Perco-me nestas considerações, quando o que eu queria era explicar que ainda não vi Carolina nem falei com ela, apesar de a saber aqui no Rio, dando autógrafos e frequentando os círculos literários. Pelos retratos parece uma mulher severa e tranquila, muito menos atordoada do que seria de esperar, ao se ver tão repentinamente alçada ao galarim da fama. É que talvez essa fama foi repentina para nós, seus recentes leitores, mas não para ela. Pelo que se lê no seu diário, há muitos anos Carolina Maria de Jesus cobiçava a glória literária, lutava por ela, preparava-se para ela. O meu caro colega Audálio Dantas que a descobriu e a lançou à celebridade, foi apenas o instrumento do destino – mas um destino com que Carolina já contava.
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A leitura de "Quarto de despejo" me fez pensar em alguns nomes – Samuel Pepys, Anne Frank, Helena Morley. Diários escritos sem intenção literária, completamente diversos desses jornais de bons autores, que são escritos para leitura e trabalhados como verdadeiras obras de arte, a despeito da fingida espontaneidade. Fragmentos do cotidiano de uma vida humana, sem disfarces nem enfeites, depoimento em cuja verdade se pode confiar porque não se destinava a olhos estranhos. Sim, o que choca e impressiona e nos vai direto ao coração num livro como o de Carolina é a sua autenticidade palpitante, e aquele gosto cru de vida ao natural, aquela sensação de contato com matéria-prima, em vez de produto manufaturado. Por isso me lembrei de Pepys, da menina judia prisioneira de um sótão, da pequena de Diamantina: todos três fizeram igualmente diários, que eram apenas desabafos, diálogos de pessoas solitárias travados consigo próprias. Pepys e Morley nos fazem sorrir porque eram criaturas alegres, vivendo uma vida feliz; enquanto a pobrezinha de Anne e a favelada Carolina nos contam uma história terrível que numa delas é medo, na outra é fome, e em ambas é a crueldade dos homens, supostamente irmãos.
Anotando dia a dia os fatos e os comentários que lhe são sugeridos por aquela vida que a gente só imagina, mas nenhum de nós conhece no seu brutal realismo, Carolina consegue suscitar as reações mais diversas em cada leitor. O diário de Carolina é uma ponta de fogo que vai ao ponto fraco de cada consciência, ou à paixão de cada coração. É dom Helder que se comove até às lágrimas, e vê naquelas páginas, explicadas e justificadas, as suas intuições de santo; é o burguês milionário que se assusta ao descobrir em que alicerces de sofrimento e ira mal contida se fundamenta a sua riqueza. É o político de esquerda que estremece ao verificar o desdém que os pobres de verdade, os pobres de demagogia, sentem pela sua pregação; ou o político propriamente dito, descobrindo que as suas mentiras e promessas não iludem mais ninguém – nem sequer aqueles mais naturalmente iludíveis.
Fala-se que Carolina inicia agora uma carreira literária, com romances, poesias, máximas. Não sei se isso será possível, se para isso ela tem o instrumento adequado. Mas o que não se pode negar é que, aparecendo nesta hora, o seu livro está funcionando como aquelas palavras escritas na parede, durante o banquete do rei Baltazar.
Rachel de Queiroz
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