– Posso sentar-me?
Indiquei-lhe a cadeira vazia, ao lado da minha. Sentou-se, esticou as pernas longas e magras. Estalou os dedos. Tirou um cachimbo do bolso do casaco e preparou-o com carinho:
– O cavalheiro veio ao Dondo em passeio?
Disse-lhe a verdade: que trabalho como quem se passeia, e me passeio por imposições de trabalho. Além disso, viajo mais em pensamento do que enquanto me desloco. Perguntou-me se já tinha estado na cidade. Disse-lhe que só em pensamento.
– E era assim? No seu pensamento?
– Igualzinha, sem tirar nem pôr.
Derretendo ao sol. Desmoronando à chuva. Perguntou-me se conhecia a história do bode que, no início do século passado, fora o carteiro da cidade. Não lhe ocorria o nome do bicho.
– Gregório – disse eu. – Como o Gregório de Matos.
Imaginei o poeta baiano durante os longuíssimos meses em que esteve desterrado em Angola. Vi-o calcorreando as ruas antigas do Dondo, enquanto ensaiava versos de escárnio contra os padres e os poderosos. Talvez se tivesse sentado à soleira daquela mesma porta.
– Sim, Gregório – disse o velho, não parecendo surpreendido por eu saber o nome do bode. – As pessoas prendiam recados aos chifres dele. Diziam-lhe entrega isto ao padeiro, vamos supor, e lá ia o bode. Nunca falhava uma entrega. Acontece que o farmacêutico se apaixonou pela mulher do chefe da polícia, uma senhora alta e orgulhosa chamada Glória. Lembro-me dela, anos depois da tragédia, caminhando sob o sol, de sombrinha na mão, vaga e vagarosa como uma princesa etíope. Também me lembro do farmacêutico, um homenzinho amarelo, que padecia de febres perpétuas, paludismo ou tísica, ou ambas as maleitas, pouco importa. Ninguém dava nada por ele. O senhor sabe o que aconteceu?
– Sei…
– O farmacêutico enviou uma carta de amor à mulher do chefe da polícia. Magalhães, era o nome do chefe da polícia, esse nome não esqueci. O Gregório precisava de atravessar a cidade de uma ponta à outra para entregar a carta e, no caminho, talvez porque fizesse ainda mais calor do que o habitual e ele tivesse muita sede, parou no bar do Moreira.
– Consta que o bode tinha sempre muita sede.
– É essa a lenda. Que o bode gostava de parar para beber cerveja no bar do Moreira. Havia sempre alguém disposto a pagar-lhe uma cerveja. Até tinham uma tigela com o nome dele, no chão, num canto do bar. Nessa tarde teve pouca sorte. O chefe da polícia estava lá, jogando xadrez com o Moreira, um anarco-sindicalista do Porto ou de Braga, tanto faz, degredado para cá, como tantos outros, por crimes políticos, e que uma vez desembarcado em Luanda nunca mais pensou em retornar. O Magalhães viu o envelope dirigido à esposa. Cheirou-o. Cheirava a perfume. Abriu o envelope, leu a carta, sacou a pistola do cinto e disparou dois tiros nos cornos do Gregório. Bem, nos cornos não, antes tivessem sido nos cornos. Ele atirou no focinho mesmo. O bicho ficou estendido no soalho, jorrando sangue para todo o lado. Depois o Magalhães caminhou até à farmácia, seguido pelo Moreira e por outros homens que se foram juntando, alertados pelos disparos. O farmacêutico ouviu o alarido, viu o grupo ao longe, e percebendo o que sucedera fugiu a sete pés. Apareceu morto dois dias depois, afogado no Quanza.
– Disseram-me que apareceu enforcado num imbondeiro.
– Ou enforcado, tanto faz.
Corvos discutiam, numa áspera gritaria, entre a folhagem cerrada da mangueira. Imaginei o farmacêutico sendo resgatado das águas. Imaginei-o pendendo do tronco retorcido de um imbondeiro.
– Eu tinha apenas cinco anos – disse o velho. – E ele era meu pai, esse farmacêutico. O senhor sabe o que é crescer sem um pai? Numa terra como esta?
Não soube o que responder. O sol já me mordia os pés. Dali a poucos minutos o calor seria intolerável e eu teria de me refugiar na sala, rezando para que a eletricidade não caísse e o ar condicionado continuasse funcionando em condições. O calor enlouquece as pessoas e os lugares. Em todas as grandes cidades do mundo, sempre que a temperatura ultrapassa os quarenta graus, os crimes violentos disparam – bem como as declarações de amor.
– O senhor nunca saiu daqui? – perguntei.
– Nunca! Ninguém sai daqui.
Estremeci. Naquela noite sonhara com isso. Que tentava fugir da cidade, mas todas as estradas, e picadas e caminhos de terra batida, retrocediam à origem. Ou era o rio que fechava as saídas, dava igual. Então, fechei os olhos com força e deixei-me ficar assim, na esperança de que ainda estivesse sonhando.
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