Eu aprendi a ler muito cedo, nos jornais. É engraçado depois ter sido jornalista... O meu pai recebia os jornais da manhã ao fim da tarde, era a hora a que chegavam a essas terrinhas. Quando vinha do trabalho trazia o jornal para casa. Eu aprendi a ler nas letras grandes do jornal, nos títulos. E sempre escrevi versinhos. Quando faziam aquelas perguntas, tipo "o que é que queres ser quando fores grande?", eu sempre respondia em verso. Até aconteceu um episódio traumatizante relacionado com isso. A minha mãe - as mães são uns seres fantásticos... - é que guardou esses versinhos todos, ainda os tenho aí algures. A minha mãe teve sempre aquilo em casa, e quando ela morreu, o meu pai deu-mos. Se os quiser encontrar não consigo, mas estão por aí, algures...
E então, a minha mãe deu comigo uma vez naquela posição em que estão os miúdos, de joelhos no chão, a escrever numa cadeira. Eu tinha - e confesso que ainda tenho, é assim uma coisa absurda - muito medo das trovoadas. E estava uma grande trovoada quando a minha mãe deu comigo assim, a escrever. Ela pensava, primeiro, que eu estava a rezar. Porque lá em casa rezava-se à Santa Bárbara quando trovejava. Como é que era? Na minha memória era assim: "Santa Bárbara bendita, que no céu está escrita com papel e água-benta, livra-nos Senhor desta tormenta". A minha mãe julgou que eu estava a dizer essa reza para as trovoadas, mas não, estava a escrever uns versos.
Quando vou às bibliotecas falar, perguntam-me sempre quando comecei a escrever, e eu faço sempre a seguinte rábula: conto esta história e pergunto assim, "e sobre o que seria o poema, sobre o que seriam os versinhos que eu estava a escrever?". Faço isto para explicar os mecanismos da escrita poética. Os miúdos respondem todos: "Sobre a trovoada!". E era, de facto, sobre a trovoada mas não tinha a palavra trovoada...
Era de uma forma muito especial. Alguém me tinha contado, ou tinha lido, uma história de que eu pelos vistos gostava muito que era o milagre das rosas, da Rainha Santa Isabel. E os versos eram sobre o milagre das rosas, ou seja, digo eu aos miúdos nas escolas: "Reparem: eu estava com medo da trovoada, e escrevia sobre o milagre das rosas, como se escrever fosse uma espécie de refúgio; era uma história de que eu gostava muito e estava a fugir para dentro dela". Se calhar é um bom exemplo, e uma boa resposta a essa pergunta que nos fazem, e que todos os escritores se fazem a si próprios: porque é que eu escrevo? Porque é que não faço outra coisa qualquer? Ainda se fosse para ganhar a vida, mas isto não é para ganhar a vida - eu costumo dizer que é para salvá-la, o que quer que isso signifique... Para quê? E essa é, parece-me, uma das inúmeras respostas possíveis: porque tenho medo. A literatura como uma espécie de salvação, de refúgio...
Manuel António Pina
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