sexta-feira, julho 19

Carolina

Ainda não vi Carolina Maria de Jesus, a autora do "Quarto de despejo". Ela é agora uma vip, e eu sinto uma grande timidez em procurar celebridades – acho mesmo que nunca falei com nenhum dos ilustres itinerantes que têm andado aqui na cidade, dando sopa pelos coquetéis – Aldous Huxley, Malraux, Sartre, Graham Greene, Simone de Beauvoir, Ionesco, Ferreira de Castro, Fulton Sheen, Louis Armstrong –, para só citar os mais recentes. Tenho um receio enorme de agredir com mais cumprimentos a pobre celebridade, já tão esmagada em afetos de admiradores. Ademais, além da vantagem da gente poder contar aos conhecidos que ouviu isto de Sartre, ou aquilo do “velho Satchmo”, o encontro entre um obscuro e um célebre não deixa resultados de maior proveito. Porque o coitado do famoso visitante, afogado naquele mar de cortesias e caras estranhas, apenas dá ao cumprimentante um olhar arregalado, vago e distraído, sem interesse nem simpatia, que ele não tem nem pode ter por nenhum de nós. Nunca leu nem lerá do que escrevemos, primeiro porque não conhece a nossa língua, depois porque, de regra, os seus interesses intelectuais se prendem às coisas da sua terra e da sua arte particular. Só pode sentir por nós aquela mesma espécie de condescendência desdenhosa com que o ilustre escritor federal acolhe os acrósticos do seu admirador beletrista de longínquo povoado de Santa Antônia do Mucunã. Há, é verdade, a oportunidade do toque da nossa mão de nativo naquela mão, além de ilustre, europeia ou americana do norte. Mas aí, já passei a idade do "hero worship" e do fetichismo e francamente também já não acredito que o simples contacto daquela mão famosa com a minha fosse infundir-me, por osmose, a essência de sua celebridade. Quanto à palavra importante, à mensagem inesquecível – meu Deus, ele não a dirá decerto durante a feijoada ou com o Martini na mão. Escritores, artistas, a mensagem deles há de estar na sua obra; e tenho para mim que muito melhor se conhece um Graham Greene, por exemplo, lendo-lhe os romances, do que no trato fugidio com aquele inglês vermelhão e esquivo. Pois, na sua estada aqui, queixam-se os fãs de que ele só deu uma impressão: chateou-se muito.

Perco-me nestas considerações, quando o que eu queria era explicar que ainda não vi Carolina nem falei com ela, apesar de a saber aqui no Rio, dando autógrafos e frequentando os círculos literários. Pelos retratos parece uma mulher severa e tranquila, muito menos atordoada do que seria de esperar, ao se ver tão repentinamente alçada ao galarim da fama. É que talvez essa fama foi repentina para nós, seus recentes leitores, mas não para ela. Pelo que se lê no seu diário, há muitos anos Carolina Maria de Jesus cobiçava a glória literária, lutava por ela, preparava-se para ela. O meu caro colega Audálio Dantas que a descobriu e a lançou à celebridade, foi apenas o instrumento do destino – mas um destino com que Carolina já contava.

***

A leitura de "Quarto de despejo" me fez pensar em alguns nomes – Samuel Pepys, Anne Frank, Helena Morley. Diários escritos sem intenção literária, completamente diversos desses jornais de bons autores, que são escritos para leitura e trabalhados como verdadeiras obras de arte, a despeito da fingida espontaneidade. Fragmentos do cotidiano de uma vida humana, sem disfarces nem enfeites, depoimento em cuja verdade se pode confiar porque não se destinava a olhos estranhos. Sim, o que choca e impressiona e nos vai direto ao coração num livro como o de Carolina é a sua autenticidade palpitante, e aquele gosto cru de vida ao natural, aquela sensação de contato com matéria-prima, em vez de produto manufaturado. Por isso me lembrei de Pepys, da menina judia prisioneira de um sótão, da pequena de Diamantina: todos três fizeram igualmente diários, que eram apenas desabafos, diálogos de pessoas solitárias travados consigo próprias. Pepys e Morley nos fazem sorrir porque eram criaturas alegres, vivendo uma vida feliz; enquanto a pobrezinha de Anne e a favelada Carolina nos contam uma história terrível que numa delas é medo, na outra é fome, e em ambas é a crueldade dos homens, supostamente irmãos.

Anotando dia a dia os fatos e os comentários que lhe são sugeridos por aquela vida que a gente só imagina, mas nenhum de nós conhece no seu brutal realismo, Carolina consegue suscitar as reações mais diversas em cada leitor. O diário de Carolina é uma ponta de fogo que vai ao ponto fraco de cada consciência, ou à paixão de cada coração. É dom Helder que se comove até às lágrimas, e vê naquelas páginas, explicadas e justificadas, as suas intuições de santo; é o burguês milionário que se assusta ao descobrir em que alicerces de sofrimento e ira mal contida se fundamenta a sua riqueza. É o político de esquerda que estremece ao verificar o desdém que os pobres de verdade, os pobres de demagogia, sentem pela sua pregação; ou o político propriamente dito, descobrindo que as suas mentiras e promessas não iludem mais ninguém – nem sequer aqueles mais naturalmente iludíveis.

Fala-se que Carolina inicia agora uma carreira literária, com romances, poesias, máximas. Não sei se isso será possível, se para isso ela tem o instrumento adequado. Mas o que não se pode negar é que, aparecendo nesta hora, o seu livro está funcionando como aquelas palavras escritas na parede, durante o banquete do rei Baltazar.
Rachel de Queiroz

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