sexta-feira, novembro 22
Anunciação
Não se pode invocar. Acontece. Como o suor ou intranquilidade. Já me aconteceu ao sair para correr. Ao flutuar na água sob um sol escaldante nas ilhas do mar de Andamão. Ao perceber, às três da tarde, que ainda faltava tanto. Ao abrir minha caixa de costura e ver a fita métrica, as linhas, os alfinetes, esse cuidado caseiro, incrível, minúsculo. Ou tirando os trevos dos vasos de barro do terraço. Sim. Principalmente tirando os trevos aos vasos do terraço. Já me aconteceu muitas vezes. Algumas eu lembro. Uma noite da minha infância, quando estava na casa da minha avó e meu pai chegou para me buscar de surpresa com duas entradas para o cinema. Uma tarde de verão, enquanto cortava a grama e vi uma rosa de cor laranja que parecia um gomo de fogo. Um entardecer de domingo de inverno: tinha muito frio e estava voltando para casa depois de ter ficado no campo, de ter perdido os óculos de sol sem me importar com isso, estava suja e cansada e sentia o belo peso da vida aqui. Aconteceu durante muitos dias nos anos noventa, enquanto pintava uma sacada escutando o rádio e olhando de relance filmes ruins em uma TV antiga que funcionava mal. É uma espécie de licantropia branca. Uma anunciação, uma santidade que não pode ser contida. Não é um alívio nem uma trégua. É um momento estático. Como se o mundo ficasse quieto e exalasse geometria. Não é euforia. É uma atração sem exaltações, uma imersão batista. Um transe. Uma levitação na qual entendo tudo. Faz muito tempo que não me acontece. Mas isso não me importa. O que me importa é saber quantas vezes mais vai me acontecer antes que tudo acabe. Quatro, cinco? Sinto como se estivesse dizendo adeus a tudo.
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