Atravesso ruas de terrenos baldios, o mato ressequido, sem cruzar vivalma, apenas um cavalo magro observa a tarde com olhos tristonhos. Ao longe, distingo a praça da Estação, a anarquia da cidade. Nos pontos de ônibus, mulheres se abanam com leques improvisados, a testa merejada, os corpos lassos. Dos paralelepípedos alastra uma caloria que escalda as pernas e empena a paisagem. Entro numa lanchonete, peço uma garrafa de água, destampo, bebo metade num único gole. Pergunto o preço, enfio a mão no bolso de trás da calça, tiro a carteira, vejo de relance a fotografia do Nico, pago, saio, as mãos tremem, meu corpo galeia, os pés afundam nas águas febris do brejo em Rodeiro, aparo o quadril numa banca abarrotada de cuecas, “Compre duas, leve três!”, grita o rapaz, quase o derrubo, me desculpo, continuo andando, sonâmbulo, esbarrando em coisas e pessoas, negaceado por uns, xingado por outros, e me vejo na avenida Astolfo Dutra, onde desabo num banco de cimento, à sombra dos oitis. Entorno o que resta da água na cabeça. Limpo os óculos nas fraldas da camisa. Dezesseis e vinte e sete no relógio digital. Trinta e um graus. Tiro a carteira do bolso de trás da calça, pego o retrato do Nicolau. Ele tem o quê, oito anos?, nove, talvez. Cabelos pretíssimos, olhão azul, impaciente para retomar a farra. Quem bateu a foto? Eu? A Marília? Na época, Marília tocava uma lojinha de quinquilharias na rua do Orfanato, mas, insatisfeita, pensava em mudar de ramo, prospectava oportunidades, como dizia. Acabou, tempos depois, gerente de um bufê de festas e eventos, e, mais tarde, abriu seu próprio negócio, um bufê infantil. Reponho o retrato na carteira, guardo no bolso de trás da calça. Marília já me traía? Provavelmente sim. Um palerma, ela disse, com desprezo, Mas a culpa é tua, acusou, transparecendo o sotaque que sobressaía quando nervosa, cheio de erres fracos e es fortes. Você me deixava sozinha a semana inteira, quando voltava, só reclamação, Estou cansado, Prefiro ficar em casa. E sempre amargurado, infeliz, nada pra você estava bom. Uma pessoa não sobrevive assim, na escuridão, precisa de luz, alegria, divertimento. No começo, me consumia, o remorso, a carolice, então me desdobrava pra agradar, até pierogi, que você gosta tanto, fazia, mas pouco a pouco a tua apatia me irritou, e passei a te cornear de raiva, de vingança por ter casado com um homem tão, tão estúpido, que não percebia nada à sua volta. Na verdade, primeiro, ela buscou me difamar, fingindo ciúmes, falando que eu devia patrocinar amantes pelas cidades por onde passava, e inventava enredos e imaginava tramas, infernizando os sábados e domingos. Mas as histórias, ela mesma enxergava, não prosperavam, porque eu nem prazo, nem oportunidade, nem desejo tinha de avolumar confusão já tamanha. As brigas, os bate-bocas, os desentendimentos, de tão constantes, me internavam cada vez mais no trabalho, e regressar para São Paulo, sexta-feira, tornou-se um sacrifício. Numa tarde, quente como essa, um sábado de dezembro, doze, Marília pediu para levá-la a um motel, coisa que nunca havíamos feito até então. Mesmo sem entender, pensei quem sabe uma boa ideia, um recomeço, o Natal andava perto, poderíamos nos reconciliar, acabar com aquela bobageira de discussões inúteis, desgastantes e infindáveis, que prejudicavam a razão do Nicolau, cada vez mais arredio e agressivo. Pegamos o carro e escolhemos aleatoriamente um lugar que pareceu limpo e discreto, na avenida Sapopemba. Inspecionei o quarto, televisão enorme, jacuzzi, cama imensa, lustre. Marília disse, Senta, Oséias, temos muito que conversar. Sem me olhar, ela confessou, calma e firme, a sua infidelidade, concluindo que nos últimos cinco anos possuía um amante fixo e que, apaixonados, haviam, enfim, decidido ambos se separar de seus cônjuges, palavra que ela usou, gaguejando, após uma ligeira pausa, cônjuges, para se casarem. Eu observava Marília refletida nos vários espelhos que forravam o cômodo, de tal forma que semelhava que ela, irreal, atuava em um palco ou num filme, e que meramente repetia palavras escritas por outra pessoa, e que encenávamos, ela e eu, o fim da relação de um casal que não éramos nós. Mas então ela levantou, pegou a bolsa. Perguntei, atônito, Por quê que você me trouxe aqui, Marília? Ela respondeu, Porque não sabia qual seria sua reação. E, antes de ir, batendo a porta, disse, Coloquei suas coisas no porta-mala, por favor, não ponha mais os pés lá em casa. Eu me joguei na cama e, nocauteado, dormi um sono sem sonhos. Acordei desorientado, tarde da noite, acertei a diária, peguei o carro, e o conduzi madrugada adentro pela Raposo Tavares, até que, fatigado, encostei no estacionamento de um posto de gasolina e o domingo me acordou batucando pingos de chuva no parabrisa. Encontrava-me perto de Ourinhos, uma mala cheia de roupas sujas e uma caixa de papelão com outras mudas, limpas, e alguns poucos objetos pessoais, catados às pressas. Nos encontramos pessoalmente uma única vez depois, no dia de assinar os papéis do divórcio. Ela me pareceu meio atarantada, como se arrependida... Saí sem nada, só com o carro que usava para trabalhar, pois abri mão do apartamento, único bem comum que possuíamos. Nunca mais vi nem ela, nem o Nicolau. Ele não me procurou, não o procurei. Ele não tinha uma boa relação comigo – e nem com a Marília, na verdade. Estava com quase vinte anos e nem o secundário completou. Vivia trancado em casa, mexendo com computador, fumando sem parar, e consumindo droga, acho. De vez em quando, desaparecia uma semana inteira. Regressava imundo, e, por mais que apertássemos, nada revelava sobre o sumiço. Eu passava dias fora, labutando, e, quando chegava, deparava com aquele pandemônio. De primeiro, ele baixava a cabeça, enfiava o rabo entre as pernas, quando eu o advertia. Mas, na medida em que encorpava, começou a me enfrentar. Uma vez, chegou a me empurrar e noutra a levantar a mão fechada, pronta para desferir um murro, e só não chegou às vias de fato porque virei as costas. Mas daí para a frente a coisa deteriorou. Fomos afastando um do outro, a ponto de na época que separamos, a Marília e eu, já não fazia ideia dos caminhos dele, que continuava alternando tempos se enclausurando na fedentina do quarto, caixas de pizza e garrafas de Coca-Cola espalhadas pelo chão, e tempos ausente, no mundo. O que terá acontecido com ele? Tanta esperança! Vencíamos noites em claro listando profissões que ele poderia trilhar, fantasiando momentos felizes juntos quando ele crescesse... Nicolau... Niquim... Nico... Para quê? Minha bexiga dói. Levanto. Cruzo a avenida e caminho pelo passeio, esbarrando em gentes suadas e esbaforidas. O sol machuca minha calva. Preciso comprar um boné. Entro na lanchonete em que estive ontem, na rua da Estação, dirijo-me ao banheiro, mas o rapaz por trás do balcão me intercepta, “Vai aonde?”. “Ao mictório”, respondo. “Tem que consumir alguma coisa”, ele diz. “Aqui não é banheiro público”, completa, melindrado. Não tenho fome, nem sede. Vasculho a estufa, esfirra, pão de queijo, empada, coxinha, quibe, rissole, croquete, enroladinho de salsicha... Sinto engulhos. “Um refresco e um... pastel... Tem pastel?”. “A gente frita na hora”. “Certo, um refresco e um pastel”. “Refresco de quê?”, ele pergunta. “Qualquer um... Pode ser... esse vermelho...”. “E o pastel? Carne ou queijo?”. “Queijo... pode ser de queijo...”. Corro para o banheiro fétido, evitando afundar os tênis na poça amarela que esparrama pelo piso caracachento. Prendo a respiração, urino. Da torneira da minúscula pia encardida não jorra uma gota sequer de água. Sento numa mesa. Barulhentos, os circuladores de ar instalados nos quatro ângulos espalham o mormaço.
Próximo da porta, o homem, o mesmo de ontem, tulipa de cerveja pela metade, observa entretido o movimento da rua. O rapaz me entrega o copo de plástico finíssimo e o pratinho de papelão com um pastel encharcado de gordura. Bebo um gole daquele líquido doce e aguado, que desce arranhando a garganta, tão gelado. Com guardanapos embolados nos dedos, tomo o pastel, mordo a beirada, o vapor queima meus lábios. Merda! O homem solitário vira o rosto, me cumprimenta, solene, toma mais um gole da cerveja que julgo agora morna, e volta a espiar o desfile monótono de carros e pessoas apressadas. Mordo o lado oposto do pastel, onde descubro um pedaço de queijo borrachento, sem gosto, e engulo um pouco mais daquele refresco açucarado. Mosquitos giram e giram e pousam sobre o plástico transparente, ensebado, que recobre as toalhas.
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