Em uma das paradas, um problema entrou no bonde, um problema na figura de um homem de idade, uma figura até bastante digna e austera. Se não existisse um pormenor: o homem não usava camisa. Usava um peito peludo e encanecido. Acomodou-se em um banco e ficou sério, indiferente à infelicidade dos companheiros: um velho sem camisa, em um bonde, cria de repente uma perplexidade desagradável na vida dos que o circundam.
Santa Teresa (Rio de Janeiro) |
O mal-estar se agravou com a intervenção do condutor: “O bonde não segue se o senhor não vestir uma camisa”. O velho olhou desamparado, ele não tinha camisa. “O bonde não pode seguir” – dizia o condutor em um ímpeto militar – “é do regulamento que os passageiros estejam decentemente vestidos”. Os demais passageiros deram um olhar rápido e infeliz às próprias roupas. Depois, consultaram de leve as próprias consciências: expulsa-se o velho? Mas expulsar de um bonde um pobre velho que nem tem camisa?!
O destino do velho perigava nesse breve instante de consciência a deglutir o certo e o errado, o bem e o mal.
Só o funcionário da Light continuava taxativo e impiedoso como uma cláusula de contrato: “O bonde não segue... Lamento muito, mas quem vai sofrer depois as consequências sou eu...”.
Aquele “lamento muito” aliviou um pouco as consciências dos passageiros. Afinal, o condutor era também um operário, um pobre, a cumprir duramente o seu dever! A esse argumento íntimo, juntou-se a impaciência da demora do veículo. O tinir da campainha de outro bonde, que vinha atrás, e tentava passar, também vinha depor contra o homem sem camisa.
– Desce! – gritou, tímido, um dos passageiros.
– Já que é proibido viajar sem camisa, o jeito é descer – raciocinou uma senhora em voz alta.
O condutor se entusiasmou e passou a puxar o velho pelo braço.
Nisso, vendo o desfecho iminente, Francisco de Assis Barbosa (um dos jornalistas) protestou:
– Ora! Deixem o pobre velho! Afinal das contas o fato do velho estar sem camisa não vai impedir ninguém de chegar em casa...
– Toca o bonde! – gritou um mensageiro dos Correios e Telégrafos.
Pasmo nas consciências. Isso era fazer voltar tudo ao princípio, à dificuldade da opção moral de expulsar ou não o velho.
Salvou o momento um cidadão baixo e atarracado, meio parecido com o sr. Otávio Mangabeira. E não menos parecido no vigor do discurso com que se dirigiu àqueles lídimos representantes do povo:
– Meus senhores: seria um ato de impiedade tocar a pontapés de um bonde um mísero ancião, tão mísero que não pode comprar uma camisa. A pobreza é uma coisa sagrada! Maltratar um pobre é cuspir nos princípios cristãos em que nossas genitoras nos educaram. Apelo para o sr. motorneiro para que toque o bonde.
– Muito bem! Muito bem! Toque o bonde! – gritaram de todos os lados. Aí deu-se o inesperado: o pobre velho, que até então se mantivera impassível e triste como um réu, exaltado com o barulho, entrou a gesticular e a murmurar coisas incompreensíveis, exceto as palavras obscenas, audíveis a todos. Estava bêbado como um gambá.
Sem dar sinal de decepção, o Mangabeira tomou de novo a palavra:
– Senhores, já que esse pobre ancião se encontra em estado de embriaguez, deve cessar a nossa compaixão. De fato, a companhia não permite que se viaje em um estado lamentável como esse.
E o velho, sob o riso, a vaia, a aprovação geral, foi posto aos empurrões para fora do bonde. E as consciências respiraram a brisa da tardinha.
Paulo Mendes Campos
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