André Caliman |
Passei longo tempo pelas avenidas ermas e silenciosas; alguns visitantes retardatários faziam orações. Pensei na vida, pensei na morte e saí com mais saudades. Quedei-me ao lado do cemitério, a esperar o bonde. Eis que surge, no topo da rua Trajano Reis, o féretro de um pobre. Os cavalos, cansados, talvez, de terem corrido muito pelas ruas da cidade, vinham em andante sostenuto, como diria o músico. O chicote do cocheiro estalou duas ou três vezes, mas sem resultado. Os quadrúpedes continuavam em marcha lenta, deixando de lado a pressa do cocheiro. Já vi aquela cena centenas de vezes, e de tanto vê-la é que, por certo, se me tornou banal e fria. Mas, naquela tarde que morria, a cena banal e fria mudou de aspecto. Aquele enterro sem acompanhamento, triste em sua mudez, tocou-me a alma. Há qualquer coisa de sutil no fundo do nosso coração — o sentimento. Resolvi acompanhar aquela tristeza que tão bem se casava com a minha tristeza. Naquela quietude universal eu me lembrava de minha pobre condição de mortal, pois lá dentro do cemitério eu falara mais com a morte do que com a vida. E isso, às vezes — dizem os moralistas —, por curtos momentos, nos torna melhores... No instante em que ia acertar passo, a fim de seguir o carro fúnebre, estanquei para ouvir certas vozes indistintas que me vinham da consciência: “Vê lá se alguém não está a olhar-te! Que coisa é esta de acompanhar enterro de indigente desconhecido? Não vês, louco, que os teus amigos podem ver-te neste momento e, com razão, suporem que és parente ou amigo do morto pobre? Isto não ficará bem. Que não dirão eles?” Olhei para todos os lados e não vi ninguém; só o cocheiro, mas esse não me viu. Sosseguei e dei graças a Deus dos olhos do preconceito não estarem ali. A minha sensibilidade voltou envergonhada ao coração. Fiquei apenas curioso. O sentimentalismo — segredou-me ainda a vaidade — pertence ao mundo bíblico, a um mundo que já morreu... Hoje, amigo, os arranha-céus sobem ao firmamento e os nossos sentimentos descem à terra...
Chegamos. Ao portão, nervoso e impaciente, com um carrinho de mão, estava o coveiro.
— Ó, José — disse ele dirigindo-se ao cocheiro — “vamo” acabar com esse “troço” de trazer defuntos a esta hora — e, jogando o caixão de pinho no carrinho, arrematou violento: — Que raio de coisa, sempre a mesma chorumela!...
— O que tenho com isso?... respondeu displicentemente o cocheiro. E lá se foi, em passo de alegreto, alçando o carrinho de mão, o coveiro. E eu a lhe seguir os passos rápidos.
— Nós devemos ter piedade para com os mortos! — falei de manso ao Tobias rebelado.
— Piedade para com os mortos? Ora, essa é boa... Por que o senhor não se lembrou de apiedar-se quando era vivo?... Os mortos não precisam de piedade; os vivos pobres é que a necessitam...
Calei-me envergonhado, e fui diminuindo os passos, e desapareci. Afinal de contas, quem terá razão nisso tudo? Eu creio firmemente que são os cavalos, pois eles, correndo vertiginosamente a carregar defuntos pobres, por certo desconhecem os segredos do coração humano!...
Adriano Robine ( 1902-1982)
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