no bolso do paletó, e um punhado de tabaco numa caixa de latão, com o slogan “Player’s Good Leaf Navy Cut”; na sua desarrumada maleta de couro marrom trotam seus cadernos, velhos cadernos de colégio que ele começou a preencher na trincheira, e aos quais chamou de Lost Tales A e Lost Tales B(“Histórias perdidas” A e B), e um álbum de grande formato, no qual pinta aquarelas fascinantemente abstratas, ao qual chamou de The Book of Ishness. O mais provável é que vista colete sob o casaco, e que sua gravata esteja ligeiramente torta. O lugar onde atravessa é uma esquina da Turl Street, em Oxford. Talvez chegue tarde a alguma aula, porque ainda não é o aluno modelo que se transformará algum dia em professor modelo, e em sábio com vida dupla – a do escritor fantástico e a do prestigioso acadêmico; ainda está cortejando aquela que será a sua mulher, a fugidia Edith, que, sem que ele saiba, ficou noiva de outro, porque faz tanto tempo que não se veem que acredita que todas aquelas cartas que lhe escreve – nessa época não faz outra coisa senão escrevê-las, usa o papel das provas que não entrega para escrevê-las – não são para serem levadas a sério.

Aquarela de Tolkien para ‘O Hobbit’, de (1937)
Mal podia imaginar John – John Ronald Reuel Tolkien – aos seus 21 anos, ou seja, em 1913, que 105 anos mais tarde os dois cadernos que trotavam em sua maleta, a própria maleta, sua caixa de tabaco, seus cinco cachimbos, seu álbum de aquarelas e até a diminuta escrivaninha sobre a qual se acotovelaria a cada noite para escrever sua obra-prima, O Senhor dos Anéis, compartilhariam uma mesmo cômodo longe de casa, embora não muito longe, porque a primeira parada da ambiciosa exposição Tolkien: Criador da Terra Média (inaugurada sexta-feira passada, e em cartaz até 28 de outubro) é Oxford. Especificamente a principal biblioteca de pesquisa da Universidade de Oxford, e uma das mais antigas da Europa: a Biblioteca Bodleiana.

Como em uma sala de dissecação, à qual se chega atravessando um corredor onde o visitante pode pôr um pé na própria Terra Média, pois sobre o chão se projetam alternadamente três dos mapas que o escritor desenhou, no pequeno cômodo onde o material está reunido destrói-se e se reconstrói a figura do autor de O Hobbit. Ela é mostrada, na verdade a partir de objetos que lhe pertenceram, de fotos, esboços, aquarelas, da sua própria obra em marcha. Assim, podem ser vistos os originais dos mapas, mas também os das duas sobrecapas que Tolkien desenhou para a primeira edição de O Hobbit, um par de autênticas obras de arte em aquarela, e as cartas que Papai Noel escrevia para seus filhos: com traço trêmulo – “Desculpem, é o Polo Norte, faz muito frio”, justifica-se o suposto Noel –, o escritor manteve, na pele de Santa Claus, uma divertidíssima correspondência com seus filhos durante anos. As cartas provinham de um lugar chamado simplesmente Christmas House, que ficava, claro, no Polo Norte. Na primeira delas, Santa escreve: “Querido John: ouvi por aí que você perguntou ao seu pai como sou e onde vivo. Então me desenhei e desenhei minha casa para que você veja. Tome muito cuidado com os desenhos. Saio para Oxford em breve, com um montão de brinquedos, e acredito que haja algum para você. Espero chegar a tempo”.

Aquarela de Tolkien para a primeira
 edição de ‘O Hobbit'’ (1973
)
“Parecia ter tempo para tudo. Adorava os seus quatro filhos. Passava muitíssimo tempo com eles. E estudava sem parar para ser o melhor em sua área. E pelas noites escrevia. Até as tantas. Levou 12 anos para concluir O Senhor dos Anéis. Mas O Senhor dos Anéis é só a ponta do iceberg.” Quem fala é Catherine McIlwaine, a curadora da exposição, que, depois de Oxford, viajará a Nova York e a Paris. Não lhe falta razão. Tolkien tinha tempo inclusive para responder as cartas que recebia. De fato, a mostra começa com um punhado delas, entre as quais se destaca a assinada por um tal Terence Pratchett – sim, Terry Pratchett– em 1967, quando tinha 19 anos, elogiando O Ferreiro de Wotton Major; a que lhe enviou da Casa Branca a filha do presidente Lyndon B. Johnson (“Adorei O Hobbit! Vou recomendá-lo a todo mundo!”), e também correspondências de Iris Murdoch (“Quem me dera poder lhe escrever isto em élfico”) e do marido de Joni Mitchell, Chuck, que consistia basicamente na letra da canção que Joni acabava de escrever, I Think I Understand, inspirada em O Hobbit.

Entre as cartas, fotos do final dos anos sessenta com pichações contra a guerra do Vietnã, nas quais se lia Bilbo Baggins Lives, e broches fluorescentes (“Apoie seu hobbit local, Gandalf para presidente”), além de uma carta de um menino de 12 anos chamado Sam que lhe perguntava por que tinha chamado um de seus personagens como ele: sim, exatamente como ele (nome e sobrenome).

Mas tudo isso não tem nada a ver com o personagem. Com o menino Tolkien, que perdeu o pai aos quatro anos. Que passou um verão na África do Sul – o verão em que uma tarântula quase o mata, mas a babá conseguiu sugar o veneno a tempo –, que a primeira coisa que escreveu foi uma carta chekhoviana, uma minicarta – “Querido papai, sinto sua falta, tenho vontade de ver você” – que colocou em um minienvelope onde só se lê “Dear Daddy from Ronald” (De todo modo, seu pai não chegaria a recebê-la, já estava morto quando Tolkien a escreveu, mas ninguém sabia ainda). Que depois passou quatro anos de idílio na campina inglesa – onde experimentou inventar sua primeira língua – e finalmente se mudou para Birmingham, com sua mãe e seu irmão. Que sua mãe foi tudo para ele até os 12 anos: ensinou-os a ler e a escrever (a majestosa letra de Tolkien é a letra da sua mãe: há uma carta dela na exposição que comprova isso) e aos 12, quando ela morreu, o menino órfão a substituiu pela Igreja – ela fez com que amassem o catolicismo acima de tudo – e por seu amor adolescente, que acabou sendo sua mulher e a mãe de seus filhos: Edith Mary Bratt.

Junto às fotografias de universidade, em que posa com quase 20 mortos – foram muitos os amigos que perderam a vida durante a Primeira Guerra Mundial –, há uma pequena carteira que só contém duas imagens. São duas fotos de Edith. A carteira está deteriorada. “Era a única coisa que carregava na trincheira”, recorda Catherine. “Às vezes tenho a sensação de que, se fez tudo o que fez, foi porque se sentia culpado por continuar vivo”, acrescenta. Com tudo isso se refere à sua vida dupla, porque Tolkien nunca deixou de criar. Começou a trabalhar na Terra Média e no seu famoso O Silmarillion no acampamento militar. “Entediava-se, e se pôs a escrever”, diz.

O que se segue é a história de um sucesso inesperado, O Hobbit, do qual se expõem páginas originais, procedentes dos manuscritos que Tolkien vendeu a uma universidade norte-americana, e a da tentativa de escrever uma sequência – Tolkien, conhecido em sua época universitária como Tollers: assim foi como o chamou sempre seu querido C. S. Lewis, a quem Tolkien chamava Jack, e ambos compartilhavam uma paixão desmedida pelas sagas nórdicas, e cada um a sua maneira tentou criar sua própria saga nórdica britânica – que virou algo mais que um suposto livro infantil.

Também há originais de O Senhor dos Anéis, que Tolkien escreveu e reescreveu durante anos – terminou o livro cinco anos antes da sua publicação, em 1954 – e que se nutria de sua obra trabalhada na trincheira, O Silmarillion. Fez frente à escassez de papel de duas guerras mundiais e, quando descobriu os lápis de cores – que povoam o pequeno e malogrado escritório onde trabalhava, centro da exposição em que se inclui um mapa em 3D do escritório madrilenho Factum Foundation –, abandonou a aquarela. Isso sim, virou-se com as páginas dos jornais. Adorava fazer palavras cruzadas, desconstruí-las e transformá-las em tabuleiros de xadrez em duas dimensões, e coisas do gênero. Os cinco ou seis que decoram uma das paredes da sala não estão ali por acaso. São uma peça a mais, tão importante como o resto, desse mistério chamado Tolkien. O sujeito que se mudava a cada noite, a partir das 22h, quando as crianças iam dormir, para o seu próprio mundo, a Terra Média.

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