Não era uma cachorra treinada, apenas sabia abrir portas, forçando as traves metálicas com o peso de sua pata. A quem se admirasse, eu costumava dizer:
- Sabe que joga xadrez?
- Xadrez, a cadela?
- Não se espante, até agora só conseguiu me ganhar duas partidas.
Não disse que se tratava dum dálmata, esses cães brancos com manchas pretas, de porte médio, uma das raças preferidas pelos produtores de desenhos animados e filmes comerciais para a televisão. Uma raça fotogênica, de linhas bem definidas, esperta e muito charmosa. Virgínia orgulhava-se de ser dálmata, tanto que frequentemente mirava-se no espelho.
Durante quase toda a vida de Virgínia moramos num apartamento que possuía um imenso terraço florido. Sobrava-lhe espaço para correr, latir e viver. Contava, para diversão, até com um inimigo, certo gato da vizinhança, um provocador listrado, diário, que ajudava Virgínia a consumir ódios e erguer as orelhas. Nunca se pegaram porque o felino era medalha de ouro em saltos olímpicos.
Um dia tivemos de mudar. Coisas da inflação. Mas todo o espaço de Virgínia não coube no caminhão de mudança. Ainda lembro dela, desamparada, sem chão, a percorrer o terraço e os cômodos vazios do apartamento. E lembro também dela, já no novo lar, pesquisando e medindo distância, mais curtas, menos arejadas, e sem nenhum verde. Seu mundo se encolhera e o que adiantava latir no meio de tanta poluição sonora?
Os dálmatas sempre amaram a liberdade, bem que os ciganos lhes ensinaram. Viveram séculos em seus acampamentos, nômades como eles, na Dalmácia e outras regiões europeias. Daí essa amizade quase genética, registrada nos livros, entre dálmatas e cavalos, servidores dos gipsys. Devem ter viajado muito pelo mundo afora. Certa vez, num domingo de parque, Virgínia disparou e sumiu de minha vista. Fui encontrá-la bastante tempo depois, sentada sobre as patas traseiras, diante dum cavalo da guarda policial. Ambos sacudiam os rabos. Disse-me o policial que não era a primeira vez que um dálmata vinha conversar com seu cavalo.
Marcos Rey (Foto: Editora Globo)
No seu novo endereço, Virgínia, da janela, só tinha automóveis para ver. Até do gato, seu tradicional inimigo, devia ter saudade. Comprei-lhe um bichano de plástico. Bastou um olhar para desmistificar o embuste. Um dia soltamos a cadela nos jardins do edifício, muito necessitada de exercitar os músculos. Logo recebemos uma notificação: era proibido. Muito ofensivo principalmente para uma filha de tetra e pentacampeões, e que já tivera uma ninhada de primeira linha de seu acasalamento com o garboso Irã, um tricampeão nacional.
O que restou à Virgínia Ebony Spots foi a janela. Era triste vê-la da rua, apoiada no peitoril, a espiar o movimento como uma velha senhora, ou solteirona, personagem de Tenessee Williams, à margem de tudo. À noite às vezes também freqüentava a janela, fixando o olhar num imenso cavalo de neon vermelho, do outro lado da rua, anúncio de marca de cigarros.
Virgínia deu de dormir muito, só comer e engordar, perdendo a musculatura e as linhas harmoniosas dos dálmatas. E principalmente a vitalidade. Mesmo a afagos suas reações eram tardas e lentas. O pouco de sol que chegava ao living, filtrado entre os edifícios, mal lhe aquecia o corpo. Perseguia, parte da tarde, uma nesga morna e deslizante, ajeitando-se sobre ela para cochilar.
Uma veterinária disse que sua tosse era cardíaca, prenúncio do fim. Respirava com dificuldade, o que também sucedia aos humanos residentes no quarteirão. Ar e sol são produtos de luxo, para classe A, numa metrópole.
Em seu último dia, Virgínia dormiu muito e sonhou demais. Seus sonhos eram elétricos, percorriam-lhe o corpo, que tremia, eriçavam-lhe os pelos. Devia estar sonhando com os ciganos, os alegres e livres gipsys dos Balcãs, a cantar e dançar, tocando suas rebecas. E foi como se eu visse o cavalo de neon vermelho do outdoor acordá-la com relinchos, levando-a para correr e brincar noutra floresta, verde e oxigenada, muito diferente daquela de asfalto e cimento.
Marcos Rey
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