Darren Thompson |
Passa por cima de mar, passa por cima de rio. Setecentas léguas de terra, voando por cima delas. Céu tão azul que dói nos olhos; sobe, sobe, não tem nuvens, só a branquidão do sem-fim: e o avião cai nos buracos de vento quente, bate as asas, se equilibra, só Deus sabe o que lhe custa, que o céu é leve demais.
Chega nas terras de Minas. Foi-se embora o frio úmido do Rio, o ar não se aquece, mas parece refinado e a friagem abandona os pés e as mãos, entra é pelo sangue, como vinho, esquenta a cor das faces, chega a ter gosto de flor.
Corta as matas da Bahia. Voa, voa, acaba a serra e acaba a mata, começa a caatinga, que vista do alto não é verde como o outro mato comum, é cor de sépia ou cor de prata e às vezes cinza-negro. E, de repente, primeiro um lampejo de um cinza mais claro, lá de longe, depois se desenrolando todo, se espreguiçando no meio da terra quase nua, o rio: Senhor São Francisco. Tendo sorte, às vezes se avista um navio da Baiana, fumegando e batendo roda, andando tão devagar que até dá a impressão de parado. E daí talvez esteja mesmo parado, tomando lenha, pescando o peixe do almoço do comandante, ou conversando com alguém que se equilibra e dá risada à borda do barranco. Ou comprando pedra preciosa do garimpo que amarrou o cavalo num pé de pau à beira d'água e tira as pedrinhas de um saco de camurça e vai discutindo os preços com os passageiros apinhados na amurada do barco. Até que o comandante manda o navio apitar, o cavalo se assusta, o homem recolhe as pedras, a roda de popa torna a girar lentamente e a fumaça preta sai aos borbotões da chaminé.
Horas seguidas o avião acompanha o rio, parece que sente saudade de ir mais longe. Desta vez não é fumaça que se avista, mas a vela branca dum paquete, é feito um inseto deslizando na correnteza.
Afinal se acaba o rio – corta Pernambuco, entra no Ceará velho todo salpicado de açudes. Dava vontade de viajar de hidroplano e baixar em cada prato d'água, demorar um pouco, conversar com os conhecidos. Afinal, a igreja da Parangaba levanta entre o casario as suas torres quadradas. A cidade surge espalhada à beira-mar, as casas novas se conhecem pelo telhado vermelho e o campo do Cocorote é feito um açude seco onde o avião senta aos pulos, entrega a gente aos de terras e vai embora em busca do Piauí.
Mas nem é para ali que se vou. Para onde eu vou ficou atrás, passei voando por cima, doeu-me os olhos de tanto procurar e afinal não identifiquei nem a estação do trem, nem a casa velha e o açude – via tanto açude, tanta casa velha, tanta estação, mas nunca os três juntos, que era o sinal de certeza. Tenho que voltar de trem. E esperar dia certo, que trem é dia sim, dia não.
Bem, já disse que saudades não levo. Saudades irei matar, e criar saudades novas para trazê-las comigo, fresquinhas, piando dentro do peito como passarinho recém-nascido. Saudades irei chorar, dentro da casa vazia de quem se foi, os armadores sem rede, as redes sem gente dentro. Os livros que ninguém lê; a chuva e os relâmpagos que ninguém espia, a água no pluviômetro que ninguém mede mais. Ver como é que se portam as coisas sem o seu dono. Se elas têm mais vida do que os viventes, como é que continuam sem mudança, desamparadas da mão que as criou. Mal comparando, é quase a experiência de ver como andaria o mundo feito por Deus, depois que Deus fosse embora.
Morre tudo e a terra fica. Viúva pode ser, mas dando filhos, amando outros donos, florindo para novos olhos, já que os antigos não a enxergam mais. Quero ver. Quero ver se ainda encontro algum sinal das mãos que se foram dali. Ou escuto o eco da voz perdida, ressoando como dantes no pátio da fazenda velha. De tardinha, quando as vacas descem o alto, mugindo apressadas, enquanto de cá responde o choro dos bezerrinhos – será que ainda verei o vulto de quem as esperava encostado à porteira do curral? A novilha predileta, a Flor do Pasto,essa entrava devagar e o fitava como se entendesse, com os olhos grandes amorosos.
Na cama do pôr do sol, quando os passarinhos se aninham barulhentos na umarizeira centenária à margem do açude, e os peixes saltam à flor da água morna como em procura de fresco, estará perdida, à beira d'água, a marca dos seus rastros, quando vigiava a marcha irregular das ovelhas em caminho do telheiro? E em que alturas do ar estará pairando a vibração do seu riso manso, zombando com ternura da menina que carregava no colo o cordeiro enjeitado?
Se nada se perde no mundo, se luz, som, pensamento, alma, tudo tem substância e tem força, onde estarão a voz, o pensamento, a alma daqueles que fecham os olhos e se entregam às mãos dos outros, e são traiçoeiramente escondidos entre duas camadas duras do chão?
Tudo o que ele fez, mundo tumultuoso de esperanças e temores, o que aprendeu e não teve tempo de passar adiante, tudo isso para onde foi? Eco das palavras ditas, onde estará? Amor tão grande que enchia o seu peito, para onde terá ido depois que esfriou o coração? O morto é um estranho que ninguém conhece, chegou uma tarde, uma noite, partiu. Mas para onde foi o vivo que nos amava?
Setecentas léguas de terra e água, não de barco, não de avião ou de trem, mas andando com os pés descalços no chão duro, setecentas léguas andaria eu com gosto, para o buscar. Ou setecentas vezes setecentas. Mas no fim de cada caminho as encruzilhadas estão vazias; só se encontra outro caminho. E esse estará vazio também.
Rachel de Queiroz
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