Os revólveres, no caso, eram dois trinta e oito. Ou, como se diz na gíria, dois trezoitões. E tinham bala dentro, e a idosa dona, pelo jeito leve com que os empunhava, mostrava que sabia atirar.
Assim mesmo foi detida pelos policiais, tiraram-lhe as armas, sob os veementes protestos da anciã. E, mostrando-se as autoridades curiosas quanto à procedência dos revólveres, ela declarou que haviam pertencido ao seu falecido pai, e que os guardava num velho baú, no porão da "casa de idosos", onde mora. Recebendo uma pensão de uns dois salários mínimos, não podia, logicamente, pagar a mensalidade que lhe cobrariam por um quarto normal, na "casa de idosos". Deram-lhe então o tal porão, a preço módico, escuro, sem janelas – imagine o calor que não faz lá, nos meses de verão, principalmente janeiro, em Porto Alegre! E no inverno, no frio, como não deve ser escuro e mal arejado. Assim mesmo, parece que a diretoria da casa não lhe permitia saídas. E a repórter o confirma: a direção a proibia de sair, receando que, assim idosa, ela se perdesse pela rua, sofresse algum acidente ou assalto. Na mentalidade da maioria das pessoas, velho é pra viver preso, na casa, no quarto; o ideal é uma cadeira de rodas, mas nem sempre a conseguem. E o infeliz do idoso quase nunca pode se defender da solicitude dos mais moços, filhos, parentes, guardiões: "Não coma esse doce, olha o diabetes!" (como se o doce fosse de arsênico). "Cuidado, não vá tropeçar!" "Calma, segure bem no corrimão!" "Olha o buraco na calçada, veja onde está pisando!" E os mais solícitos ou mais medrosos nos seguram com tanta força o braço que até parecem estar carregando às grades um preso renitente.
Imagine o grau de indignação, de constrangimento, de "cólera que espuma", como dizia o soneto, que sufocava o coração da nossa heroína. A vontade louca de ver o céu, luz, rua, pessoas desconhecidas, e não as caras severas dos seus guardiões. No jornal de Porto Alegre diz-se que ela é solteira, ou "inupta" (a que não convolou núpcias), segundo a fórmula legal. Fadada a viver sozinha, na sua nua solidão, sem nem ter a companhia de outro velho, de um companheiro ao seu lado, que lhe fizesse massagens contra o reumatismo, com quem dividisse a surdez, as deficiências visuais; ou, viúva que fosse, tivesse do companheiro as perenes lembranças de uma vida comum, até mesmo lembranças de amor. Digo isso timidamente, temendo risos, pois quem vai admitir que um velho ou velha, de noventa anos, tenha lembranças de amor?
Verdade que nessas campanhas caritativas em prol da "terceira idade" eles brincam carinhosamente com a ideia de dois velhos dançando (na televisão os velhotes dançarinos sempre ensaiam um tango argentino e são vestidos à moda de 1925, ela já de saia meio curta de melindrosa e ele de colete e polainas!). Botam os velhos para estudar vestibular, ou pra fazer ioga, para treinar pintura a óleo (flores e paisagens rústicas), a cantar em coros etc. etc. Ninguém parece entender que a primeira condição para o velho não se sentir tão velho é deixá-lo sentir-se livre. Resolver seus problemas pessoais; ser ele próprio quem conte os seus sintomas ao médico, ser ele próprio quem decide se toma ou não os remédios prescritos – como o faz todo mundo. Deixar que ele se liberte um instante ao menos da tutela dos "entes queridos" e não lhe aviltar se ele, liberado, der uma topada, um tropicão, no exercício dessa liberdade. Deixá-lo que durma só, que não lhe apareça ninguém no quarto à meia-noite, perguntando se ele está insone (está muito feliz, lendo), se esqueceu de tomar o Lexotan...
Ah, como a gente entende a velha pistoleira do Rio Grande do Sul. E fico preocupada – que estarão fazendo com ela, sem nem ao menos serem os filhos que a tiranizem, vítima da ácida vigilância dos estranhos. E agora, então, as coisas devem ter piorado. Já que a nossa nonagenária pistoleira e fujona confessou que guardava as suas armas num velho baú. Cuidado, velhos e velhas, meus colegas: vocês vão ver que, de hoje em diante, ninguém mais vai nos deixar possuir um baú!
Rachel de Queiroz
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