quarta-feira, julho 3

O cão dos ciganos

Ela era uma cachorra incrivelmente sociável: adorava visitas e festas, ocasiões em que comia gelo, mas ficava ainda mais contente quando todos iam embora. Se os convidados eram poucos, sentava-se no divã e olhando para um e para outro prestava muita atenção na conversa. Essa postura humana, interessada, cortês, despertava comentários e ela gostava disso: ser alvo de atenção e elogios. Às tantas eu lhe pedia que fosse deitar. Entendendo, despedia-se com lambidas nas mãos ou no rosto dependendo de seu grau de intimidade.

Não era uma cachorra treinada, apenas sabia abrir portas, forçando as traves metálicas com o peso de sua pata. A quem se admirasse, eu costumava dizer:


- Sabe que joga xadrez?

- Xadrez, a cadela?

- Não se espante, até agora só conseguiu me ganhar duas partidas.

Virgínia, era seu nome, e como tinha pedigree, possuía também sobrenome, Ebony Spots. Seus pais eram campeões de raça, tendo merecido manchetinhas nas colunas especializadas dos jornais. Virgínia, porém não fez carreira nas passarelas. Contentou-se em ser cão de companhia de um escritor e sua mulher.

Não disse que se tratava dum dálmata, esses cães brancos com manchas pretas, de porte médio, uma das raças preferidas pelos produtores de desenhos animados e filmes comerciais para a televisão. Uma raça fotogênica, de linhas bem definidas, esperta e muito charmosa. Virgínia orgulhava-se de ser dálmata, tanto que frequentemente mirava-se no espelho.

Durante quase toda a vida de Virgínia moramos num apartamento que possuía um imenso terraço florido. Sobrava-lhe espaço para correr, latir e viver. Contava, para diversão, até com um inimigo, certo gato da vizinhança, um provocador listrado, diário, que ajudava Virgínia a consumir ódios e erguer as orelhas. Nunca se pegaram porque o felino era medalha de ouro em saltos olímpicos.

Um dia tivemos de mudar. Coisas da inflação. Mas todo o espaço de Virgínia não coube no caminhão de mudança. Ainda lembro dela, desamparada, sem chão, a percorrer o terraço e os cômodos vazios do apartamento. E lembro também dela, já no novo lar, pesquisando e medindo distância, mais curtas, menos arejadas, e sem nenhum verde. Seu mundo se encolhera e o que adiantava latir no meio de tanta poluição sonora?

Os dálmatas sempre amaram a liberdade, bem que os ciganos lhes ensinaram. Viveram séculos em seus acampamentos, nômades como eles, na Dalmácia e outras regiões europeias. Daí essa amizade quase genética, registrada nos livros, entre dálmatas e cavalos, servidores dos gipsys. Devem ter viajado muito pelo mundo afora. Certa vez, num domingo de parque, Virgínia disparou e sumiu de minha vista. Fui encontrá-la bastante tempo depois, sentada sobre as patas traseiras, diante dum cavalo da guarda policial. Ambos sacudiam os rabos. Disse-me o policial que não era a primeira vez que um dálmata vinha conversar com seu cavalo.
Marcos Rey (Foto: Editora Globo)

No seu novo endereço, Virgínia, da janela, só tinha automóveis para ver. Até do gato, seu tradicional inimigo, devia ter saudade. Comprei-lhe um bichano de plástico. Bastou um olhar para desmistificar o embuste. Um dia soltamos a cadela nos jardins do edifício, muito necessitada de exercitar os músculos. Logo recebemos uma notificação: era proibido. Muito ofensivo principalmente para uma filha de tetra e pentacampeões, e que já tivera uma ninhada de primeira linha de seu acasalamento com o garboso Irã, um tricampeão nacional.

O que restou à Virgínia Ebony Spots foi a janela. Era triste vê-la da rua, apoiada no peitoril, a espiar o movimento como uma velha senhora, ou solteirona, personagem de Tenessee Williams, à margem de tudo. À noite às vezes também freqüentava a janela, fixando o olhar num imenso cavalo de neon vermelho, do outro lado da rua, anúncio de marca de cigarros.

Virgínia deu de dormir muito, só comer e engordar, perdendo a musculatura e as linhas harmoniosas dos dálmatas. E principalmente a vitalidade. Mesmo a afagos suas reações eram tardas e lentas. O pouco de sol que chegava ao living, filtrado entre os edifícios, mal lhe aquecia o corpo. Perseguia, parte da tarde, uma nesga morna e deslizante, ajeitando-se sobre ela para cochilar.

Uma veterinária disse que sua tosse era cardíaca, prenúncio do fim. Respirava com dificuldade, o que também sucedia aos humanos residentes no quarteirão. Ar e sol são produtos de luxo, para classe A, numa metrópole.

Em seu último dia, Virgínia dormiu muito e sonhou demais. Seus sonhos eram elétricos, percorriam-lhe o corpo, que tremia, eriçavam-lhe os pelos. Devia estar sonhando com os ciganos, os alegres e livres gipsys dos Balcãs, a cantar e dançar, tocando suas rebecas. E foi como se eu visse o cavalo de neon vermelho do outdoor acordá-la com relinchos, levando-a para correr e brincar noutra floresta, verde e oxigenada, muito diferente daquela de asfalto e cimento.
Marcos Rey

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