sábado, novembro 30

Café com livros


A disciplina do amor

O homem é tão necessariamente louco que não ser louco representaria uma outra forma de loucura”, escreveu Pascal. Deve ter pensado nisso a psiquiatra Karen Horney quando fez uma lista dos sintomas básicos da neurose, uma lista enorme, dela quase ninguém escapa. A loucura no cardápio. Basta ler e apontar, esta é minha. Selecionei as neuroses mais comuns e que podem nos levar além da fronteira convencionada: necessidade neurótica de agradar os outros. Necessidade neurótica de poder. Necessidade neurótica de explorar os outros. Necessidade neurótica de realização pessoal. Necessidade neurótica de despertar piedade. Necessidade neurótica de perfeição e inatacabilidade. Necessidade neurótica de um parceiro que se encarregue da sua vida – ô Deus! – mas desta última necessidade só escapam mesmo os santos. E algumas feministas mais radicais.

 Ramona Kaulitzki
Tão difícil a vida e o seu ofício. E ninguém ao lado para receber a totalidade (ou parte) do fardo. Os analistas, caríssimos, e na maioria, um lixo: um lixo Freud considerava a totalidade dos seres humanos, isso nos últimos anos da sua vida sem muita ilusão. Ele não conheceu seus discípulos. E por acaso é com o analista que se comenta a fita na saída do cinema? O livro. O sabor do vinho, esse gosto meio frisante, hem? E esta pele e esta língua. A minha tiazinha falava muito na falta que lhe fazia esse ombro amigo, apoio e diversão, envelheceu procurando um. Não achou nem o ombro nem as outras partes, o que a fez choramingar sentidamente na hora da morte. Mas o que você quer, queridinha?! A gente perguntava. Está com alguma dor? Não, não era dor. Quer um padre? Não, não queria mais nenhum padre, chega de padre. Antes do último sopro, apertou desesperadamente a primeira mão ao alcance: “É que estou morrendo e não me diverti nada!"
Lygia Fagundes Telles

sexta-feira, novembro 29

Felicidade


Náufrago

Corro à máxima velocidade que consigo, levo alguma coisa a apertar-me o peito. A meio da corrida, chego à surpreendente conclusão de que é o peito que se aperta a si próprio. Corro em direção a algo que me parece imprescindível. Não sei há quanto tempo persigo essa miragem. Questiono-a por um instante, agora.

Horváth Balázs
E, de repente, é de novo o fim do dia. Terminou o prazo. De novo, o dia não foi suficiente, ou talvez tenha sido eu próprio que não fui suficiente. E outra vez o fim do dia, e outra vez, outra, outra, de repente, exatamente o mesmo instante, a repetição do mesmo fim de dia, a mesma derrota. De manhã à noite: a pressa de fazer qualquer tarefa para fazer a tarefa seguinte. Todas as horas de um dia inteiro: a calcular o tempo que demoro até um lugar de onde quero sair o mais rapidamente possível. Ainda aqui e já a pensar no tempo que demoro a ir lá e a regressar aqui.

E, de repente, é de novo o fim do dia. É terça-feira, é quarta-feira, é quinta, sexta; de repente, é de novo sexta-feira, terminou mais uma semana, estes dias não foram suficientes, ou talvez tenha sido eu próprio que não fui suficiente. Olho para a semana que passou e não consigo entender essa velocidade. Estou rodeado pelas ruínas do que não consegui fazer, cobrem a memória vaga de tudo o que me ocupou o tempo. E, agora, neste fim, parece-me que apenas fiz o que não queria.

E, de repente, é de novo dia 30. A repetição, cansativa e previsível: dia 27, dia 28, 29 e 30, é de novo dia 30, terminou mais um mês, abril, terminou abril. Estas semanas e cada um destes dias não foram suficientes, ou talvez tenha sido eu próprio que não fui suficiente. Ao longo deste mês que passou, como uma paisagem que ainda olho, mas a que não consigo chegar quando estendo o braço, estão os fantasmas do que adiei. Aqui, ao terminar este dia, semana, mês, parece-me que talvez adie essas possibilidades para sempre.

Agora é um instante. Agora é um breve intervalo. Amanhã, recomeça o tempo. Tenho hora para acordar, tenho hora e lugar para estar vestido, desperto, bem-falante, tenho uma lista de tarefas a cumprir. Quanto mais depressa terminar a primeira, mais cedo poderei começar a segunda e, assim, talvez, chegar à última. Essa é a meta, o horizonte que distingo lá longe, no interior das minhas próprias ideias. Avanço na direção daquilo que consigo imaginar: os pontos da minha lista cumpridos, um a um. E, no entanto, inesperadamente, há alguém que se atrasa, há alguma coisa que demora mais do que previa: o trânsito, a chuva, cálculos inocentes. E, no entanto, de repente, é de novo o fim do dia, é de novo sexta-feira, terminou a semana, é de novo dia 30, terminou o mês. O tempo não foi suficiente, ou talvez tenha sido eu próprio que não fui suficiente.

Agora, fecho os olhos, inspiro longamente. Agora, o tempo parece uma matéria informe, nada o pode conter, entra por todos os lados. Este é um navio a naufragar, o tempo é a água, entra pelas frinchas mais finas, o tempo é o oceano. Estou no último pedaço à tona e, em volta, apenas oceano noturno, apenas tempo. Em breve, irá submergir-me.
José Luís Peixoto

quinta-feira, novembro 28

Vamos passear?


Hora do anagrama

Preocupado com a situação nacional, dei tratos à bola para descobrir uma sugestão que esteja ao meu alcance e ajude a afastar a ameaça do caos. Sem sair do meu ramo, que é o da palavra escrita, concluí que a solução é anagramática. Já-já me explico. Anagrama vem do grego e quer dizer transposição de letras. Serve para criar pseudônimos, como Soares Guiamar, do Guimarães Rosa. Também se usa na cabala, entre iniciados. Mas isto é ocultismo.

É sobretudo um divertimento que consiste em formar outra palavra com as mesmas letras. Convém que a nova palavra traga chispa de espírito. Há tempos falei aqui de palíndromo, que pode ser lido de trás para diante. O mais conhecido é "Roma me tem amor". Foi uma surpresa o interesse dos leitores, que me mandaram várias contribuições. O Antonio Carlos de Oliveira me enviou de São Paulo um texto em francês com mais de cinco mil palíndromos!

Não me foi difícil transformar o caos em caso, saco, asco, ocas. E soca – sabe o que é? Levar uma soca, ir na soca. Resolvi partir então para um palíndromo, juntando ao caos algumas palavras em evidência. E uns poucos nomes próprios da atual cena política. Nisso, abro a revista Domingo do Jornal do Brasil e dou com o Luís Fernando Veríssimo. Um craque, que além de escrever, desenha. Estava lá a cara do Brasil e o caos decomposto assim: "Cá só/ asco,/ caos.../ saco!". Desisti do meu palíndromo e passo à sugestão adiante.

Quem gosta de palavras cruzadas, charadas e enigmas pode se divertir com o anagramatismo. Já foi verdadeira mania na Inglaterra, na França, na Alemanha. O latim e o grego se prestam muito a esse jogo e ostentam exemplos antológicos. No castelhano, um doido chegou a escrever uma novela capicua, que pode ser lida de trás para diante da primeira à última palavra. Convém não exagerar. Comece por desmanchar palavras como crise e catástrofe, sozinhas ou acompanhadas.

Repito que não basta trocar as letras de lugar até que se forme outra palavra. O toque de humor é fundamental. Assim como o caos vira saco, certos nomes de figurões, feito o anagrama, desvendam o seu segredo e até o seu ridículo. Quem quiser tente também o verso anacíclico, de maior sabor lúdico. Deixo aqui a sugestão. Pode não resolver a crise, mas não vai agravá-la. Um simples anagrama transforma o Brasil em libras. Não é fantástico? Um pequeno esforço e você encontra dólares, ouro e tudo mais.
Otto Lara Resende, Folha SP, 6/10/1991

Onde se atira nos livros...


Canetas

Todos nós, que escrevemos – e não falo apenas de escrever para publicar, mas de redigir notas, letras, cartas, mensagens, listas, crónicas, poemas… –, temos sempre certas canetas de que gostamos mais. Actualmente, a minha preferida é uma caneta Uniball de tinta preta (uso também muito a vermelha quando estou a editar) que, por fora, é maioritariamente cinzenta e de que compro muitos exemplares ao longo do ano. Não cansa, é macia, nem fina nem grossa. Mas, quando era adolescente, a escolha era mesmo reduzida (lembram-se do anúncio Bic Laranja, Bic Cristal? Pouco mais havia...), pelo que fiquei muito contente quando, talvez por volta dos 14 anos, a minha avó me ofereceu uma esferográfica Parker, que era macia e contribuía menos para aquele calo que se formava no dedo médio de tanto escrever. Depois, num repente, apareceu tudo e mais alguma coisa, e a Parker ficou obviamente para trás, soterrada por marcas mais cotadas, como a Montblanc. E não é que hoje, no meio daquela publicidade que invade diariamente as nossas caixas de correio electrónico, me aparece um reclame da Parker, que eu já julgava mais do que defunta? Mostrava um modelo novo e dizia assim: «A Parker nasceu em 1888, na Grã Bretanha, como fabricante de canetas de luxo. […] quando a ocasião sugere um presente memorável, quando nenhum presente comum serve, escolha uma bela caneta Parker. Será uma lembrança que vai combinar com o seu bom gosto.» Bateu cá uma saudade… Qualquer dia ainda volto à velhinha Parker. (Passe a publicidade.)

terça-feira, novembro 26

Coração de leitor


Um ano de ausência

 A porta aberta, você dava logo de cara com um azulejo na parede: “Aqui mora um solteiro feliz”. Uma pitada de humor com um toque popular. Essa graça espontânea que a tudo dá gosto. Do contrário, a vida é só enfado e mormaço. Era de fato um solitário. Precisava de ser só. Nisto, sua personalidade era feita de uma peça só. Incapaz de simulação, ou até, em certos casos, de uma ponta de hipocrisia que se debita à polidez social. 

Nunca vi solitário de porta tão aberta. Neste sentido, falando de Minas, do tempo em que lá viveu, observava o recato, a quase avareza com que os mineiros tratam o forasteiro. Talvez por isto nunca se esqueceu de um almoço em Caeté, que lhe deu uma página antológica do ponto de vista das duas artes – a culinária e a literária. Sendo um temperamento encolhido, sobretudo na mocidade, gostava desse clima de intimidade que cria laços de confiança e amizade para sempre.

À primeira vista, ou de longe, parecia, sim, isto que os franceses chamam de "ours". Um urso. Sempre metido consigo mesmo, fabricava o seu próprio mel. Espécie de ruminante, que se alimenta da matula que traz de nascença. Fugia da cilada sentimental, ou da emoção, pelo atalho do "sense of humour". Se sabia manejar a lâmina da ironia, nunca a usava a seco. Sempre compensada por uma tirada de forte teor humano. Horror ao pedantismo, à afetação. Não impostava a voz, nem a pena. 

Talvez tivesse qualquer coisa de bicho, esse homem sensível à beleza fugaz deste mundo. Na sua relação com a natureza, não havia intermediação de ordem intelectual. O coração da vida pulsava no seu coração. Alerta nos cinco sentidos, ser instintivo, sólido bom senso, era capaz de estranhar. No sentido em que se pergunta de um cão se ele estranha. Guardava distância do poder, mas não julgava o poderoso pela aparência. Independente diante do grande e do pequeno. 

Era um ser livre e lírico. Seu claro olhar de sabedoria espiava o Brasil com algum tédio. Paizão sem jeito, que trata mal as crianças e os pobres. O sentimento de justiça sem apelo ideológico. Muito antes do modismo conservacionista, pleiteou a causa do macaco carvoeiro e de todo e qualquer ser ameaçado. Tinha uma disponibilidade fundamental para ver e escrever. Um senhor poeta, o cronista Rubem Braga.

Café com letras

Sylvie Bulcourt

A incrível vida de Hernando, o filho bastardo de Colombo, considerado 'precursor' do Google

Não é um fato amplamente conhecido, mas quase tudo o que conhecemos sobre Cristóvão Colombo, sabemos graças ao filho bastardo dele, Hernando. Talvez a pessoa que melhor conheceu o "descobridor" da América.

Ambos protagonizam o "Memorial dos livros naufragados" (em tradução livre), obra do historiador e acadêmico da Universidade de Cambridge Edward Wilson-Lee. Um livro fascinante em vários níveis: fala da Idade Média e da Renascença, de intrigas e lutas pelo poder na corte dos monarcas católicos e seus sucessores. Das épicas navegações nos séculos 15 e 16, de grandes invenções, artistas e pensadores.

Mas, acima de tudo, detalha a vida de dois homens visionários ligados por um intenso amor fraternal.

Embora ele nunca tenha sido reconhecido legalmente, Hernando teve um relacionamento muito próximo com seu pai. Viajou com ele na quarta e última viagem de Colombo ao Novo Mundo e, assim como ele, teve grandes sonhos.


O Livro dos Epítomes, descoberto no início de 2019 em Copenhague,
na Dinamarca, no Instituto Arnamagnæan, ficou esquecido por 350 anos

Se Colombo queria conquistar o mundo, Hernando procurou conhecê-lo por meio da criação de uma biblioteca universal que englobava todos os livros, folhetos, partituras, pasquins e gravuras existentes no mundo. De todas as culturas, em todos os idiomas.


Mas ele não realizou apenas esse projeto extraordinário. Também fez mapas, ocupou cargos públicos, foi um viajante inveterado e escreveu uma biografia de seu pai que, durante séculos, foi a única referência que tínhamos sobre Colombo.

A BBC Mundo conversou com Wilson-Lee durante a celebração do Hay Festival na cidade peruana de Arequipa.

sábado, novembro 23

Por que hoje é sábado


Noites, estranhas noites, doces noites

Noites, estranhas noites, doces noites!
A grande rua, lampiões distantes,
Cães latindo bem longe, muito longe.
O andar de um vulto tardo, raramente.

Noites, estranhas noites, doces noites!
Vozes falando, velhas vozes conhecidas.
A grande casa; o tanque em que uma cobra,
Enrolada na bica, um dia apareceu.



A jaqueira de doces frutos, moles, grandes.
As grades do jardim. Os canteiros, as flores.
A felicidade inconsciente, a inconsciência feliz.

Tudo passou. Estão mudas as vozes para sempre.
A casa é outra já, são outros os canteiros e as flores
Só eu sou o mesmo, ainda não mudei!
Augusto Frederico Schmidt

Navegante


Os bruzundangas (prefácio)

Na Arte de furtar, que ultimamente tanto barulho causou entre os eruditos, há um capítulo, o quarto, que tem como ementa esta singular afirmação: "Como os maiores ladrões são os que têm por oficio livrar-nos de outros ladrões."

Não li o capítulo, mas abrindo ao acaso um exemplar do curioso livro, achei verdadeira a cousa e boa para justificar a publicação destas despretensiosas "Notas".

A "Bruzundanga" fornece matéria de sobra para livrar-nos, a nós do Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais completos. Sua missão é, portanto, como a dos "maiores" da Arte, livrar-nos dos outros, naturalmente menores.

Bem precisados estávamos nós disto quando temos aqui ministros de Estado que são simples caixeiros de venda, a roubar-nos muito modestamente no peso da carne-seca, enquanto a Bruzundanga os tem que se ocupam unicamente, no seu ofício de ministro, de encarecerem o açúcar no mercado interno, conseguindo isto com o vendê-lo abaixo do preço da usina aos estrangeiros. Lá, chama-se a isto prover necessidades públicas; aqui, não sei que nome teria…

E semelhante ministro daqueles "maiores" de que a Arte nos fala, destinados a ensinar-nos como nos livrar dos nossos modestos caixeiros de mercearias ministeriais.


Não contente com ter dessas cousas, a Bruzundanga possui outras muitas que desejava enumerar todas, pois todas elas são dignas de apreço e portadoras de ensinamentos proveitosos.

Como não poderíamos aproveitar aquele caso de um doutor da Bruzundanga, ele mesmo açambarcador de cebolas, que vai para uma comissão, nomeada para estudar as causas da carestia da vida, e propõe que se adotem leis contra os estancadores de mercadorias?

É que este doutor dos "maiores" de que nos fala o célebre livrinho sabia perfeitamente que não estancava e tinha o hábito de reservas mentais. Não açambarcava, mas "aliviava" logo uma grande porção de mercadorias para o estrangeiro, por qualquer cousa, de modo que… Le pauvre homme! Podia até iludir o nosso pobre Beckman!

Com este exemplo, os menores daqui poderão ser denunciados por este grandalhão de lá, tão generoso e desinteressado, e o nosso povo poderá livrar-se deles.

Conheci na Bruzundanga um rapaz (creio que está nas "Notas"), de rabona de sarja e ares de familiar do Santo Ofício, mas tresandando a Comte, senão a anticlericalismo, que, de uma hora para a outra, se fez reitor do Asilo de Enjeitados, apandilhado com padres e frades, depois de ter arranjado um rico casamento eclesiástico, a fim de ver se, com o apoio da sotaina e do solidéu, se fazia ministro ou mesmo mandachuva da República. Que "maior" não acham?

E aquele que, tendo sido ministro do imperador da Bruzundanga e seu conselheiro, se transformou em açougueiro para vender carne aos vizinhos a dez réis de mel coado, graças às isenções que obteve com o prestígio do seu nome, dos seus amigos, da sua família e das suas antigas posições, enquanto os seus patrícios pagavam-lhe o dobro?

Quantos exemplos de lá, bem grandes, nos irão precaver contra os pequeninos de cá… A Arte fala a verdade…

Outra cousa curiosa da Bruzundanga, das grandes, das extraordinárias, é a sua "Defesa Nacional".

Lá, como em toda a parte, se devia entender por isso a aquisição de armamentos, munições, equipamentos, adestramento de tropas, etc.; mas os doges do Kaphet (vide texto) entenderam que não; que era dar-lhes dinheiro, para elevar artificialmente o preço de sua especiaria. De que modo? Retendo o produto, proibindo-lhe a exportação desde certo limite, conquanto se houvessem tenazmente oposto a que semelhante medida fosse tomada no que toca às utilidades indispensáveis à nossa vida: cereais, carnes, algodão, açúcar, etc.

É preciso notar que tais utilidades, como já fiz notar, iam para o estrangeiro por metade do preço, menos até.

Aprendamos por aí a conhecer os nossos "menores".

Poderia muito bem falar de outros grossos casos de lá, capazes de nos livrar dos tais pequenos daqui; mas, para quê?

As páginas que se seguem vão revelá-los e eu me dispenso de narrá-los neste curto prefácio, Pobre terra da Bruzundanga! Velha, na sua maior parte, como o planeta, toda a sua missão tem sido criar a vida e a fecundidade para os outros, pois nunca os que nela nasceram, os que nela viveram, os que a amaram e sugaram-lhe o leite, tiveram sossego sobre o seu solo!

Ainda hoje, quando o geólogo encontra nela um queixal de Megatherium ou um fêmur de Propithecus tem vontade de oferecer à Minerva uma hecatombe de bois brancos!

Vivos, os bons são tangidos daqui para ali, corridos, vexados, se têm grandes ideais; mortos, os seus ossos esperam que os grandes rios da Bruzundanga os levem para fecundar a terra dos outros, lá embaixo, muito longe…

Tudo nela é caprichoso, e vário e irregular. Aqui terreno fértil, úbere; acolá, bem perto, estéril, arenoso.

Se a jusante sobra cal, falta água; se há para montante, falta cal…

As suas florestas são caprichosas também; as essências não se associam. Vivem orgulhosamente isoladas, tornando-lhes penosa a exploração. Aqui, está uma espécie e outra semelhante só sé encontrará mais além, distante…

Envelheceu, está caduca e tudo que vem para ela sofre-lhe o contágio da sua antiguidade: caduquece!

Contudo, e talvez por isso mesmo, os seus costumes e hábitos podem servir-nos de ensinamento, pois, conforme a Arte de furtar diz: "os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões".

Por intermédio dos dela, dos dessa velha e ainda rica terra da Bruzundanga, livremo-nos dos nossos: é o escopo deste pequeno livro.
Lima Barreto, Todos os Santos, 2-9-17

sexta-feira, novembro 22

Magia portátil


O trem

A inauguração da estrada de ferro aconteceu com música. A bandinha tocou marchas, dobrados e maxixes para saudar o desembarque feliz dos primeiros passageiros. Construído pela administração da companhia que implantou a estrada de ferro, um barracão serviu como o primeiro ponto oficial do desembarque.

O trem passou a fazer parte da vida da cidade.

Na partida, os carregadores colocavam apressados malas e embrulhos pelas janelas dos vagões. Reservavam os lugares melhores para os seus fregueses conhecidos. Na chegada, sempre os mesmos carregadores recebiam malas e embrulhos pelas janelas dos vagões.

O trem era uma coisa viva que partia e chegava, trazendo as cargas de peixe, caju e coco. Pelo apito ficava-se sabendo a hora certa da partida e chegada. Encontros eram marcados pelo apito do trem, de manhã e à tarde, às vezes importantes.

Nos rastros do sonho, vejo a trem fagulhando, atritando, apitando. No vento, no verde, na várzea. Entre os passageiros segue com a conversa tola, velha a mansa. Gente de alpercata fuma na tarde de verão seu cigarrinho de palha.

Quando passa, o trem fala com as pessoas que estão no terreiro, nas portas e janelas das casas à beira da estrada.

Na aurora, na tarde, na fumaça, lá vai o trem.

Quando ele deu o último apito na estação velha, não ficou fogo morto nem sucata. Nem qualquer sinal de fumaçazinha se perdendo no longe.

No menino permaneceu um percurso luminoso feito por vagões, indo e vindo, subindo e descendo por trilhos que tinham um tom marcante de vozes coloridas na paisagem.

Vagões levavam dias de sol e chuva, traziam a estação de magníficos sabores.

Moleques vendiam cordas de caranguejo na plataforma. Vovó Maria Conga mercava beiju de Água Branca, lugarejo que ficava distante alguns quilômetros da cidade pequena. Do tabuleiro de Vovó Maria Conga vinha o cheiro de mingau quente, atraindo na manhã os fregueses com o rosto de sono.

O trem dava ao menino momentos alegres de aventuras indescritíveis. Certo sentimento humano corria com o vento e formava com a natureza uma relação amiga.

Pela janela desfilavam vales e outeiros.

Gado manso no verde subia a encosta.

No céu nuvens como barcos, almofadas, rochas brancas.

O sol brilhava a manhã com fios de ouro nas folhas de capim.

A cachoeira batia nas pedras uma pancada formosa.

Os olhos do menino viajavam na paisagem.

Quando mais olhavam, mais queriam olhar.

E de olhar tanto nunca se cansavam.

Aos sábados havia uma algazarra na chegada.

Atos, ruídos e gestos propagavam-se pela plataforma.

No desembarque, como se fosse feita de papagaios e periquitos, mais aumentava a algazarra.

No peito do menino, a tarde reverberava as cores do verão.

A paisagem acomodava-se ali no quarto, os olhos semitontos de sono. Reaparecia num sonho quente e puro, descendo e subindo pelos campos verdes do pequeno coração.
Cyro de Mattos

De bike nova


Anunciação

Não se pode invocar. Acontece. Como o suor ou intranquilidade. Já me aconteceu ao sair para correr. Ao flutuar na água sob um sol escaldante nas ilhas do mar de Andamão. Ao perceber, às três da tarde, que ainda faltava tanto. Ao abrir minha caixa de costura e ver a fita métrica, as linhas, os alfinetes, esse cuidado caseiro, incrível, minúsculo. Ou tirando os trevos dos vasos de barro do terraço. Sim. Principalmente tirando os trevos aos vasos do terraço. Já me aconteceu muitas vezes. Algumas eu lembro. Uma noite da minha infância, quando estava na casa da minha avó e meu pai chegou para me buscar de surpresa com duas entradas para o cinema. Uma tarde de verão, enquanto cortava a grama e vi uma rosa de cor laranja que parecia um gomo de fogo. Um entardecer de domingo de inverno: tinha muito frio e estava voltando para casa depois de ter ficado no campo, de ter perdido os óculos de sol sem me importar com isso, estava suja e cansada e sentia o belo peso da vida aqui. Aconteceu durante muitos dias nos anos noventa, enquanto pintava uma sacada escutando o rádio e olhando de relance filmes ruins em uma TV antiga que funcionava mal. É uma espécie de licantropia branca. Uma anunciação, uma santidade que não pode ser contida. Não é um alívio nem uma trégua. É um momento estático. Como se o mundo ficasse quieto e exalasse geometria. Não é euforia. É uma atração sem exaltações, uma imersão batista. Um transe. Uma levitação na qual entendo tudo. Faz muito tempo que não me acontece. Mas isso não me importa. O que me importa é saber quantas vezes mais vai me acontecer antes que tudo acabe. Quatro, cinco? Sinto como se estivesse dizendo adeus a tudo.

quinta-feira, novembro 21

Portal do paraíso


O porteiro cego

À entrada do edifício, atrás de uma escrivaninha, sentava-se o velho porteiro cego. Reconhecia-me, acreditava eu, pelo sotaque dos meus passos. Sempre se adiantava ao meu cumprimento: “Bom dia, senhor Vasconcelos! Como vai o senhor?”

O velho troçava da própria condição:

“Já vi dias melhores.”

Depois perguntava pelos meus filhos. Comentava algum artigo meu. Por vezes, encontrava a mulher dele, uma senhora ainda jovem, sentada, a ler os jornais em voz alta, enquanto o porteiro escutava, num silêncio atento. Era um homem magro, com um rosto comprido e seco, riscado de cicatrizes. A mulher, Dona Esmeralda, redonda e lisa como uma uva, gostava de rir. Ria muito, por tudo e por nada. Costumava ouvi-la cantar enquanto varria o pátio. Foi Dona Esmeralda quem me contou como o marido perdeu os olhos:

“Esteve na guerra, como sapador. Um dia se distraiu, enquanto desarmava uma mina… Pum!” — E riu-se.

De volta a Luanda, passei diante do edifício. Decidi entrar para rever o velho Vasconcelos. Continuava lá, no seu posto:

“Senhor Zé?! Há quantos anos!”

Abracei-o. Perguntei pela esposa. Disse-me que Dona Esmeralda morrera de malária, dois anos antes. Não tendo ninguém para lhe ler os jornais, Vasconcelos ouve rádio. Continua a par de tudo quanto acontece no país e no mundo. Sentei-me a conversar com ele. Pela primeira vez, fiz-lhe a pergunta que trazia presa há tantos anos:

“Como você consegue reconhecer as pessoas, antes mesmo que elas digam alguma coisa?”

O velho hesitou um instante:

“Não sei bem.”

“Não é pelo som, pela maneira como caminham?” — insisti.

“No início, sim, eu prestava muita atenção aos sons. Prestava atenção aos cheiros. Depois, me habituei. Agora reconheço as pessoas, mesmo ao longe, antes que elas digam alguma coisa, mas não sei como faço isso. Apenas olho para elas e sei quem são.”

Conheci um caso ainda mais assombroso. Em 2006, entrevistei uma antiga lenda da música popular urbana de Moçambique, João Domingos, um senhor de muita idade, que mantinha intacto o aprumo e a elegância com que se havia celebrizado, nos anos 1950. Elogiei-lhe a boa forma física. Disse-me que se sentia muito bem. Só não estava conseguindo ler as letras pequenas dos jornais, de forma que decidira consultar um oftalmologista. Depois de o observar atentamente, o médico sentara-se, atônito, diante dele: “Não sei como lhe dizer isto, mas o senhor não deveria ver nada. O senhor é cego”. Um outro especialista confirmou o veredicto do primeiro. Anos mais tarde, conheci uma filha de João Domingos. Disse-lhe que entrevistara o pai. “Deve ter-lhe contado muitas mentiras”, disse-me, abrindo um enorme sorriso: “Ele é um grande mentiroso”. Lembrei-me da estranha história que o velho me contara. Ela ficou séria: “Não! Não! Isso é verdade!”

Talvez sejamos quase todos cegos — de sentidos que ainda nem sequer sabemos nomear —, apenas porque não queremos ou não sabemos ver. Então, de repente, perdemos um sentido, e, sem nos darmos conta, ganhamos acesso a outros. Vê quem quer ver, tendo olhos ou não.

segunda-feira, novembro 18

Biblioteca animal


Necessidade biológica

A leitura é uma necessidade biológica da espécie. Nenhum ecrã e nenhuma tecnologia conseguirão suprimir a necessidade de leitura tradicional
Umberto Eco

Os eternos 'suspeitos'


Celso, eu e nossos livros

Há dias uma certa tensão me ronda, dessas que não inoculam qualquer um, suponho: estou falando da síndrome da separação dos livros. De milhares de livros, que pesam 6 toneladas e medem, nas estantes, quase 1 quilômetro de lombadas. Explico-me: vou doar a Biblioteca Celso Furtado para o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo. Para lá também irão os arquivos pessoais de Celso.

Faz dez anos que a Biblioteca Celso Furtado está organizadíssima, com catálogo on-line, acesso ao público e sendo cuidada pela maravilhosa Aline Balue. Mas chegou a hora de virar a página. Livros e arquivos pessoais — a “papelada” — estarão lado a lado, formando um conjunto do que Celso deixou de sua vida como intelectual e homem público.


Enquanto correram os trâmites da doação, tudo pareceu profissional, asséptico, distante. Mas agora trata-se da separação física, o que é bem diferente. Para efeitos informáticos, já estão separadas a Biblioteca Celso Furtado e a minha. Justamente: esse “minha” agrava a síndrome. Pois, se por anos a fio percorremos tantas livrarias, tantos sebos em becos mais ou menos sinistros da Ásia, da América Latina, do Leste Europeu, se o excesso de bagagem era sempre por acúmulo de livros, sinto que esses livros eram “nossos”.

Um dia, Celso e eu estávamos em Paris, na casa pequena e cheia de livros por todas as paredes, e ele me perguntou: “O que nós vamos fazer com esses livros?”. Logo depois, sabedor dos 28 anos de diferença entre nós, emendou: “O que você vai fazer com todos esses livros?”. “Vou fazer o que você quiser”, respondi. Começou ali o sentido de responsabilidade que eu tinha em relação à herança intelectual do Celso. Afinal, havíamos nos conhecido em 1979, quando nos vimos numa feijoada na casa de exilados brasileiros, e só fazíamos acumular livros.

São três vertentes: a biblioteca, a papelada e o trabalho editorial que fiz com a obra e vida dele. Eram três bibliotecas. A primeira era formada por todos os livros que ele tinha desde garoto até 1964 e foi deixada no Rio de Janeiro, quando saiu para o exílio com 43 anos e uma mala de 25 quilos na mão. A partir daí começa a segunda e maior biblioteca, a de Paris, montada entre 1965 e 1985, até ele retornar ao Brasil. A terceira biblioteca começa no fim do exílio. Ele não traz nada de Paris, e monta essa última até sua morte, em 2004.

Quando ele morreu, comecei a fazer o inventário e logo tive a consciência de que os livros não tinham grande valor. Celso não era um bibliófilo, de comprar livros de primeira edição, raros. Mas, necessariamente, há raridades na biblioteca. Ele não foi atrás de edições específicas, comprava para ler, mas, com o passar dos anos, esses livros se tornaram raridades, como acontece com qualquer um que os conserva.

Para minha sorte, quando foi criado o Centro Celso Furtado — um centro idealizado pelo (ex-presidente) Lula para pensar o desenvolvimento do Brasil e que levou o nome do Celso —, as bibliotecas se tornaram uma única. Com o anúncio da criação do centro, comecei a mudança dos livros. Só em Paris havia 6 mil, majoritariamente acadêmicos. Foi um sufoco, porque não havia mais transportadora que mandasse unicamente livros para o Brasil. As transportadoras ganham por metro cúbico e só queriam as mudanças de diplomata, que tem sofá, um monte de poltronas, mesa etc. Eu só tinha livro. Consegui uma que topou, desde que eu embalasse. Virei empacotadora de livro. Foi um tal de comprar caixa de papelão em Paris... Nossa casa, perto da Sorbonne, numa região que os brasileiros chamam de Baixo Quartier Latin, virou uma pirâmide de caixas.

“Tomei coragem: estou bravamente arrumando a pilha ‘VAI’ e a ‘FICA’. E lembrando de uma velhinha, minha vizinha em Paris, que botou para correr a assistente social que queria arrumar sua casa: ‘Pode jogar fora tudo que quiser, mas não pode tocar em meus livros”

A primeira parte da biblioteca estava num apartamento que Celso tinha no Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro, e a terceira estava em nossa casa também no Rio, em Copacabana. Essa terceira tem uma parte minha, com meus romances, e muitos livros de arte dele. No total, somadas as três, são 14 mil livros. Celso nunca viu, obviamente, essa biblioteca reunida. E lá tem de tudo. Ele tinha uma cabeça interdisciplinar. Era um dos economistas mais abertos a outras ciências sociais da geração dele. Era focado em economia, mas a quantidade de livros sobre história, psicanálise, literatura e filosofia é inacreditável.

Além dos livros, percebi que, quando o Celso morreu, eu tinha mais um dever. Não faço questão de ganhar dinheiro com a obra do Celso. Ele me fez herdeira por testamento de todos os livros e de todo o acervo pessoal e documental. Herdei um patrimônio grande, em peso, mas também em importância histórica. Comecei primeiro pelo trabalho editorial, de maneira que os livros clássicos dele sejam reeditados periodicamente. Fiz a edição definitiva — que é quando o próprio autor ou alguém com a capacidade para tanto consegue cotejar os originais — de "Formação econômica do Brasil" na Companhia das Letras. Pegamos os manuscritos e fomos cotejando. Dos 30 livros do Celso, fizemos quatro edições definitivas. Também organizamos os artigos, os ensaios, entre outros projetos. Eu francamente acho que é um dever, mas tenho prazer em fazer livro. Existe o lado efetivo, claro, mas são os arquivos de uma pessoa que foi muito importante para o Brasil.

Fora os livros e o trabalho editorial, comecei a pensar num dado momento no que fazer com a papelada. Justamente por Celso ter morado fora durante muito tempo, os pais dele guardaram seus papéis por anos. “Não mexe nessas coisas aí porque são as coisas do Celso.” Até um capacete americano da Segunda Guerra Mundial, de quando ele serviu na Força Expedicionária Brasileira (FEB), tenho em casa. Há ainda os documentos da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal). Há um acervo em especial que é uma matéria-prima riquíssima para pesquisadores, que são os papéis dele da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene, criada por Furtado no governo JK). Quando houve o golpe de 1964, Celso presidia a Sudene desde 1959. Ao chegar a notícia de que o general Olímpio Mourão Filho estava se rebelando no Sul, ele tentou entrar na Sudene, mas a superintendência já estava sob intervenção. O militar o deixou entrar, e Celso pegou seus documentos pessoais. Tudo isso está lá em casa, os documentos dos governos Juscelino, Jânio e Jango.

Agora, editei os diários do Celso, que chamei de "Diários intermitentes". O nome é apropriado porque ele não era um “diarista”, não escrevia todo dia, mas os diários foram muito importantes para ele em alguns momentos. Ali escreveu sobre as primeiras vezes em que ia a um país, encontros com personalidades, horas de tensão... Por exemplo, escreveu depois de ter participado de uma batalha política violenta. E ainda há os balanços de vida. O primeiro foi quando voltou da guerra, aos 25 anos, e escreve mostrando que não seguiria o Direito, decidindo ir para a Europa. Depois, faz o mais profundo dos balanços, quando chega a (Universidade) Yale, em setembro de 1964, meses depois do golpe. É o começo do longo exílio. Celso diz pertencer a uma geração derrotada, que não soube lutar contra o subdesenvolvimento. Depois, a última reflexão foi escrita em 1975, dez anos depois de ele partir para o exílio. Celso relata que o Brasil que ele descobre é um país de muita concentração de renda, dos ricos cada vez mais ricos, distante do país com o qual ele sonhara. É um relato triste.

Mas, agora, o que mais sinto é a separação dos livros. Como se separar dos que vêm da adolescência; da coleção herdada dos pais, encadernada com iniciais em dourado; dos livros de arte folheados com cuidado para não estragá-los; dos que, ao contrário, estão cheios de rabiscos porque serviram para o trabalho; dos romances lidos e que não tem mais sentido guardar; inversamente, dos não lidos, que a gente comprou achando que ia ler logo, logo, e que esperam há anos? E os livros dos amigos, com dedicatórias, os de gente que mal se conhece, os de antigos namorados? E os livros que a gente fez, seja porque os escreveu, os traduziu? Tomei coragem: estou bravamente arrumando a pilha “VAI” e a pilha “FICA”. E lembrando de uma velhinha, minha vizinha em Paris, “alzheimada’’ em último grau, que botou para correr a assistente social que queria arrumar sua casa: “Pode jogar fora tudo que quiser, mas não pode tocar em meus livros”.
Rosa Freire D’Aguiar, viúva do economista Celso Furtado, decidiu doar os 14 mil livros que os dois compraram juntos pelo mundo

domingo, novembro 17

Café da manhã

Sara Netherway

O livreiro Garnier

Segunda-feira desta semana, o livreiro Garnier saiu pela primeira vez de casa para ir a outra parte que não a livraria. Revertere ad locum tuum — está escrito no alto da porta do cemitério de S. João Batista. Não, murmurou ele talvez dentro do caixão mortuário, quando percebeu para onde o iam conduzindo, não é este o meu lugar; o meu lugar é na Rua do Ouvidor 71, ao pé de uma carteira de trabalho, ao fundo, à esquerda; é ali que estão os meus livros, a minha correspondência, as minhas notas, toda a minha escrituração.

Durante meio século, Garnier não fez outra coisa senão estar ali, naquele mesmo lugar, trabalhando. Já enfermo desde alguns anos, com a morte no peito, descia todos os dias de Santa Teresa para a loja, de onde regressava antes de cair a noite. Uma tarde, ao encontrá-lo na rua, quando se recolhia, andando vagaroso, com os seus pés direitos, metido em um sobretudo, perguntei-lhe por que não descansava algum tempo. Respondeu-me com outra pergunta: Pourriez-vous résister, si vous étiez forcé de ne plus faire ce que vous auriez fait pendant cinquante ans? Na véspera da morte, se estou bem-informado, achando-se de pé, ainda planejou descer na manhã seguinte, para dar uma vista de olhos à livraria.


Essa livraria é uma das últimas casas da Rua do Ouvidor; falo de uma rua anterior e acabada. Não cito os nomes das que se foram, porque não as conhecereis, vós que sois mais rapazes que eu, e abristes os olhos em uma rua animada e populosa, onde se vendem, ao par de belas jóias, excelentes queijos. Uma das últimas figuras desaparecidas foi o Bernardo, o perpétuo Bernardo, cujo nome achei ligado aos charutos do Duque de Caxias, que tinha fama de os fumar únicos, ou quase únicos. Há casas como a Laemmert e o Jornal do Commercio, que ficaram e prosperaram, embora os fundadores se fossem; a maior parte, porém, desfizeram-se com os donos.

Garnier é das figuras derradeiras. Não aparecia muito; durante os 30 anos das nossas relações, conheci-os sempre no mesmo lugar, ao fundo da livraria, que a princípio era em outra casa, n.69, abaixo da Rua Nova. Não pude conhecê-lo na da Quitanda, onde se estabeleceu primeiro. A carteira é que pode ser a mesma, como o banco alto onde ele repousava, às vezes, de estar em pé. Aí vivia sempre, pena na mão, diante de um grande livro, notas soltas, cartas que assinava ou lia. Com o gesto obsequioso, a fala lenta, os olhos mansos, atendia a toda gente. Gostava de conversar o seu pouco. Neste caso, quando a pessoa amiga chegava, se não era dia de mala, ou se o trabalho ia adiantado e não era urgente, tirava logo os óculos, deixando ver no centro do nariz uma depressão ao longo uso deles. Depois vinham duas cadeiras. Pouco sabia da política da terra, acompanhava a de França, mas só o ouvi falar com interesse por ocasião da guerra de 1870. O francês sentiu-se francês. Não sei se tinha partido; presumo que haveria trazido da pátria, quando aqui aportou, as simpatias da classe média para com a monarquia orleanista. Não gostava do império napolêonico. Aceitou a república, e era grande admirador de Gambetta.

Daquelas conversações tranquilas, algumas longas, estão mortos quase todos os interlocutores, Liais, Fernandes Pinheiro, Macedo, Joaquim Norberto, José de Alencar, para só indicar estes. De resto, a livraria era um ponto de conversação e de encontro. Pouco me dei com Macedo, o mais popular dos nossos autores, pela Moreninha e pelo Fantasma branco, romance e comédia que fizeram as delícias de uma geração inteira. Com José de Alencar foi diferente; ali travamos as nossas relações literárias. Sentados os dois, em frente à rua, quantas vezes tratamos daqueles negócios de arte e poesia, de estilo e imaginação, que valem todas as canseiras deste mundo. Muitos outros iam ao mesmo ponto de palestra. Não os cito, porque teria de nomear um cemitério, e os cemitérios são tristes, não em si mesmos, ao contrário. Quando outro dia fui a enterrar o nosso velho livreiro, vi entrar no de S. João Batista, já acabada a cerimônia e o trabalho, um bando de crianças que iam divertir-se. Iam alegres, como quem não pisa memórias nem saudades. As figuras sepulcrais eram, para elas, lindas bonecas de pedra; todos esses mármores faziam um mundo único, sem embargo das suas flores mofinas, ou por elas mesmas, tal é a visão dos primeiros anos. Não citaremos nomes.

Nem mortos, nem vivos. Vivos há-os ainda, e dos bons, que alguma coisa se lembrarão daquela casa e do homem que a fez e perfez. Editar obras jurídicas ou escolares não é mui difícil; a necessidade é grande, a procura, certa. Garnier, que fez custosas edições dessas, foi também editor de obras literárias, o primeiro e o maior de todos. Os seus catálogos estão cheios dos nomes principais, entre os nossos homens de letras. Macedo e Alencar, que eram os mais fecundos, sem igualdade de mérito, Bernardo Guimarães, que também produziu muito nos seus últimos anos, figuram ao pé de outros, que entraram já consagrados, ou acharam naquela casa a porta da publicidade e o caminho da reputação.

Não é mister lembrar o que era essa livraria tão copiosa e tão variada, em que havia tudo, desde a teologia até a novela, o livro clássico, a composição recente, a ciência e a imaginação, a moral e a técnica. Já a acheia feita; mas vi-a crescer ainda mais, por longos anos. Quem a vê agora, fechadas as portas, trancados os mostradores, à espera da justiça, do inventário e dos herdeiros, há de sentir que falta alguma coisa à rua. Com efeito, falta uma grande parte dela, e bem pode ser que não volte, se a casa não conservar a mesma tradição e o mesmo espírito.

Pessoalmente, que proveito deram a esse homem as suas labutações? O gosto do trabalho, um gosto que se transformou em pena, porque no dia em que devera libertar-se dele, não pôde mais; o instrumento da riqueza era também o do castigo. Esta é uma das misericórdias da Divina Natureza. Não importa: laboremus. Valha sequer a memória, ainda que perdida nas páginas dos dicionários biográficos. Perdure a notícia, ao menos, de alguém que neste país novo ocupou a vida inteira em criar uma indústria liberal, ganhar alguns milhares de contos de réis, para ir afinal dormir em sete palmos de uma sepultura perpétua. Perpétua!
Marchado de Assis

sábado, novembro 16

Na biblioteca

Dawn Elaine Darkwood

Mundo de histórias

 Stephan Jorisch
O mundo deve estar feito de histórias, porque são as histórias que a gente conta, que a gente escuta, recria, multiplica, as histórias são as que permitem transformar, o passado em presente. E que, também, permitem transformar o distante em próximo, o que está distante em algo próximo, possível e visível
Eduardo Galeano

Quando se lê...

 Simone Rea

Uma volúpia carmim

O velho vinha descendo a rua como se puxasse o sol, o céu crescendo atrás dele, azulíssimo, e nem era mais céu, era um mar avançando sob as nossas cabeças espantadas, com as suas pirogas, dongos lentos, cardumes prateados nadando entre algas roxas. O mundo ia nascendo à medida que o velho se aproximava: casas baixas, ofegantes, sob a sombra maciça das mangueiras; a melancolia torta de um coqueiro; a buganvília, esmagando o grosso muro numa volúpia carmim. Sorriu, a três metros de distância:

– Posso sentar-me?

Indiquei-lhe a cadeira vazia, ao lado da minha. Sentou-se, esticou as pernas longas e magras. Estalou os dedos. Tirou um cachimbo do bolso do casaco e preparou-o com carinho:

– O cavalheiro veio ao Dondo em passeio?

Disse-lhe a verdade: que trabalho como quem se passeia, e me passeio por imposições de trabalho. Além disso, viajo mais em pensamento do que enquanto me desloco. Perguntou-me se já tinha estado na cidade. Disse-lhe que só em pensamento.

– E era assim? No seu pensamento?

– Igualzinha, sem tirar nem pôr.

Derretendo ao sol. Desmoronando à chuva. Perguntou-me se conhecia a história do bode que, no início do século passado, fora o carteiro da cidade. Não lhe ocorria o nome do bicho.

– Gregório – disse eu. – Como o Gregório de Matos.

Imaginei o poeta baiano durante os longuíssimos meses em que esteve desterrado em Angola. Vi-o calcorreando as ruas antigas do Dondo, enquanto ensaiava versos de escárnio contra os padres e os poderosos. Talvez se tivesse sentado à soleira daquela mesma porta.

– Sim, Gregório – disse o velho, não parecendo surpreendido por eu saber o nome do bode. – As pessoas prendiam recados aos chifres dele. Diziam-lhe entrega isto ao padeiro, vamos supor, e lá ia o bode. Nunca falhava uma entrega. Acontece que o farmacêutico se apaixonou pela mulher do chefe da polícia, uma senhora alta e orgulhosa chamada Glória. Lembro-me dela, anos depois da tragédia, caminhando sob o sol, de sombrinha na mão, vaga e vagarosa como uma princesa etíope. Também me lembro do farmacêutico, um homenzinho amarelo, que padecia de febres perpétuas, paludismo ou tísica, ou ambas as maleitas, pouco importa. Ninguém dava nada por ele. O senhor sabe o que aconteceu?

– Sei…

– O farmacêutico enviou uma carta de amor à mulher do chefe da polícia. Magalhães, era o nome do chefe da polícia, esse nome não esqueci. O Gregório precisava de atravessar a cidade de uma ponta à outra para entregar a carta e, no caminho, talvez porque fizesse ainda mais calor do que o habitual e ele tivesse muita sede, parou no bar do Moreira.

– Consta que o bode tinha sempre muita sede.

– É essa a lenda. Que o bode gostava de parar para beber cerveja no bar do Moreira. Havia sempre alguém disposto a pagar-lhe uma cerveja. Até tinham uma tigela com o nome dele, no chão, num canto do bar. Nessa tarde teve pouca sorte. O chefe da polícia estava lá, jogando xadrez com o Moreira, um anarco-sindicalista do Porto ou de Braga, tanto faz, degredado para cá, como tantos outros, por crimes políticos, e que uma vez desembarcado em Luanda nunca mais pensou em retornar. O Magalhães viu o envelope dirigido à esposa. Cheirou-o. Cheirava a perfume. Abriu o envelope, leu a carta, sacou a pistola do cinto e disparou dois tiros nos cornos do Gregório. Bem, nos cornos não, antes tivessem sido nos cornos. Ele atirou no focinho mesmo. O bicho ficou estendido no soalho, jorrando sangue para todo o lado. Depois o Magalhães caminhou até à farmácia, seguido pelo Moreira e por outros homens que se foram juntando, alertados pelos disparos. O farmacêutico ouviu o alarido, viu o grupo ao longe, e percebendo o que sucedera fugiu a sete pés. Apareceu morto dois dias depois, afogado no Quanza.

– Disseram-me que apareceu enforcado num imbondeiro.

– Ou enforcado, tanto faz.

Corvos discutiam, numa áspera gritaria, entre a folhagem cerrada da mangueira. Imaginei o farmacêutico sendo resgatado das águas. Imaginei-o pendendo do tronco retorcido de um imbondeiro.

– Eu tinha apenas cinco anos – disse o velho. – E ele era meu pai, esse farmacêutico. O senhor sabe o que é crescer sem um pai? Numa terra como esta?

Não soube o que responder. O sol já me mordia os pés. Dali a poucos minutos o calor seria intolerável e eu teria de me refugiar na sala, rezando para que a eletricidade não caísse e o ar condicionado continuasse funcionando em condições. O calor enlouquece as pessoas e os lugares. Em todas as grandes cidades do mundo, sempre que a temperatura ultrapassa os quarenta graus, os crimes violentos disparam – bem como as declarações de amor.

– O senhor nunca saiu daqui? – perguntei.

– Nunca! Ninguém sai daqui.

Estremeci. Naquela noite sonhara com isso. Que tentava fugir da cidade, mas todas as estradas, e picadas e caminhos de terra batida, retrocediam à origem. Ou era o rio que fechava as saídas, dava igual. Então, fechei os olhos com força e deixei-me ficar assim, na esperança de que ainda estivesse sonhando.

sexta-feira, novembro 15

Fantasie-se

Eleanor Davis

O crime (de plágio) perfeito

Aconteceu em São Paulo, por volta de 1933, ou 4. Eu fazia crônicas diárias no "Diário de S. Paulo" e além disso era encarregado de reportagens e serviços de redação; ainda tinha uns bicos fora. Fundou-se naquela ocasião um semanário humorístico, "O Interventor", que depois haveria de se chamar "O Governador". Seu dono era Laio Martins, excelente homem de cabelos brancos e sorriso claro, boêmio e muito amigo. Pediu-me colaboração; o que podia pagar era muito pouco, mas eu não queria faltar ao amigo. Escrevi algumas crônicas assinadas. Depois comecei a falhar muito, e como Laio reclamasse, inventei um pretexto para não escrever. Seu jornal era excessivamente político (perrepista, se bem me lembro) e eu não queria tomar partido na política paulista, mesmo porque tinha muitos amigos antiperrepistas. Laio não se conformou: "Então ponha um pseudônimo!".

Marija Jevtic
Prometi de pedra e cal, mas não cumpri. Laio reclamou novamente, me deu um prazo certo para lhe entregar a crônica. No dia marcado eu estava atarefadíssimo, e quando veio o contínuo buscar a crônica para "O Interventor" eu cocei a cabeça – e tive uma ideia. Acabara de ler uma crônica de Carlos Drummond de Andrade no "Minas Gerais", órgão oficial de Minas, com um pseudônimo – algo assim como Antônio João, ou João Antônio, ou Manuel Antônio, não me lembro mais; ponhamos Antônio João. Botei papel na máquina, copiei a crônica rapidamente e lasquei o mesmo pseudônimo.

Dias depois recebi o dinheiro da colaboração, juntamente com o pedido urgente de outra crônica e um recado entusiasmado do Laio: a primeira estava esplêndida!

Daí para a frente encarreguei um menino da portaria, que estava aprendendo a escrever a máquina, de bater a crônica de Drummond para mim; eu apenas revia, para substituir ou riscar alguma referência a qualquer coisa de Minas. Pregada a mentira e praticado o crime, o remédio é perseverar nesse rumo hediondo; se às vezes senti remorso, eu o afogava em chope no bar alemão ao lado, e o pagava (o chope) com o próprio dinheiro do vale do Antônio João.

O remorso não era, na verdade, muito: Carlos não sabia de nada, e o que eu fazia não era propriamente um plágio, porque nem usava matéria assinada por ele, nem punha o meu nome em trabalho dele. E Laio Martins sorria feliz, comentando com meu colega de redação: "O Rubem não quer assinar, mas que importa? Seu estilo é inconfundível!".

O estilo era inconfundível e o chope era bem tirado; mas você pode ter a certeza, Carlos Drummond de Andrade, que muitas vezes eu o bebi à sua saúde, ou melhor, à saúde do Antônio João, isto é, à nossa. Dos 25 mil-réis que Laio me pagava, eu dava cinco para o menino que batia à máquina; era muito dinheiro para um menino naquele tempo, e isso fazia o menino feliz. Enfim, lá em São Paulo, todos éramos felizes graças ao seu trabalho: Laio, o menino, os leitores e eu – e você em Minas não era infeliz.

Não creio que possa haver um crime mais perfeito.

Menu de food truck


Arte poética

Sophia de Mello Breyner Andresen (Eduardo Gageiro)
A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha paiticipação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.

É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.

É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia a qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.

E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Arte Poética II"