Foi no ano de 1989, antes do terceiro aniversário da Companhia das Letras, que recebi uma sugestão muito especial de Rubem Fonseca, que na época participava ativamente da vida da editora. Sem maiores rodeios, Rubem me disse que havia lido um livro de uma jovem escritora, ainda inédita, que ele julgava sensacional. Como todo grande escritor, Rubem era sempre assolado pela remessa de originais de jovens escritores, que ele lia com generosidade. Esse, ele me disse, se destacava de tudo o que havia visto recentemente. Tratava-se de Boca do Inferno, de Ana Miranda.
Li o manuscrito de uma sentada e me entusiasmei. Rubem nunca havia indicado nada, mas o livro de Ana Miranda merecia não só aquela indicação como todo o empenho com que fora feita.
Entrei em contato com a autora e de pronto comecei a trabalhar no livro, que foi publicado em agosto de 1989, dois meses antes da feira de Frankfurt. Na época eu visitava as redações dos jornais e às vezes, quando se tratava de algo excepcional, falava com os diretores de redação, chamando atenção apenas para eventos literários fora do comum.
Para mim, a história de suspense e crime na Bahia de Gregório de Matos, escrita com maestria, justificava essa atenção. As resenhas corroboraram minha impressão, e me ajudaram no sonho que tive ao ler o original pela primeira vez: vender os direitos do livro pelo mundo afora.
Com as resenhas e as vendas iniciais, consagradoras, pela primeira vez na história da editora preparei um material em inglês, contratei uma agente na Alemanha, a Ray-Güde Mertin, e me preparei para enviar o livro para as editoras daquele país a tempo da feira de Frankfurt.
Bem, o resultado foi muito maior que o esperado. Os pareceres alemães foram excelentes e acabaram se espalhando, durante a feira, entre os mais importantes editores do mundo, gerando um leilão às escuras em muitos países.
E eu, que no começo da Companhia das Letras ia para esses eventos exclusivamente para comprar direitos, comecei a receber bilhetes com ofertas do mundo todo, nos intervalos em que passava pelo estande coletivo brasileiro.
Decidi então que não aceitaria as "blind offers", garantindo a todos os editores que o livro seria enviado depois de Frankfurt para que fosse lido com calma. Ao ouvir isso, os editores dobravam a oferta na hora. Mesmo assim me mantive firme e fui descansar por cinco dias em Veneza, depois da semana mais puxada do ano. Ficamos, Lili e eu, num hotel minúsculo que havia comprado a sua primeira máquina de fax naquela semana. Por aquele aparelhinho jorravam mensagens, vindas do Brasil, com as propostas recebidas pela minha secretária. A cada negativa que dávamos, dizendo que o critério de escolha não seria apenas financeiro, as ofertas voltavam a subir.
No final recebi telefonemas de editores que descobriram o número da casa dos meus avós, onde logo ao voltar estive por vários dias, em luto pela morte do meu avô, ocorrida nos dias que se seguiram ao nosso retorno.
Boca do Inferno acabou sendo vendido para uma dezena de países, funcionou como um incrível cartão de visitas da jovem editora e me incentivou a usar das feiras mais para vender direitos brasileiros do que para comprar direitos estrangeiros — missão importante desempenhada pelos outros editores da casa, com minha participação à distância.
Um livro amuleto, um livro querido, que agora comemora seu trigésimo aniversário. É bom envelhecer guardando histórias como essa.
Luiz Schwarcz
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