Versa sobre muito mais do que dizem seu título e subtítulo, ou seja, os contratempos que James Joyce passou com seus livros, pela cegueira e covardia dos editores do Reino Unido e dos Estados Unidos que, temerosos pela censura, as multas e os julgamentos, não se atreviam a publicá-los. O caso de Joyce é único: foi famoso antes de ter um só livro editado.
Ezra Pound |
Pound não deu o braço a torcer. Respondeu a todas essas objeções com argumentos literários, acusando os editores de cegos e medíocres e afirmando que o jovem escritor irlandês estava revolucionando a literatura de seu tempo e, em especial, a prosa literária da língua inglesa. Seu entusiasmo contagiou duas mulheres extraordinárias: Harriet Weaver, diretora de uma pequena revista literária inglesa, The Egoist, onde apareceriam os primeiros contos de Dublinenses e capítulos de Retrato do Artista quando Jovem, e Margaret Anderson, que em 1918 começou a publicar episódios de Ulisses na revista que dirigia nos Estados unidos, The Little Review. As duas enfrentaram ações judiciais por sua ousadia. Impertérritas, continuaram empenhadas em divulgar a obra de James Joyce e, inclusive, lhe enviaram dinheiro para ajudá-lo a sobreviver apesar de suas crônicas crises econômicas e do que gastava em oculistas.
Ao contrário dos editores da época, muitos escritores e livreiros (entre esses, a primeira editora de Ulisses, Sylvia Beach, a criadora da Shakespeare and Company, a livraria norte-americana de Paris) ficaram muito impressionados ao tomar conhecimento dos textos de Joyce. Ainda que provavelmente nenhum tenha demonstrado isso como Valery Larbaud (que seria o primeiro tradutor ao francês de Ulisses), que, após ler em The Little Review os fragmentos do grande romance de Joyce, lhe escreveu uma carta oferecendo-lhe sua casa (com uma criada) e sua grande biblioteca, além de sua célebre coleção de soldadinhos de chumbo. Joyce se mudou para lá com Norah, sua mulher, e seus dois filhos e por um bom tempo pôde continuar trabalhando com tranquilidade nesse romance que lhe tomaria mais de sete anos.
Ainda que a primeira edição em livro de Ulisses tenha aparecido em Paris em 1922 graças a Sylvia Beach, somente 12 anos depois – 1934 – um juiz de Nova York – John Woolsey – em uma memorável sentença autorizou a circulação do romance, que apareceria pouco depois já na edição da Random House. A sentença de Woolsey foi reproduzida nessa nova edição e abriria desde então um precedente decisivo a todas as tentativas de proibir a circulação de obras “atrevidas e desavergonhadas” nos Estados Unidos. Uma sentença semelhante foi emitida na Inglaterra nesse mesmo ano.
Nos dois países a reação da crítica foi muito semelhante. Quase todos os que escreveram sobre o romance reconheceram – alguns a contragosto – o gênio de Joyce e as extraordinárias novidades que o livro trazia tanto no domínio da língua como na estrutura da narração desse dia tão minuciosamente descrito de Leopold Bloom. Mas quase todos eles denunciavam a vulgaridade atroz do palavreado “pestilento” com o qual se expressavam não só os personagens como o próprio narrador e, principalmente, no longo monólogo final de Molly Bloom, que alguns chamaram de “insolente” e até mesmo “demoníaco”.
Cedo ou tarde todos eles reconheceriam que o romance seria a partir de então algo radicalmente diferente graças a Joyce e a sua prodigiosa realização. Esse sucesso se deveu em boa parte ao instinto e aos esforços de Ezra Pound. No extraordinário ensaio que dedicou ao livro foi o primeiro a reconhecer que desde o surgimento de Ulisses todos os romancistas contemporâneos, incluindo os que nunca o leram, seriam discípulos de Joyce; e isso também reconheceu William Faulkner, outro romancista fora do comum que provavelmente nunca teria escrito sua saga sulista sem as lições que recebeu lendo Joyce.
O serviço que Ezra Pound prestou ao autor de Ulisses não consistiu somente em encontrar editores para seus textos; também conseguiu mecenas que o ajudaram economicamente e lhe permitiram, por exemplo, operar tantas vezes seu olho direito. Quando se conheceram pessoalmente, em Paris, em 1918, Ezra Pound já estava havia quatro anos multiplicando esforços para divulgar a quem chamaria de “o renovador da cultura do Ocidente”. Pound é a figura mais simpática que aparece no livro de Kevin Birmingham.
É difícil identificar esse homem generoso e altruísta com o Ezra Pound que, durante a Segunda Guerra Mundial, pedia na rádio italiana que os jovens soldados norte-americanos desertassem de suas fileiras e repetia todas as maldades que os nazistas atribuíam aos judeus. Por isso foi capturado pelo Exército norte-americano e levado por toda a Itália em uma jaula, como um louco furioso. Depois, nos Estados Unidos, um tribunal, para não o fuzilar por traição à pátria, o declarou louco. E passou alguns anos em um manicômio. Em nossos dias, na Itália fascista de Matteo Salvini, uma das seitas mais radicais da ultradireita antidemocrática se chama nada menos do que CasaPound. Georges Bataille escreveu que o ser humano é uma jaula onde habitam os anjos e os demônios. Em poucas pessoas isso foi tão evidente como no caso de Ezra Pound.
Mario Vargas Llosa
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