quinta-feira, dezembro 31

Novo ano...

 


... e a vida se renovará, independente de nossos (maus) humores e alegrias, que as há sempre. Fiquemos com essas mesmo que poucas e tantas vezes pequenas, que leitores sabem transformar em imensas, do tamanho do mundo. Bom Ano

Voltamos depois do feriadão
 

O ano que não vai acabar

Vencemos os últimos dez meses dizendo cobras e lagartos com 2020. Repetimos aos quatro ventos que este tem sido o pior ano da história, o das nossas maiores angústias. Tudo por conta da pandemia. Mas, olha quem finalmente está se despedindo e, em vez de dizermos adeus Ano Velho, insistimos no desdém: já vai tarde, vaza!


Neste ano carregamos a sensação de que perdemos os vínculos com o mundo. Mas se a nossa medida para julgarmos 2020 for a pandemia, é preciso revermos os conceitos. Sabemos que, enquanto o imunizante não for liberado, a pandemia persistirá; irá muito além das festas de fim de ano, continuará por alguns meses em 2021.

Ou será que 2020 ficará como o ano que não se acabou? O fato é que acusamos tudo pelas nossas dores, mas nos esquecemos de falar das nossas responsabilidades. Sem querer ser a de palmatória do mundo, muitas pessoas parecem não ter consciência da gravidade do que estamos vivendo e acreditam-se invulneráveis.

Uma frase de Nietzsche diz algo como “sabemos que sofremos, mas não por que sofremos”. Sem fazermos a nossa parte, 2020 vai embora, mas continuaremos vivendo o pior ano, o pior mês, o pior dia, a pior hora.

Diga-se o que quiser de 2020. Mas, é inegável, porém, que foi o ano em que recebemos muitos aprendizados para o crescimento humano. Nunca convivemos tão de perto e coletivamente com os conceitos e a importância dos sentimentos nobres.

A pandemia nos obrigou a revisitar nossa humanidade. O primeiro sentimento foi o da coragem. Se chegamos até aqui, somos sobreviventes de momentos que pareciam não ter saída. Tivemos e temos a coragem de enfrentarmos o que nos restava viver dessa dor.

Muitos de nós nem percebeu que neste ano tão dramático a generosidade esteve em alta. Quem é realmente grande, foi generoso; ofereceu aos mais vulneráveis o que lhes faltava. Aprendemos que compaixão pode até ser uma palavra de aparência cafona, mas nunca foi tão essencial. Seu apelido é empatia.

Os tolerantes acumularam conhecimento. E, no movimento contrário, os intolerantes ficaram expostos. Aprendemos que a temperança não é a mesma coisa que privação da alegria e do prazer. É viver com moderação.

Finalmente, foi um ano em que pudemos sentir na pele que a solidariedade será sempre maior que o egoísmo e que o amor é quem continua a comandar as nossas relações. Ah, sim, a gratidão é um prolongamento da alegria de quem recebeu solidariedade.

Quem aprendeu com a dor, plantou uma árvore. Do contrário, o sofrimento com a pandemia terá sido uma experiência inútil que nos acompanhará em 2021 e por toda a vida. Feliz Ano Novo!
Cícero Belmar

Passagem do ano

 


Estou deitado sobre a areia...

Estou deitado sobre a areia da praia. Nasce um dia novo, fresco e frágil como a fruta. Aves migradoras passam gritando metálicas um nome, o nome desse dia que surge sem que eu o compreenda. Como não entendo tantos sinais esparsos no mundo. Como não entendo o pássaro, o tempo, o coração do homem.

Vivo sem razão, como faz o vento, apenas curioso de todos os desastres, fluindo como a luz. Sou o escombro de mim mesmo, ruínas, mas que das ruínas de mim se encontre, um dia, o traço visível e com ele se reconstitua a figura, a coluna do que procurei pensar, a fictícia harmonia. Que esse ou aquele circunscreva o não dito.

É confuso o nascimento de um dia. Se a terra vê o fogo das flores, mais desolado se vê o solitário, mais pobre o pensamento do sábio, mais incompetentes todas as maneiras de sentir e dizer. Ando à roda do mar sem falar a linguagem do mar. Ando à roda de um dia sem falar a linguagem de um dia. Ando à roda do amor sem falar a linguagem de amor. Entretanto, fecharei os olhos, serei tímido para que as vozes me adivinhem. Deixarei minha alma a dormir e ela mesma fale. Meus movimentos nesta praia e nesta vida sejam poucos e leves e não acordem seus sonhos semiabertos. Deixar cantar os pássaros de ouro. Procurar um sossego, mudar de caminho. Para que minha língua se aproxime do fogo, meus pés da água, a mão direita do abismo à direita, a mão esquerda do abismo à esquerda.

Estar no meio da vida e nem mesmo saber decidir de minhas emoções! Esse dia não é ainda a paz, nem o degrau em que tropeço, mas um sopro que me inclina, sofrendo, embarcação leve. Só posso dizer à madrugada: és minha irmã e és louca. Teu beijo frio é como a pedra, tua presença é a jovem que se hospedou em nossa casa, e a vontade de tocar o seu cabelo não deixa adormecer o coração.

Só posso dizer: meu coração é como o coração dos que se deitam em campo aberto: é manso. Como o coração dos que trabalham no silêncio das grandes bibliotecas e imita a sensibilidade das águas. Como o coração de guerreiros falidos e que têm sede das praias mais ásperas. Como o coração de quem fica no exílio e desaprende e, à hora das lâmpadas, dorme propulsionado pelos ventos da barra. O coração de quem frequenta as caixas de teatro e gostam de sentir o odor dos telões ainda frescos, com uma fibra impenetrável de devaneio. Igual a meu devaneio.

Estou ajoelhado sobre a areia da praia e já me assusta o passo dos desastres futuros. Os pássaros sumiram. Estou só, indestinado, mas conservo em meus olhos a casta lembrança da aurora.

quarta-feira, dezembro 30

De olho em 2021

 

Anatoliy Stankulov

Feliz Ano Realmente Novo

E no meio de algum desânimo e muito sofrimento, com tantas notícias ruins – pandemia, recessão, desgoverno –, surge uma esplendorosa: está chegando um Ano Novo de verdade. Pense: você nunca viveu, nem viverá uma passagem de ano como esta.


Porque, como você sabe, toda vez é meio que a mesma coisa: todos de branco, esperando a meia-noite, pessoal mandando ver na birita, contagem regressiva (há sempre o tio que apressa a contagem), queima de fogos, abraços, uns choram, outros riem etc. Não varia muito de ano pra ano.

Mas este será diferente. Quando 2020 der lugar a 2021, a esperança vai virar realidade: a vacina vai chegar, as pessoas vão ficar imunes ao vírus, haverá um alívio monumental; poderemos voltar a nos ver, abraçar, beijar; trabalhar, viajar, passear, viver. Até ir à Vila ver o Santos jogar (me empolguei muito?).

Sabe aquele “Feliz Ano Novo” que você diz a cada virada, mecanicamente, como um carimbo comemorativo, a repetir feito papagaio, sem nem pensar direito no que está dizendo? Esquece. Porque, desta vez, haverá um desejo especial, alguns abraços farão estalar costelas. De simples clichê, a frase ganhará outro sentimento.

Lembro-me de um desenho que vi criança e nunca esqueci: o ano velho, simbolizado por um velhinho de barbas brancas compridas, saindo de bengala por uma porta, enquanto por uma outra chega o ano novo, um recém-nascido de fraldas, fofo, sorridente. Pois sejamos todos uns bebezões a saudar 2021.

Bom seria se, um minuto antes da explosão, fizéssemos silêncio. Todas as famílias, os amigos, os que trabalham de plantão, os que não têm família, amigos ou trabalho. Nenhum pio sobre a Terra: um silêncio concentrado, de olhos fechados, para lembrar os que se foram, viver o momento e entender o que estamos deixando para trás.

Claro que houve coisas boas no ano que passou. Somos festeiros, mas não ingratos. Mas tanta gente no nosso Brasilzão passando por um momento tão escuro, de tanta necessidade e incerteza, que andamos precisados de alegria. Chegue-se, 2021, esteja à vontade para trazer as durezas, conquistas, perdas, vitórias, decepções – que, afinal, esta é a vida.

Falta pouco. Fique em casa com os seus, só saia se for imprescindível (neste caso, de máscara), evite aglomerações. E tenha um Feliz Ano Realmente Novo.
Cássio Zanatta

Jardim da leitura

 


Pontas de estoque

Ivan Glock
Quando as conversas do velho poeta com as flores do jardim passaram a ocupar oito e às vezes mais horas dos seus dias, a família não se mostrou surpresa. Devia ser não mais que uma fase. Quando ele abruptamente parou de falar com elas, e já nem ia mais ao jardim para vê-las, os parentes também não se abalaram. Fazia já alguns anos que ele não trocava uma palavra com nenhum deles.


***

Os pecados do sexo, quando bem narrados, despertam imediatamente outro: o da inveja.

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A luxúria é uma loira longilínea de hábitos lambedores.

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O poeta concretista conclui seu poema e manda: levanta-te e anda.

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Dos pesquisadores do IBGE não se pode exigir mais do que bom censo.

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Para inaugurar sua obra-prima – um imenso edifício-, o poeta concretista convidou seus pares e saltaram todos de ponta-cabeça na piscina.

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Os poetas antigos pelo menos entendiam de flores e estrelas, ou assim lhes parecia.

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Você escreve isto ou isso antes de ter um estilo. Depois você só escreve aquilo.

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Se alguém lhe disser que é um sonetista, acredite, antes que lhe enfiem a mão no bolso e comecem a provar.

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Compartilhemos algo, mesmo que seja a tristeza.

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Livros policiais, quando caem em domínio público, costumam ficar em decúbito dorsal.

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Um nome de mulher, dito com o timbre certo na noite apropriada, pode eriçar os pelos do escuro.

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Na terceira noite, desconfiando de certas maneiras do fantasma, a viúva perguntou: é você, Gurgel?

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Se o cérebro insiste em arrastá-lo para bandalheiras, ora, quem é você para contrariá-lo?

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Fazia anos já que o poeta não escrevia, quando lhe perguntaram se estava doente. Doente eu estava antes, ele respondeu.

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No dia em que se declararam namorados, lastimaram as rosas e os beijos que se haviam negado nos dois anos de prosaica amizade.
Raul Drewnick

terça-feira, dezembro 29

Dica de decoração

 


O Fazedor

Mathias Stomer
Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas; o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, de onde tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava podiam abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror, mas também a cólera e a coragem, tendo sido uma vez o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, casual, sem outra lei que a do gozo e da indiferença imediata, andou pela terra vária e olhou, numa e noutra margem do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé de uma montanha de cume incerto, onde bem podia haver sátiros, tinha escutado complica­das histórias que recebeu como recebia a realidade, sem indagar se eram verdadeiras ou falsas. 

Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma teimosa neblina confundiu-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estre­las, a terra era insegura sob os seus pés. Tudo se afastava e confundia. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estoico ainda não fora inventado e Heitor podia fugir sem deslustre. «Já não verei — percebeu — nem o céu cheio de pavor mitológico, nem esta cara que os anos transformarão.» Dias e noites passaram sobre esse desespero na sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem espanto) as indistintas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe tinha acontecido e que o encarara com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Então desceu à sua memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu tirar daquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moe­da sob a chuva, talvez porque nunca a tivesse olhado, salvo, quem sabe, num sonho.

A recordação era assim. Outra criança havia-o insultado e ele fora ter com o seu pai e tinha-lhe contado a história. Este deixou-o falar como se o não ouvisse ou compreendesse e despendurou da parede um punhal de bronze, belo e carregado de poder, que a criança tinha furtivamente cobiçado. Agora segurava-o nas mãos e a surpresa da posse anulou a injúria sofrida, mas a voz do pai dizia: «Que alguém saiba que és um homem», e havia uma ordem na voz. A noite cegava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica, desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à beira-mar, julgando-se Ájax ou Perseu e povoando de feridas e batalhas a obscuridade salobra. O que procurava era o preciso sabor daquele momento; não lhe importava o resto: as afrontas do desafio, o torpe combate, o regresso com a lâmina ensanguentada.

Outra recordação, em que também havia uma noite e uma iminência de aventura, brotou daquela. Uma mulher, a primeira que lhe enviaram os deuses, tinha-o esperado na sombra de um hipogeu, e ele procurou-a por galerias que eram como redes de pedra e por declives que se afundavam na sombra. Porque lhe chegavam essas memórias e porque lhe chegariam elas sem amargura, como uma mera prefiguração do presente?

Com grave assombro compreendeu. Nessa noite dos seus olhos mortais, onde agora descia, aguardavam-no também o amor e o risco. Ares e Afrodite, porque já adivinhava (já o cercava) um rumor de glória e de hexâmetros, um rumor de homens que defendem um templo que os deu­ses não salvarão e de baixéis negros que procuram no mar uma ilha querida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era seu destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana. Sabemos estas coisas, mas não as que sentiu ao descer à última sombra.”
Jorge Luis Borges

segunda-feira, dezembro 28

Despedida

 

Jenny Kroik registrou os clientes que foram fazer compras na Westsider Books depois de ouvir que a livraria fecharia depois de 35 anos no Upper West Side., em Londres

Matulai, o vento Sul

Abacar Abubacar conhece todos os ventos. Conhece-os pelo nome, pela origem e pelo temperamento. Conhece-os melhor do que aos próprios filhos, os quais, aliás, não vê há muitos anos. Nasceu num dhow e, desde então, tem vivido mais tempo no mar do que em terra firme. Não gosta da expressão “terra firme”. Não se sente seguro em terra. Para ele, só o mar é firme.

– Quantas pessoas o senhor conhece que foram mortas a tiro estando no mar? Ou que morreram por atropelamento enquanto pescavam?

Quando anoitece, lança âncora a uma distância segura da terra, pelo menos cem metros, e só então se estende sobre a madeira rude, e dorme.

O seu sono é profundo e sem sonhos. Ao despertar pergunta aos peixes pelos ventos. Como os peixes são sábios dizem-lhe coisas que ele sempre soube. Abubacar aprecia a discreta sabedoria dos peixes.

 


Certa manhã, desperta e não vê nenhum peixe. Nenhuma ave. O silêncio cobre, como uma manta, a clara quietude das águas. Pergunta-se onde estarão os peixes. Por onde andarão os ventos. Pergunta-se se o mundo ainda existirá.

“Ou talvez eu tenha morrido”, pensa. “Talvez a morte seja isto: um mar sem peixes.”

Pela primeira vez sente medo do mar.

Senta-se à espera. No tempo imóvel, sobre o líquido inerte, escuta uma voz que parece vir de todos os lados:

– Quem está aí? – pergunta a voz.

Abubacar sobressalta-se. A voz não lhe é estranha.

– Quem está aí? – pergunta por sua vez.

– Eu perguntei primeiro – protesta a voz.

– Abacar – diz Abacar. – Abacar Abubacar.

– Abacar, o pescador?!

– Sim…

– O amigo dos ventos?

Abacar pressente na voz um leve tom de ironia. Não percebe se é troça ou elogio.

– Ninguém conhece todos os ventos – murmura, com uma ponta de irritação. – Só conheço os nossos. Nada sei dos ventos estrangeiros.

– E o que fazes aqui?

– O que faço aqui?! Eu vivo aqui. Este é o meu mar.

– Não este, Abacar. Não este mar. Ainda não.

Abacar ergue-se, muito nervoso. Alarga os olhos pelo plácido espelho cor de esmeralda. É então que a angústia lhe acerta no peito como uma seta inimiga. Não, aquele não é o mar onde nasceu e viveu a vida inteira. Tem a mesma cor e um idêntico espanto. Lá está a ilha estreita e, para além dela, o vagaroso recorte do continente. Falta-lhe, contudo, o ciciar dos ventos, o denso rumor dos peixes atravessando as correntes, o poderoso cheiro a sal e a vida que, a cada madrugada, lhe traz mais energia do que uma xícara de café.

A ilha é uma cápsula do tempo. Nada do que é presente nos alcança. Vez por outra, surgem turistas. Não lhes perguntamos de onde vêm, mas de quando. Naturalmente, vêm, todos eles, de algum instante no futuro. Porém, quando aportam aqui já não se lembram. As viagens no tempo provocam um tipo irreversível de amnésia.

Abacar conhece a doença. Transportou muitas vezes turistas tresmalhados. Olham atónitos para as rochas erguidas à flor das águas, como levíssimas peças em filigrana, delicadas rosas de pedra, e perguntam:

– Isto é possível?!

Abacar sabe que não é uma questão de possibilidade, mas de paciência. Aquelas pessoas vêm de um tempo impaciente. Não compreendem o trabalho dos séculos.

– Onde estou? – pergunta finalmente.

Parece-lhe que o ar gargalha à volta dele. O barco agita-se um pouco. Naquela água alheia, uma cópia inanimada do seu mar, Abacar sente-se como um abacateiro regressando inteiro para o interior do abacate. Compreende com horror, e com alívio, que é dele mesmo a voz em redor.

Senta-se à proa, com os pés roçando a água, e fecha os olhos. Sorri ao ouvir o vento. Conhece-o bem: é Matulai, o bom vento Sul, o que penteia as ondas, desfaz os nós do pensamento e melhora o humor das mulheres. Sorri, mesmo antes de abrir os olhos, porque sabe que está de regresso a casa. Dali a três horas atracará no Pontão. Aisha chegará com matapa de siri-siri e lenho fresco, a anca larga, o peito farto, a gargalhada insubmissa. À noite, dormirá um sono profundo, sem sonhos. E de manhã, conversará com os peixes.

José Eduardo Agualusa

Estantes personalizadas

 


Moça deitada na grama

A moça estava deitada na grama.

Eu vi e achei lindo. Fiquei repetindo para meu deleite pessoal: “Moça deitada na grama. Deitada na grama. Na grama”. Pois o espetáculo me embevecia. Não é qualquer coisa que me embevece, a esta altura da vida. A moça, o estar deitada na grama, àquela hora da tarde, enquanto os carros passavam e cada ocupante ia ao seu compromisso, à sua alegria ou à sua amargura, a moça e sua posição me embeveceram.

Não tinha nada de exibicionista, era a própria descontração, o encontro do corpo com a tranqüilidade, fruída em estado de pureza. Quem quisesse reparar, reparasse; não estava ligando nem desafiando costumes nem nada. Simplesmente deitada na grama, olhos cerrados, mãos na testa, vestido azul, sapatos brancos, pulseira, dois anéis, elegante, composta. De pernas, mostrava o normal. Não era imagem erótica.

Dormia? Não. Pequenos movimentos indicavam que permanecia consciente, mas eram tão pequenos que se percebia seu bem-estar inalterável, sua intenção de continuar assim à sombra dos edifícios, no gramado.

Resolvi parar um pouco, encantado. Queria ver ainda por algum tempo a escultura da moça, plantada no parque como estátua de Henry Moore, uma estátua sem obrigação de ser imóvel. E que arfava docemente. Ah, o arfar da moça, que lhe erguia com leveza o busto, lembrando o sangue de circular nas artérias silenciosas, tão vivo; e tão calmo, como se também ele quisesse descansar na grama, curtir para sempre aquele instante de felicidade.
Eis se aproxima um guarda, inclina-se, toca no ombro da moça. De leve. Ela abre os olhos, sorri bem-disposta:

– Quer deitar também? Aproveita a tarde, tão gostosa.

Ele se mostra embaraçado, fala aos pedaços:

– Não, moça… me desculpe. É o seguinte. A senhora… quer fazer o favor de levantar?

– Levantar por quê? Está tão bom aqui.

– A senhora não pode ficar aí assim não. Levante, estou lhe pedindo.

– Por que hei de levantar? Minha posição é cômoda, eu estou bem aqui. Olhe ali adiante aquele homem, ele também está deitado na grama.

– Aquele homem é diferente, a senhora não percebe?

– Percebo que é homem, e daí? Homem pode, mulher não?

– Bom, poder ninguém pode, é proibido, mas sendo homem, além disso mindingo…

– Ah, compreendo agora. Sendo homem e mindingo, tem direito a deitar no gramado, mas sendo mulher, tendo profissão liberal, pagando imposto de renda, predial, lixo, sindicato, etc., nada feito. É isso que o senhor quer dizer?

– Deus me livre, moça. Quem sou eu para dizer uma coisa dessas? Só que é a primeira vez, e eu tenho dez anos de serviço, que vejo uma dona como a senhora, bem-vestida, bem-apessoada, assim espichada na grama. Com a devida licença, achei que não ficava bem imitar os homens, os mindingos, que a gente tem pena e deixa por aí…

– Faça de conta que eu também sou mindinga – e a moça abriu para ele um sorriso especial.

– Para o bem da senhora, não convém se arriscar desse jeito.

– Eu acho que não estou me arriscando nada, pois tem o senhor aí me garantindo.

– Obrigado. Eu garanto até certo ponto, mas basta a gente virar as costas, vem aí um elemento e furta o seu reloginho, a sua bolsa, as suas coisas.

– Sei me defender, meu santo. Tenho o meu cursinho de caratê.

– Tá certo, mas não deve de facilitar. A senhora se levante, em nome da lei.

– Espere aí. Ou todos se levantam ou eu continuo deitada em nome da lei da igualdade.

– Essa lei eu não conheço, dona. Não posso conhecer todas as leis. Essa que a senhora fala, eu acho que não pegou.

– Mas deve pegar. É preciso que pegue, mais cedo ou mais tarde.

– Não vai levantar?

– Não.

Ele coçou a cabeça. Agarrar a moça era violência, ela ia reagir, juntava povo, criava caso. Afinal, não estava fazendo nada de imoral nem subversivo. Por outro lado, não pegava bem moça deitada na grama – ele devia ter na mente a idéia de moça vestida de gaze, aérea, meio arcanjo, nunca deitável no chão de grama, como qualquer vagabundo fedorento.

– A senhora não devia me fazer uma coisa dessas.

– Fazer o quê?

– Me expor nesta situação.

– Eu não fiz nada, estava numa boa oriental, o senhor chega e…

– É muito difícil lidar com mulheres, elas têm resposta para tudo.

– Vamos fazer uma coisa. O senhor faz que não me viu, vai andando, eu saio daqui a pouco. Só mais dez minutos, para não parecer que estou cedendo a um ato de força.

– Pode ficar o tempo que quiser – decidiu ele. – A senhora falou numa tal lei da igualdade, então vamos cumprir. Só que aquele malandro ali adiante tem de se mandar urgente, eu vou lá dar um susto nele, já gozou demais da lei da igualdade, agora chega!

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, dezembro 24

Aos bem aventurados...

Na imaginação das crianças , todos os anos Jesus nasce: todos os anos têm o seu Jesus pequenino.

Não se dará o mesmo na imaginação das pessoas que são como crianças?

Por isso não só todos os anos nasce Jesus no seu coração: mas todos os anos e todos os dias; e todas as horas e todos os momentos.

Bem-aventurados estes, - para quem é sempre Natal!
José Régio


Feliz Natal, boas leituras nestes dias, damos uma paradinha no feriadão

Versos de Natal

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta
Manuel Bandeira

Corrida natalina

 


Noite em Belém

Tem um lugarzinho pra mim aí, Menino? Ando precisada. Vejo você, com esse ar inocente e tranquilo, e tenho vontade de desfrutar da sua paz. Tudo bem que sabemos que, ao crescer, você se deu mal e acabou morto aos 33 anos. Vivo neste mundo há mais do dobro desse tempo, e confesso que estou bem cansada. Falta sonho, Menino. O dia a dia ficou chato, mais rotineiro do que nunca, e o presente empacou feito burro teimoso. Aí, na manjedoura, você tem estrelas no céu, animais dóceis à volta, os pais por perto e, logo, receberá a visita de três reis, que virão de longe só para conhecê-Lo e trarão lembranças, dando início à tradição que já dura 21 séculos.

Será que, após tanto tempo, ainda se lembra de nós? Será que o Pai cansou de esperar pela nossa evolução e perdeu a paciência, enviando a praga atual, mais cruel que as anteriores, para mais uma vez separar o joio do trigo? Será que Você precisará voltar à Terra outra vez, para acalmar a ira divina e nos salvar?

Sei não, as coisas mudam. Nos céus, quais serão as prioridades? A ciência já provou que somos dispensáveis para a existência do planeta. E os humanos têm se mostrado tão predadores, destruindo flora e fauna, poluindo água e ar, que talvez o Criador fique em dúvida sobre o que preservar, nós ou a Natureza.

Existem teorias religiosas que profetizam sobre a transferência das boas almas para mundos mais avançados e que à Terra restaria o papel de abrigo às que ainda precisam aperfeiçoar sentimentos e atitudes, livrando-se do desapego, do preconceito, enfim, dos pecados que aprendemos na infância e cometemos diariamente, sem remorso.

Todos os anos, nesta época, colocamos Você sobre palhas e sentimos certa nostalgia de tudo que pregou, especialmente, a compaixão. Ocupados em acumular fortuna, fama, poder, esquecemos de amar as florestas, os oceanos, os rios, os animais, os minerais, as verdadeiras riquezas que o Pai criou por nos considerar Seus herdeiros.

Agora, vivemos apavorados. Nem fortuna, fama ou poder garantem que estaremos vivos, no próximo instante. Um microscópico assassino circula entre nós, nos invade, domina e, muitas vezes, aniquila. Surge no horizonte uma tênue esperança de combatê-lo, mas a vaidade dos governantes ainda pode pôr tudo a perder. Às vezes, penso que retornamos à Idade da Pedra, quando era preciso matar para sobreviver e a vantagem favorecia a força, não a inteligência, então dom embrionário.

Temo um futuro em que nos guerrearemos, lutando pela vacina, pela água, por alimento, por espaço… Diferente do Éden, o planeta sempre foi hostil, exigindo adaptações cada vez mais sofisticadas e seletivas. Por isso, pelo menos nesta noite, quero ficar na manjedoura com Você. Neste estábulo de Belém, o mundo ainda parece calmo e simples, o tempo é aqui e agora, e posso me sentir filha amada de um Pai desiludido com a própria prole. Olhe, lá vem o cometa!
Madô Martins

quarta-feira, dezembro 23

Biblioteca fantástica (como todas)

 

Vesna Benedetič

Não importam os números


Há uma diferença entre um livro de duzentas páginas desde o início e um livro de duzentas páginas que são o resultado de um original de oitocentas páginas. As seiscentas estão lá. Só que você não as vê.
Elie Wiesel

Leitura apesar de todos

 Amanda Sinsanto


Resgatar leitores perdidos

 Clément Lefèvre
No país que somos, ouve-se frequentemente que “qualquer um escreve um livro.” É uma das frases favoritas de um certo tipo de portugueses que adiante identificarei e quem nunca a ouviu ou é surdo ou nunca falou do assunto. Mas é também um dito que transporta o subentendido de que o livro, de que escrever um livro, é algo que não deve estar acessível a qualquer um e que, supõe-se, esse meio deve estar apenas franqueado aos mais elevados espíritos. Interessante é perceber que não é aos académicos nem os literatos que ele ocorre quando se fala num livro da autoria de alguém que não um escritor ou um intelectual, mas sim às pessoas que comummente nos rodeiam, nos cafés e restaurantes, no supermercado, nos transportes públicos, no trabalho e nas conversas dos encontros familiares ou de amigos. Sim, eu sei quem são os que dizem que “qualquer um escreve um livro”: são os milhões de portugueses que não leem.

Os portugueses que não leem acham que ler um livro é uma coisa só para doutores, para mentes brilhantes (o que, curiosamente, até os aproxima de alguns desses intelectos radiosos, que consideram que o livro, enquanto meio, não deve estar acessível a todos, nem aberto à publicação de qualquer tipo de conteúdo), e, apesar de declararem à boca cheia que não gostam de ler, ou que nunca foram muito de ler, não percebem que, se “qualquer um escreve um livro”, é a eles, ou também a eles, que esses livros se destinam. Se calhar, não leem por medo de que os intelectuais, ou, pior ainda, aqueles que os rodeiam, passem a dizer que “que qualquer um lê um livro”.

Os portugueses que não leem ainda não se aperceberam de que, tal como fazer música não está circunscrito aos predestinados como Mozart, ou cinema a realizadores como Bergman ou Tarkovsky, o caminho da escrita também está felizmente desimpedido para quem por ele quiser aventurar-se, seja para procurar fazer arte, registar memórias, partilhar textos humorísticos, ou simplesmente elaborar

manuais práticos de cozinha saudável ou de finanças pessoais. Alguns intelectuais, que curiosamente veem comédias românticas de robe e pantufas aos domingos à tarde, também ainda não perceberam a legitimidade destas criações e, porque não dizê-lo, que talvez a leitura de algumas delas não lhes desagradasse, se convenientemente acompanhada pelas pipocas ou pelos chocolates com que sujam os roupões.

Se muitos dos intelectuais portugueses se levassem menos a sério, deixaria de ser divertido imaginá-los de robe, a cantarolarem bandas sonoras da Whitney Houston ou da Céline Dion, mas, se conseguíssemos que os portugueses que não leem percebessem que, se “qualquer um escreve um livro”, esse livro também lhes é destinado, à semelhança de outras formas de entretenimento, de infoentretenimento ou de simples informação audiovisual que se consomem sem dificuldades, talvez deixássemos de ouvir tal frase. Infelizmente, encontramo-los sentados no mesmo sofá, lado a lado, agarrados à Netflix e ao smartphone, e desconfio de que, qualquer dia, nem uns encontram portas de entrada para a leitura, nem outros conseguem levantar-se e regressar aos escritos – como, aliás, já aconteceu a outro tipo de pessoas, engolidas pela passividade e pelo vício a que os sujeitam os ecrãs.

Aliás, o que até aqui não foi dito foi que o assunto é sério. E que muitos dos portugueses que hoje não leem já foram leitores, pelo que o grande desafio que enfrentamos, bem maior do que tentar mostrar aos que nunca leram que há livros ótimos para eles, é o de resgatar leitores perdidos. Como tenho feito noutros destes textos que aqui tenho dedicado ao mercado do livro e aos hábitos de leitura, volto a recorrer aos números. Se, no espaço de uma década, as vendas de livros decaíram quase 30% em Portugal, não foi por termos passado a ser mais criteriosos nas compras, nem por a população ter diminuído drasticamente, mas sim porque o mundo mudou depressa e nós por cá não tivemos estofo para nos deslumbrarmos com esse mundo novo sem nos esquecermos do que de bom já tínhamos nas nossas vidas. Há dias, topei com a seguinte passagem: “a escrita literária é um ofício que

parece estar em contraciclo com o presente. Tem um tempo diferente, respira de maneira distinta da pressa que caracteriza esta época.” Permita-nos o autor, o escritor João Tordo, ligeiras alterações ao que escreveu e sem dificuldade perceberemos que a ideia se aplica de igual modo à leitura. Também ler parece estar em contraciclo com o tempo que vivemos. Os livros já não são o nosso “principal foco de energia”, lembrou José Tolentino Mendonça, evocando George Steiner, no discurso que proferiu quando lhe foi entregue o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, no final de outubro. Ao livro, disse Tolentino, é reservado “um papel sempre mais minoritário”. O silêncio e a serenidade, sobre os quais também tem escrito amiúde, já não nos são facilmente acessíveis. O ecrã convoca-nos a cada momento, o ruído seduz-nos, ao invés de nos assustar. O livro deixou de ser companhia quando esperamos em consultórios, quando viajamos em autocarros, comboios ou aviões, quando já deitámos as crianças, quando, enfim, temos tempo para nós. O encontro connosco mesmos e com a imaginação foi substituído pela busca do outro, mas nas redes sociais.

Não deixa de ser curioso constatar, porém, que se vendem em Portugal cada vez mais livros para crianças. E não será ilegítimo deduzir que os portugueses que já não leem enchem os filhos de livros (tal como enchem de tudo e mais alguma coisa), na expectativa culpada de que eles venham a ser melhores leitores do que eles são (na expectativa triste de que eles sejam versões melhoradas deles, que durante a infância leram dezenas de vezes os mesmos livros e brincaram anos com os mesmos brinquedos). Mas também as crianças sucumbem ao canto da sereia. O Youtube, repleto de conteúdos sedutores e dificilmente filtrados pelos pais, vence quase sempre. Sucede então às crianças o mesmo que aos adultos e ao livro aquilo que Tolentino Mendonça teme que aconteça quando alerta: “não nos podemos desfazer dele como se fosse um arcaico vestígio destinado a ser progressivamente desativado.”

Portugueses, acordemos, que por cá se lê cada vez menos.

terça-feira, dezembro 22

Bibliotecas

Eu gosto muito de silêncio. Tenho dificuldade em pensar se houver pessoas por perto a conversar, seja ao vivo, seja na rádio e na televisão. Penso menos mal, é certo, se for num sítio em que muita gente fala ao mesmo tempo e indistintamente, como num aeroporto, por exemplo, em que as falas se tornam uma espécie de ruído de fundo que não me incomoda. No entanto, o silêncio das igrejas e das bibliotecas é de ouro, ambas são templos sagrados onde se pode pensar sem interferências. Borges dizia que o mais parecido que havia com o Paraíso eram as bibliotecas, e talvez não andasse longe da verdade. Nas bibliotecas há uma enorme paz, já repararam? E essa paz não advém apenas do silêncio imposto aos leitores durante a sua permanência naquele espaço, mas também do facto (inspiro-me agora num livro que ando a ler e de que falarei aqui no blogue oportunamente) de ser um dos poucos lugares onde coexistem em plena comunhão adversários políticos, países em guerra, línguas vivas e mortas, autores que se odeiam, criminosos e vítimas, enfim, os exemplos podiam nunca mais acabar... Para mim, que gosto tanto de ler, passar a eternidade numa biblioteca como terá sido, por exemplo, a antiga Biblioteca de Alexandria seria um presente dos deuses.
Maria do Rosário Pedreira

Boa viagem!

 

Alessandra de Cristofaro

Cidades seguras: uma rede de bibliotecas pela paz

As políticas de segurança urbana com melhores resultados nos últimos anos baseiam-se em três premissas reconhecidas por autoridades, sociedade civil e pesquisadores.

A primeira refere-se à prioridade na prevenção da violência, levando-se em conta que as ocorrências criminais e o encarceramento, por si, já revelam o atraso do Estado e da sociedade em cumprirem seu dever constitucional para com a segurança.

A segunda delas diz respeito ao protagonismo dos municípios no planejamento e na gestão da segurança em áreas urbanas, levando-se em conta que as prefeituras são a expressão do Estado mais próxima do cotidiano das pessoas.

Assim, a municipalidade compartilha da missão primordial de corrigir as desigualdades sociais decorrentes das dinâmicas normais da economia moderna, por meio da oferta inteligente e democrática de espaços e serviços públicos.

A terceira premissa está relacionada com a natureza multidisciplinar da insegurança urbana. A ação policial e o encarceramento, ainda que necessários, são etapas do hard power da segurança pública. Outras políticas, integrando-se diferentes pastas, têm a função de inibir os fatores da vulnerabilidade de grupos e de territórios à insegurança, evitando que se evolua para o grau de ‘caso de polícia’.


Nesse contexto, uma novidade exitosa que chama a atenção entre os processos de pacificação urbana é a ressignificação das bibliotecas públicas, construindo-as ou adaptando-as para inúmeras atividades e serviços que vão além da consulta silenciosa dos livros.

Na cidade do Recife, por exemplo, a prefeitura inovou ao atribuir a gestão das suas bibliotecas à secretaria municipal de segurança urbana. Para isso, foi criada a Rede de Bibliotecas Pela Paz.

A abordagem interdisciplinar da questão da segurança urbana está prevista desde o Plano Municipal de Segurança Urbana da capital pernambucana. Nesse desenho, as bibliotecas têm cumprido um papel central na concepção dos Compaz – Centros Comunitários da Paz, outro programa recifense que vem recebendo reconhecimento nacional e internacional no campo da segurança.

O modelo de gestão da Rede de Bibliotecas Pela Paz estabelece que “Educação, conhecimento, cultura leitora, artes, cultura digital, são fundamentais na construção da subjetividade do sujeito. Nas bibliotecas, estes campos se unem à peculiaridade de um espaço de integração e de convivência. As pessoas vão até a biblioteca também para acessar a internet, se encontrarem, participar de eventos e cursos, fazer negócios, se divertir”.

A Rede reúne hoje sete unidades, sendo duas antigas bibliotecas construídas há seis décadas, agora requalificadas pela secretaria de segurança urbana. As outras cinco foram construídas dentro dos Compaz, assim como serão as três que estão em fase de projetos e licitação. Tudo feito em cinco anos, em um setor que se degradava por mais de meio século.

Segundo Murilo Cavalcanti, secretário de segurança urbana do Recife, “segurança se obtém subindo os morros com livros e não com fuzis”. Para se ter uma ideia, a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro contou com previsão orçamentária de R$1,2 bilhão. Segundo Murilo, “com esse dinheiro teríamos construído duzentas Bibliotecas Pela Paz”.

As bibliotecas da paz do Recife foram inspiradas nos modelos de Bogotá e Medellín, na Colômbia, com seus avançados Parques Bibliotecas pensados e construídos “para a vida coletiva, como extensões de espaço público urbano”.

sexta-feira, dezembro 18

Leitor de Calcutá

 

Manjit Singh Hoonjan

Primeiro exercício para a morte

Que foi que houve? Houve um instante dentro da madeira noturna, uma canção a tremular na onda, uma boca articulando pedras, um quintal com umas galinhas doentes, uma maçã dentro do sapato, um tiro de fuzil na tarde calcinada, uma guerra com estampas cheias de sangue, um grito intermitente no meu corpo, Deus de branco, Deus de vermelho, Deus despido sobre o ladrilho. Houve um pensamento no alto, carregado por uma nuvem crua. Pobres, milhões de pobres, mãos desgalhadas, pernas feridas, caras de estopa e fuligem. Me lembro de contrações musculares, de náusea-piedade, de ódio-esquecimento, em salas algodoadas com mulheres, com triângulos louros, ruivos, morenos, e um perfume que fazia quase esquecer o aroma dos lírios enfumaçados. Houve um retrato tirado na província ao lado de um poeta em pedaços. Um ladrar de cão na madrugada. Do mundo me lembro, era um mundo escuro e rápido com um túnel com uma dor qualquer. E a gente ria e ria e ria. Os pinheiros alongavam-se na serra, os sapos engordavam no perau. Houve um remédio escorrendo no pijama, grosso, minha mãe, ah, minha mãe, de onde vim. Houve um discurso furioso prometendo a morte e um discurso delicioso prometendo comida e amor. E não deram nada. Fiquei anos e anos no fundo de um bar, olhando esmagadoramente um copo vazio. Façamos um pouco de ordem: antes de tudo, houve uma coisa qualquer que eu não via, que não havia. Podia ser o avesso. O avesso da árvore, o avesso da luz, o avesso da palavra depois. Consegui ler um livro até o fim, o homem calvo voava sobre o parque, as vacas faziam desencanto, porque o tempo acaba demais como um fruto que se come quase podre. Houve de repente uma senhora branca dentro da banheira e o horror da hora, a hora-horror, parada dentro do relógio, um coágulo dentro da taça, um rato dentro da cama. Houve um tapete tão profundo e tão difícil que, envergonhado, me enrolei, me escondi. Houve um conselho, que me deram, tão certo, tão certo, que me esqueci. Houve uma fanfarra ainda, seguida, ingenuamente por um cão idiota, caçador só de música, e depois, minha mãe, os remédios escorrendo com uma doçura intolerável pelo meu corpo. E foi então que vi a violência. Não me lembro o que era a violência, mas dela nasciam crianças, noites em claro, espinhos, mentiras, pasmos, dicionários, sentenças. Ah, se me lembro, no princípio houve também só a milícia dos arcanjos de pedra-sabão. De pedra-sabão era no espaço o jorro do órgão do coro, meu primeiro exercício para o túmulo, meu cão, digo, meu cão-em-mim, o cão de estar aqui, ou lá, onde estive, ou não estive, onde flui, ou não flui, onde fui, ou não fui. Tenho quase a certeza, balsâmica (ah, minhas palavras, tão bonitas) de que fui um cão, um cão que farejava uns restos de música de fanfarra, por onde os homens tinham passado. Os homens não eram cães: eram importantes, e cheiravam a água de lavanda quando se vem dum enterro ou dum banquete, com a respiração audível e um bafo cansado de satisfação e mais um lenço branco que se passa na testa suada e se suspira. E se suspira. Houve um ruído de prego que se bate com ressentimento, um moço descarnado tombando de bêbado entre carneiros, uma campainha de telefone (ah, houve telefone) soando com terror na noite, no cerne da noite, o âmago da noite, o coração paralítico da noite, a noite da noite, o
point of no return (ah, houve inglês) da noite. E depois não amanheceu, minto, amanheceu uma vez no lobby encerado com um saxofone mudo. Apesar dos pesares, com a morte na alma, fui um cão. Cheguei a ser um cão. Latia. Quando a minha alma passava da morte que existe agora à morte que vai existir daqui a pouco, da morte que existe daqui a pouco à morte que existe mais adiante, ad infinitum. Latia. Cultivei termos simpáticos, fui uma vez ou outra ao teatro, fumei um cigarro entre dois atos, beijei a mão de uma senhora, colaborei na construção de uma ponte, jantei num restaurante com vinho, publicaram meu retrato na revista do serviço público com um objetivo, comprei a crédito, chegaram a rir quando falei uma coisa engraçada (para um cão, bem entendido). Latia. Uivava, gania, latia. Nada puderam fazer por mim, fiquei amando nos terrenos baldios, fuçando latas de lixo, farejando restos de música. O presidente da República me fazia latir. Latia à toa. Uma vez, lati quando uma grande dama me disse que eu possuía uma voz cheia de speaker. Uma tarde, quando um corretor de seguros me falava com impressionante entusiasmo sobre a civilização ocidental, lati até chorar. Houve um momento no aeroporto gelado, quando vi agora o meu primeiro exercício para a morte, ou para a vida, sim, houve. Houve a vida, quase tenho a certeza desconfiada, mas não balsâmica, de que houve a vida, a vida de um cão, mais que as imagens quebradas de inverno, primavera, verão e outono, mais que Pai, Filho e Espírito Santo, semente, haste, galhos, folhas, flores e frutos.

Abrigado e bem acompanhado

 

Bernat Muntés

Toda a gente a falar do mesmo assunto

Nasce de uma rebentação. Então, a água lança-se sobre a areia, estende-se numa camada vítrea, com mais ou menos espuma, avança nessa inclinação de areia lisa. É como uma pequena invasão ao longo de toda a lonjura da praia, natural e espantosa ao mesmo tempo. Em fins de tarde de Julho, esse mar não ameaça. Se estivermos descalços, deixamos que nos cubra os pés e, logo a seguir, os tornozelos. Cada vez mais fina, a água abranda no topo do declive, toca a linha da areia seca e volta a descer, mais rápida, como se o oceano quisesse aquela água de volta. Como se o oceano desse conta de que aquela água estava a escapar-se e a puxasse de volta. Mas, logo a seguir, nova rebentação e, de novo, a água lança-se sobre a areia, estende-se.

Hoje, os temas circulam no debate público através de um movimento muito comparável com este. As redes sociais criaram uma homogeneidade e uma rapidez inéditas no espaço mediático. Como as fases da lua influenciam as marés, a energia colectiva das redes contagia a comunicação social e, a partir de certo ponto, alimentam-se mutuamente.


Perante um acontecimento que despolete eco colectivo, análogo à tal rebentação, estabelece-se um discurso, a água a estender-se na areia. Apresentará uma força proporcional ao ímpeto da sua unanimidade. Essa é a fase em que a grande maioria se sente à vontade para falar. Qualquer observação é recompensada com uma inundação de reforço positivo. Há um instante em que se chega mesmo a acreditar que toda a gente está de acordo com essa ideia. No entanto, quando já não consegue aguentar mais, há uma dessas fotografias num quadradinho que discorda. O primeiro instinto do grupo é o medo, ninguém se quer comprometer. Mas depois, porque existe ali uma nova lógica, por compensação ou apenas devido à lei da gravidade, mais e mais pessoas vão concordando com essa ideia nova, eis a água a recolher-se, até ao ponto em que todos os que se manifestam têm essa opinião. Logo a seguir, novo acontecimento, a água, a areia, etc.

A reflexão colectiva em vagas tem bastantes inconvenientes. Se toda a gente se dedica apenas a um assunto, por muito nobre que seja, não sobra ninguém para reparar noutros assuntos. E, com frequência, a maior das injustiças é exatamente a falta de atenção. Em simultâneo, quando se cansa, quando encontra substituto, é bastante cruel a maneira como a opinião pública deixa cair o tema do momento. Ao contrário do que muitas vezes se diz, o esquecimento da internet é profundo e implacável.

Apesar de se encontrar ritmo cíclico na natureza, parece-me que a forma como os temas chegam atualmente ao espaço público segue, ainda mais, outra cadência: o mercado, o consumo. Tal como as modas, que agora mudam muitas vezes dentro da mesma estação, os temas do debate público requerem uma atualização constante que, no entanto, dispensa uma atenção apurada. Basta-nos ler os títulos das notícias na internet, alguns comentários nas redes sociais, colecionar duas ideias daqui e dali, e acreditamos que já sabemos o que se passa no mundo. Se alguém mencionar um assunto fora dessa agenda, é de certeza um excêntrico, não nos sentimos mal por ignorá-lo, uma vez que é o que faz a maioria das pessoas. Estamos em sintonia com as pessoas normais.

Não sou especialista em marés. Nasci no campo. O mar é um elemento que entrou na minha vida já durante a idade adulta. Talvez por isso, o meu estômago ainda não se conseguiu habituar a este balanço.
José Luís Peixoto

sexta-feira, dezembro 11

Farol

 


Descrição

Era uma mulher antiga. Na mesa do seu almoço, havia um constante vidro de Poção de Mugólio. Dormia de meias de homem e, durante o sono, cheirava a ponta de lápis. Não pisava no chão frio, com medo de ficar com a boca torta. Era uma mulher antiga. Chamava o Amor de maneira tão estranha, que parecia não ter nascido dele. Não amava, temia a Deus sobre todas as coisas. De bebida, nem ao longe lhe falassem, a não ser de vinho do Porto, assim mesmo com uma gema dentro. Tinha um grande respeito a Carlos Gomes, a quem atribuía o Hino Nacional. Acreditava em coisas absurdas, como o ri melhor quem ri por último e o quem dá aos pobres empresta a Deus. Era uma mulher antiga. Ignorava tanto de si mesma, que seu maior orgulho era uma tia. Entendia de rendas e bordados, monograma de fronha e point-à-jour. Muitas vezes, na frente das pessoas, chamava avião de aeroplano. Navio, de vapor, isso era sempre. Jamais chamou samba e sim maxixe e fatia de presunto era fiambre. Se ia comungar e havia festa, preferia dançar com as outras moças. Só com um homem dançava descansada: Arlindo, seu pai, que morreu pobre. Ela mesma cosia os seus vestidos, com temor que a modista a visse em trajes íntimos. Jamais tomou banho no chuveiro, sem botar algodão na fechadura. Jamais, se despida, olhou espelhos, por temer a cobiça de si mesma. Jamais se deixou fotografar, sem pedir ao artista os negativos. Estava tão acima das demais, que lavava a cabeça em todo banho. Sua roupa cheirava a capim-santo. Seu corpo sem sol não ia à praia, por isso era branco o tempo todo. Em junho, no São João, tirava sortes, para ver se casava ou se morria. Preferia não ver fita nenhuma, a sentar-se entre estranhos num cinema. Seu dinheiro era pouco e desconstante, mas dava-o todo para as obras pias. De canção, só sabia o "Chão de estrelas", de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas. Em política, fazia confusão, pois temia, a só tempo, Carlos Prestes, Flores, Sagramor e Adauto Lúcio... por achá-los com ideias avançadas. Tinha medo de tudo o que mudasse esse transe, a seu ver, chamado Paz. Além disso, se amava, era uma graça. Não sabia das coisas, inventava. Jamais repetiu, criou o Novo. E ninguém lhe ensinou – aprendeu só. Por ser um Ser de Deus feito em essência, no dia em que morreu, não houve missa. Era uma mulher antiga.
Antônio Maria, "O jornal de Antônio Maria"

quinta-feira, dezembro 10

Sempre a brincar

 


Notícias do presente sem futuro


Estou cansado que me perguntem como é que estou a passar este tempo.

De repente, o tempo transformou-se neste tempo: um presente absoluto. O passado ficou incrivelmente distante, recordamo-lo como se tivesse acontecido a outras pessoas, como se o tivéssemos visto num documentário. Pior ainda, o futuro deixou de existir. Antes, naquele tal tempo que antecedeu este, dávamos o futuro por adquirido, chegaria na semana que vem, no mês que vem, haveria futuro em 2033, por exemplo. Agora, já não temos a certeza. Agora, o futuro é uma utopia ou uma distopia, dependendo do otimismo/pessimismo de cada um.

Alguns, discípulos de Heráclito com 2500 anos de atraso, asseguram-nos que nada será como costumava ser. Estou cansado dos clichés deste tempo. Estou cansado de ouvir que a adversidade é uma oportunidade, é um desafio. Dispenso esse tipo de desafios.

Juro que não queria escrever sobre isto. Tinha aquela esperança cega e injustificada de que se não falasse sobre o assunto, contribuía para o seu desaparecimento. Falhei, não há negação capaz de cobri-lo, não há fuga. No entanto, repare-se no meu esforço por não utilizar certas palavras. Há certos verbos e substantivos que já não consigo ouvir, menos ainda pronunciá-los, menos ainda escrevê-los, vê-los impressos.

Estou cansado dos especialistas. Cansa-me os que são realmente especialistas, os que se empenharam a fazer licenciaturas e pós-gaduações quando estas disciplinas não estavam na ordem do dia, quando não havia nenhum indício de que fossem chamados ao telejornal para dar o seu parecer. Mas cansa-me sobretudo os especialistas de ocasião, especialistas entre aspas de chumbo, leitores de internet, gente que não gagueja ao falar e que quer sempre falar.

Prefiro as minorias silenciosas, como é o caso de quem está em prisão domiciliária ou de quem sofre de agorafobia. Esses beneficiaram de uma trégua. As crianças deixaram de perguntar porque é que o tio tem uma pulseira na perna e nunca sai de casa. De certa forma, estes meses foram uma redução na pena. Ao mesmo tempo, quem sofre de agorafobia pôde sentir-se normal, não teve de escutar insistências para sair. Algo semelhante aconteceu com as aldeias do interior. Durante este período, foi normal que as ruas estivessem desertas.

Estou cansado da condenação feita pelos puristas do isolamento social, sempre a medirem distâncias com os olhos. Passam dias inteiros à janela só para poderem chamar irresponsáveis aos outros e dizer: já viram isto? Eles nunca são irresponsáveis, eles estão sempre a ver tudo, com a exceção daquilo que preferem não ver, é claro.

Estou cansado da escola em casa, muito cansado. Estou cansado da ginástica em casa, toda a gente do prédio em frente a fazer agachamentos. Mas, mais do que qualquer outra coisa, estou cansado desta agressão aos velhos. Já tinham problemas suficientes: a palavra velho usada como um insulto, por exemplo. Já tinham sido obrigados a aceitar suficientes injustiças. Agora, por cima de todas essas, também esta injustiça.

Estou cansado. Com essa falta de ânimo, assisto ao início da crise económica que já chegou para alguns e, diz-se, tocará a todos, ou quase. Este quase tem enorme importância, mas não o estranhamos, há muito que nos habituámos à desigualdade, aprendemos a justificá-la. Vista daqui, também a desigualdade se apresenta como um eterno presente, uma inevitabilidade do ser humano, não mudou e ninguém prevê que esteja para mudar.

quarta-feira, dezembro 9

Luz própria

 


Crônica n° 1

Tanto neste nosso jogo de ler e escrever, leitor amigo, como em qualquer outro jogo, o melhor é sempre obedecer às regras. Comecemos portanto obedecendo às da cortesia, que são as primeiras, e nos apresentamos um ao outro. Imagine que pretendendo ser permanente a página que hoje se inaugura, nem eu nem você, os responsáveis por ela, nos conhecemos direito. É que os diretores de revista, quando organizam as suas seções, fazem como os chefes de casa real arrumando os casamentos dinásticos: tratam noivado e celebram matrimônio à revelia dos interessados, que só se vão defrontar cara a cara na hora decisiva do "enfim sós."

Cá estamos também os dois no nosso "enfim sós" – e ambos, como é natural, meio desajeitados, meio carecidos de assunto. Comecemos pois a falar de você, que é tema mais interessante do que eu. Confesso-lhe, leitor, que diante da entidade coletiva que você é, o meu primeiro sentimento foi de susto, sim, susto, ante as suas proporções quase imensuráveis. Disseram-me que o leitor de O Cruzeiro representa pelo barato mais de cem mil leitores, uma vez que a revista põe semanalmente na rua a bagatela de cem mil exemplares!...

Sinto muito, mas francamente lhe devo declarar que não estou de modo nenhum habituada a auditórios de cem mil. Até hoje tenho sido apenas uma autora de romances de modesta tiragem; é verdade que venho há anos frequentando a minha página de jornal; mas você sabe o que é jornal: metade do público que o compra só lê os telegramas e as notícias de crimes, e a outra metade lê rigorosamente os anúncios. O recheio literário fica em geral piedosamente inédito. E agora, de repente, me atiram pelo Brasil afora em número de cem mil! Não se admire portanto se eu me sinto por ora meio gauche.

Dizem-me também que você costuma dar sua preferência a gravuras com garotas bonitas, a contos de amor, a coisas leves e sentimentais. Como, então, se isso não é mentira, conseguirei atrair o seu interesse? Pouco sei falar em coisas delicadas, em coisas amáveis. Sou uma mulher rústica, muito pegada à terra, muito perto dos bichos, dos negros, dos caboclos, das coisas elementares do chão e do céu. Se você entender de sociologia, dirá que sou uma mulher telúrica; mas não creio que entenda. E assim não lhe resta sequer a compensação de me classificar com uma palavra bem soante.

Nasci longe e vivo aqui no Rio mais ou menos como num exílio. Me consolo um pouco pensando que você, sendo no mínimo cem mil, anda espalhado pelo Brasil todo e há de muitas vezes estar perto de onde estou longe; e o que para mim será saudosa lembrança, é para você o pão de cada dia. Seus olhos muitas vezes ambicionarão isto que me deprime – paisagem demais, montanha demais, panorama, panorama, panorama. Tem dias em que eu dava dez anos de vida por um pedacinho bem árido de caatinga, um riacho seco, um marmeleiral ralo, uma vereda pedregosa, sem nada de arvoredo luxuriante, nem lindos recantos de mar, nem casinhas pitorescas, sem nada deste insolente e barato cenário tropical. Vivo aqui abafada, enjoada de esplendor, gemendo sob a eterna, a humilhante sensação de que estou servindo sem querer como figurante de um filme colorido. Até me admira todo o mundo do Rio de Janeiro não ser obrigado a andar de sarongue. Mas cala-te, boca; para que fui lembrar? Capaz de amanhã sair uma lei dando essa ordem.

Apesar, entretanto, de todas essas dificuldades, tenho a esperança de que nos entenderemos. Voltando à comparação dos casamentos de príncipe, o fato é que as mais das vezes davam certo. Não viu o do nosso Pedro II com a sua Teresa Cristina? Ele quase chorou de raiva quando deu de si casado com aquele rosto sem beleza, com aquela perna claudicante; porém com o tempo se acostumaram, se amaram, foram felizes, e ela ganhou o nome de Mãe dos Brasileiros. Assim há de ser conosco, que eu, se não claudico no andar, claudico na gramática e em outras artes exigentes. Mas sou uma senhora amorável, tal como a finada imperatriz, e de alma muito maternal. A política é que às vezes me azeda, mas, segundo o trato feito, não discorreremos aqui de política. Em tudo o mais sempre me revelo uma alma lírica, cheia de boa vontade; se sou triste um dia ou outro, não sou mal-humorada nunca. E tenho sempre casos para contar, casos da minha terra, desta ilha onde moro: mentiras, recordações, mexericos, que talvez divirtam seus tédios.

Você irá desculpando as faltas, que eu por meu lado irei tentando me adaptar aos seus gostos. Quem sabe se apesar de todas as diferenças alegadas temos uma porção de coisas em comum?

Vez por outra hei de lhe desagradar, haveremos de divergir; ninguém é perfeito neste mundo e não sou eu que vá encobrir meus senões. Tenho as minhas opiniões obstinadas – você tem pelo menos cem mil opiniões diferentes –, há, pois, muito pé para discordância.

Mas quando isso suceder, seja franco, conte tudo quanto lhe pesa. Ponha o amor próprio de lado, que prometo também não fazer praça do meu. Lembre-se de que há um terreno de pacificação, um recurso extremo, a que sempre poderemos recorrer: fazemos uma trégua no desentendimento, procurando esquecer quem dos dois tinha ou não tinha razão; damos o braço e saímos andando por este mundo, olhando tudo que há nele de bonito ou de comovente: os casais de namorados nos bancos de jardim; o garotinho cacheado que faz bolos na areia da praia, a luz da rua refletida nas águas da baía, ou simplesmente o brilho solitário da estrela da manhã.

Depois disso, não precisaremos sequer de fazer as pazes; nos seus cem mil variadíssimos corações, como no meu coração único só haverá espaço para amizade e silêncio.

Há anos sei que é infalível o resultado da estrela da manhã.