quarta-feira, novembro 13

Guaparivás

Guaparivás.

Sem mover o rosto, Juliana ergue os olhos para o pai. Há uma hora que está sentada na berma da cama. Tem o corpo dobrado, os olhos e os ombros descidos, parece um desembrulho. Espera, em vão, que o sono lhe chegue.

Há uma semana que saiu de casa e do casamento. Deprimida, sofrendo de insónias, vive como uma refugiada em casa dos pais. Não sei como vocês conseguem dormir, diz ela como se lhe trouxesse alívio culpar os outros. E agora ali estão à sua frente o pai e a mãe, numa paciente mas impotente entrega. A tentativa de ajuda produz o efeito oposto: a filha está à beira de um ataque de nervos.

– Não percebo, pai. Que palavra é essa?

– Guaparivás. Este remédio foi criado pelos guaparivás. Uma tribo da selva amazónica.

– Tribo, não, pai. São nações.

– De uma nação de índios.

– Não são índios. Agora diz-se “indígenas”.

– Seja o que for, este remédio ajuda-te a dormir. Dormem que nem justos, os indígenas.

– É um químico, não tomo.

– Tudo é químico, Juliana.

Susa Monteiro
O pior é quando, além de químico, é físico. É o que pensa o pai, mas engole a tempo a ironia. São duas manhã, as pernas fraquejam, a boca há muito que anoiteceu. Espanta-se com o próprio rasgo de criatividade. Guaparivás? E sorri, complacente. Descobria, aos 60 anos, dotes de que nunca antes suspeitara.

– Qual é o laboratório? – pergunta a filha, os olhos cheios de sombras.

– Mas que laboratório? Dos indígenas?

– Mostre-me a bula, pai.

– Minha filha, sei como te preocupas com as injustiças. Neste caso, foi tudo limpo. A patente ficou com os índios. Foi um negócio transparente.

– A bula, pai. A bula ou a embalagem.

– A embalagem já deitei fora. Já não imprimem as bulas, para poupar papel, salvar árvores.

Juliana faz rodar o anónimo comprimido entre os dedos. De pijama, o pai contempla aquela infindável hesitação com a expectativa dos apostadores nas corridas de cavalos. Mais atrás, a mãe aguarda paciente, um copo de água balançando na mão.

– Qual é o nome comercial do medicamento? Vou ver no Google.

– Estamos sem internet.

– Não me leve a mal, meu pai, mas nunca ouvir falar desse nome.

– Dos guaparivás? Acabei de ler um artigo sobre eles, pergunta-me o que quiseres.

– Em que floresta habitam.


– Habitar? Eles são a floresta.

– E comem carne?

– Completamente vegetarianos. Só mandioca. E da orgânica.

Apetece-lhe dizer que os guaparivás deixaram de comer carne quando acabaram as visitas dos estrangeiros. De novo, coíbe-se. Está cansado, morto de sono. Inspira fundo: pai é pai. Além disso, começa a sentir um gosto quase antropológico pela tribo que acabara de descobrir.

– Agora me lembro do princípio ativo, o ácido guaparivânico. Foi o nome que deram os fabricantes, em homenagem aos índios.

– Indígenas – corrige timidamente a mãe.

– Os guaparivás, aquilo é gente finíssima. Tudo ecológico. Comem bem, nada de radicais livres, nada de açúcar. E, sobretudo, dormem bem. Havias de ver fotografias. Elegantes, não há lá barrigudos como o teu pai.

– Já não se usa o termo “barrigudo”.

– Ai não?

– O termo correto é “pessoas de perímetro abdominal excessivo”.

A mãe senta-se no leito, bem próximo da filha. Juliana espreita o copo e pergunta: essa água é engarrafada? A mãe pousa o copo e observa a revista em cima da mesinha de cabeceira. Na capa, uma jovem muito branca, de rosto redondo, cabelos avermelhados e olhar determinado.

– Entra em que filme? – pergunta a mãe.

– Em filme nenhum. Só se for neste filme de terror que todos vivemos.

– Credo, filha!

– É Greta Thunberg, uma ativista ambiental. Se a mãe estivesse mais atenta ao mundo...

– Que mundo? Eu quero continuar a dormir bem, minha filha.

A mãe abraça Juliana: anda cá, minha querida. Com uma suavíssima toada, embala a filha. Ficam assim, duas sombras dançarinas, até que o corpo da filha vai desabando sem peso sobre o leito. Os pais ajeitam o lençol, beijam levemente a filha, apagam a luz.

Enquanto se afastam, pé ante pé, a mãe murmura: é tudo uma questão de jeito, marido. Foram anos que a adormeci ao colo. O marido reage, defensivo: esse embalo é uma violência, está provado cientificamente. Fala baixo, pede a esposa, ainda acordas a menina. E o marido insiste: está provado, para as crianças esse embalo é uma insuportável turbulência. Os bebés só adormecem vencidos pelo enjoo. Sorrindo, a esposa rodeia com os braços a cintura do marido: anda cá, meu tonto, agora és tu a ser embalado.

E ensaia uma lenta valsa. Contrariado, o homem deixa-se balançar. O marido resiste, os pés como raízes mais fundas do que a própria casa. Há anos que não se encostam assim tão cheios de corpo, há séculos que se esqueceram da doçura do primeiro encontro.

– Sabes quem dança como nós, no meio da noite? – pergunta ela.

O marido, de olhos fechados, sacode a cabeça. Depois, as palavras tateiam a penumbra, num ensonado sorriso: os guaparivás?

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