quinta-feira, agosto 2

Editoras e livrarias independentes buscam se reinventar em meio à crise mais dramática do mercado editorial

Simone Paulino fechava a Casa Paratodos, que abrigara eventos de editoras independentes durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no ano passado, quando foi interpelada por uma mulher desesperada em busca do livro A mulher de pés descalços, da ruandesa Scholastique Mukasonga. Não sobrara nenhum exemplar na Travessa, a livraria oficial da Flip. Os dois romances de Mukasonga — A mulher de pés descalços e Nossa Senhora do Nilo, ambos publicados pela editora Nós — foram, respectivamente, o segundo e o quinto livros mais vendidos daquela Flip. Paulino fundou a Nós em 2015 e se especializou em edições caprichadas de ficção nacional e estrangeira com tiragens médias de 1.000 exemplares. Aproveitou a vinda de Mukasonga à Flip e imprimiu 4 mil exemplares de cada um dos romances. Levou 200 — 100 de cada — para Paraty. Vendeu todos. O único exemplar que restara era o dela, escondido em sua mochila, mas até esse ela vendeu, ali na rua, para a mulher que a emboscara ao fim da festa.

“Na semana posterior à Flip, todas as livrarias começaram a me pedir os livros da Scholastique”, contou Paulino a ÉPOCA. “Grandes redes, como a Saraiva, que nunca tinham olhado para mim, me pediram os livros dela, porque era uma autora da Flip.” A Nós já publicou 35 títulos e, desde a Flip passada, não dá mais prejuízo (mas ainda não dá lucro) — apesar da crise das grandes livrarias, que têm atrasado os pagamentos às editoras. “Antes, a gente vendia pouquinho, mas o que vendia recebia”, disse Paulino. “Agora, começamos a vender mais, mas sem receber ou receber com muito atraso, o que bagunçou as coisas.”


Paulino toca a editora com a ajuda de uma única funcionária fixa. Neste ano, ela volta à Flip com 600 exemplares — 200 de cada — dos romances Adua e Minha casa é onde estou, e do livro de ensaios Caminhando contra o vento, sobre Caetano Veloso, todos de Igiaba Scego, escritora italiana filha de somalis, convidada da festa. As tiragens são de 4 mil exemplares para cada romance e de 8 mil para o livro de ensaios, uma coedição da Nós com a Buzz Editora. A Casa Paratodos — rebatizada Paratodxs — também volta à Flip e reunirá as editoras Nós, Edith, Demônio Negro, Relicário, Dublinense, Buzz, Kapulana e Polén, além da TAG - Experiências Literárias, um exitoso clube do livro por assinatura. Todas são editoras independentes. Quase um terço dos 33 convidados da Flip é publicado por editoras independentes.

Segundos dados compilados pela consultoria Nielsen a pedido de ÉPOCA, as editoras independentes cresceram 12,97% em volume e 4,58% em faturamento no acumulado das 28 semanas de 2018 em comparação ao mesmo período de 2017. O vigor das editoras independentes parece um versinho alegre perdido no meio de um longo conto de terror. O mercado editorial encolheu 21% desde 2006. Segundo pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) divulgada em maio, as perdas de 2006 a 2017 somam R$ 1,4 bilhão. Dados do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) mostram que as três grandes redes de livrarias — Saraiva, Fnac e Cultura — têm quase 1.300 títulos protestados, que somam R$ 38 milhões de pagamentos em atraso. A Saraiva tem a maior dívida: são 312 protestos, que chegam a R$ 28 milhões. A Fnac tem 310 títulos protestados, que representam débito de R$ 8 milhões. A Cultura soma 634 títulos protestados, num total de R$ 2 milhões. A Saraiva informou que está em negociação com os fornecedores. A Cultura e Fnac não quiseram falar sobre o assunto.

As editoras de porte enxuto e com mais tempo de mercado são as que sentem mais a crise das livrarias. Com até 50% do faturamento vindo das grandes redes varejistas, essas empresas se veem numa sinuca de bico: se processam a Saraiva e a Cultura, fecham a porta do principal destino de seus produtos, mas, se continuam fornecendo material consignado sem receber, a conta mensal não fecha. O presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) e sócio da editora Sextante, Marcos da Veiga Pereira, resiste a falar no assunto. Ele afirmou a ÉPOCA que a situação do mercado de livros é preocupante, mas ponderou que a crise ocorre por causa da “maior recessão da história recente do Brasil”. Embora tenha admitido que a situação das três principais livrarias do país “é ainda mais complicada”, Veiga Pereira afirmou que as editoras precisam apoiar essas empresas para que elas continuem suas operações. “Mas, ao mesmo tempo, as editoras têm limites para financiar este momento complicado do mercado”, completou, evidenciando a difícil situação enfrentada pelos editores brasileiros. Dados da consultoria Nielsen, compilados a pedido do Snel e obtidos com exclusividade pela reportagem, mostram que houve redução de 4,11% nas vendas de livros e de 2,95% em faturamento no mês de junho na comparação anual. No acumulado do ano, o mercado livreiro registrou alta de 7,5% em volume e de 11,69% em valor.

Editoras como a Sextante, do presidente do Snel, e a Cortez decidiram suspender as vendas à Cultura. A Planeta chegou a reduzir o fornecimento à livraria, mas afirmou que a situação vem se normalizando. A Cultura parou de honrar os pagamentos de parcelas que haviam sido negociadas entre maio e junho, relativas aos meses anteriores, que já estavam em atraso. Para ter uma ideia do efeito provocado na cadeia pelo atraso no pagamento — ou pelo não pagamento — por parte das grandes livrarias, há editoras que reduziram pela metade o quadro de funcionários e diminuíram o número de lançamentos. Na Geração Editorial, mais de metade dos empregados foi demitida neste ano: de 66 funcionários, ficaram 27. Também houve demissões no Grupo Editorial Record e na Intrínseca. A Sextante diminuiu os lançamentos em 40%, de 13 títulos por mês para 8.

Os cortes de pessoal também ocorrem nas grandes redes. A Cultura demitiu 140 pessoas na sexta-feira dia 20. Procurada, a rede de livrarias informou que o corte ocorreu por uma “necessidade de adequação da empresa à realidade econômica brasileira”. Em nota enviada à reportagem, a empresa cita a recessão no país, o ambiente pré-eleitoral e indicadores que não mostram uma “recuperação consistente” da economia brasileira para detalhar os motivos da demissão em massa. “Se continuarmos a fazer as coisas da mesma maneira, não evoluiremos. Mudanças são necessárias, e estamos preparando nosso futuro”, afirmou a Cultura. As mudanças previstas incluem o fechamento de lojas e forte ampliação das vendas pelos canais digitais.

Descontos vultosos para tentar fisgar o consumidor e a perda do interesse na leitura são outros fatores apontados por especialistas para explicar as dificuldades do setor livreiro. Em 2017, segundo o Snel, os descontos médios praticados pelas livrarias foi de 27,2%. A chegada da Amazon ao Brasil, em 2014, trouxe outra dinâmica para o segmento de livros: vendas on-line e novo patamar de preço para o livro. Nas contas de Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), nos últimos quatro anos — período que coincide com o desembarque da Amazon no Brasil — pelo menos 20% das livrarias do país fecharam. Os números da Nielsen/Snel mostram que o faturamento das livrarias teria sido em média 7,5% mais alto no primeiro semestre deste ano caso não houvesse a política de descontos.
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